De onde vieram a motivação e a inspiração? Como surgiu a idéia de fazer o livro?
O livro nasceu de um trabalho de um grupo de pesquisadores de vários estados do Brasil, do Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, dentre outros. Eram professores de física, química, biologia. Desde 2005 a gente se reúne para avaliar os livros didáticos de Ciências da 1ª à 4ª série do ensino fundamental, hoje chamadas de 2º ao 5º ano. E a convicção que se construiu dizia que, depois de tanta discussão, a gente já tinha material suficiente para falar dessa Ciência que está presente nos livros didáticos, nos cursos de formação de professores, nas feiras de Ciências, nos centros de divulgação científica e nos museus. Então a gente partiu da pergunta: qual é o discurso dessa Ciência? Qual é a concepção de Ciência presente nesse material todo? É mais positivista, é mais empírica?
E o que foi que vocês encontraram?
Há muitos livros que ainda trazem uma visão de Ciência como a única forma de conhecimento capaz de mostrar a verdade. Nesses livros, tanto a forma, mais hermética, quanto o conteúdo, excessivo, ficam tentando convencer alunos e professores de que o que está dito ali é a versão final de tudo, pronta e acabada, irrefutável. Essa é uma visão superada já, mas ainda aparece em algumas obras. Outra realidade que encontramos é a dos livros que entendem a Ciência como cultura. Essa é uma proposta mais inovadora, porque entende que a Ciência é mais uma forma – entre tantas outras – de pensar e de conhecer o mundo. Nessa visão, a Ciência dialoga com as outras formas de perceber o mundo. Não está acima e nem abaixo delas e, mais importante, não é a solução final para todos os problemas do mundo. Aliás, muitas vezes é parte dos problemas.
E as estratégias de ensino de Ciências seguem essa divisão?
Seguem, a gente ainda encontra muitos professores resistentes a olhar a Ciência de uma outra maneira. A culpa nem é deles. Eles foram educados assim, formados assim. Mas encontramos também professores que valorizam muito o pensamento e a reflexão, que respeitam os valores das outras formas de percepção do mundo, como as propostas pelas disciplinas das humanidades e até pela religião, por que não? Esses professores percebem que uma forma de perceber o mundo não anula as outras e nem deve anular e por isso não enxergam a Ciência como uma camisa de força e ela passa a ser, portanto, mais um instrumento que contribui para a cidadania. E esse deve ser o objetivo final da educação, formar cidadãos.
Mas os livros refletem essa visão, da Ciência como formadora de cidadãos?
Pois é, outro problema comum que encontramos nos livros didáticos é que eles não refletem, nem lidam tranquilamente, com a diversidade cultural do Brasil. Nos textos, quase não se toca nos saberes e nos valores das variadas comunidades do país e, mais que isso, grupos como negros e índios aparecem mais nas ilustrações que nos textos e, nesses desenhos, eles quase sempre aparecem em situações desfavoráveis e ainda muito marcadas por estereótipos. É claro que isso é um equívoco, mas essa postura reflete bem a nossa situação atual. Por um lado, tentamos lidar com a questão da diversidade, então índios e negros aparecem. Mas, por outro, ainda não sabemos lidar com isso de forma tranqüila e igualitária – como deve ser – então as etnias aparecem de forma desigual. Mas a boa notícia é que pelo menos os livros estão tentando refletir essa nova realidade. E a notícia melhor é que alguns outros livros tratam essa questão de forma fantástica, unindo prática e teoria, trabalhando as realidades de forma a respeitar toda a diversidade.
Como os livros didáticos trabalham a questão do estímulo à curiosidade, base da Ciência e um dos combustíveis mais importantes para fazer do estudante um investigador, alguém movido por perguntas e em busca de respostas?
A noção de processo é uma parte importante, porque lembra a alunos e professores que o conhecimento se faz e avança a partir da contribuição de vários cientistas. Nos livros didáticos isso aparece muito na parte de História da Ciência, que acaba apontando como é dinâmico esse processo e como as verdades vão mudando a partir dos questionamentos e dos estudos de vários autores. O que num tempo se tinha como verdade absoluta, pode ser mudado na época seguinte a partir desse fazer científico. O mito de que a Amazônia é o pulmão do mundo é uma dessas verdades que caiu por terra. Alguns livros ainda trazem essa colocação. Mas, de um modo geral, eles já contam como essa verdade foi superada. Outro ponto que também ajuda bem na promoção da curiosidade é o que fala sobre o método científico, sobre como a ciência usa a investigação para produzir conhecimento sobre os fenômenos do mundo. As possibilidades que o método traz são sempre respostas transitórias, sujeitas a adequação, a superação. E devem mesmo ser assim, porque a Ciência não deve ser a detentora das verdades cabais e a gente insiste muito nesse ponto, porque ainda tem muitos professores que se atrapalham com isso, que têm na Ciência a âncora da sua atuação e se a gente tira isso, eles podem se sentir inseguros.
E os professores nesse processo todo? Como ficam, como se sentem? Gostam desse novo lugar da Ciência?
As realidades que encontramos nos livros e nas estratégias de ensino são muito semelhantes ao que encontramos nos professores. Ou seja, existem várias formas de pensamento, várias maneiras de encarar a Ciência e seu ensino. E, de um modo geral, os livros refletem as demandas dos educadores e, por isso mesmo, apresentam conteúdos e formas muito parecidos com aquilo que os professores querem encontrar. Temos então desde os professores mais tradicionais, que vêem a Ciência daquela maneira já superada, como a única verdade, até os professores com um anseio mais contemporâneo e que enxergam na Ciência uma parceira das outras visões para decodificar o mundo. E o que é mais interessante é que boa parte deles, a grande maioria mesmo, estão abertos a novas maneiras de encarar a Ciência e seu ensino. Por isso também encontramos educadores que realizaram experiências fantásticas que entendem a Ciência como parte integrada da sociedade e do ambiente. E eu preciso dizer que a relação dos professores com o livro didático é muito forte, por isso, os parâmetros que os livros apontam são muito importantes. Professores com maior autonomia usam o livro não como um apoio incondicional e vão fazendo alterações do que está no livro. Já os educadores com formação mais precária acabam estudando pelo livro e se utilizam da proposta pedagógica contida na obra, que justamente por isso tem que oferecer a ampliação do conteúdo conceitual desse professor.
E essa característica de alinhamento entre livros e projetos pedagógicos se repete nas disciplinas de humanidades?
O Programa Nacional do Livro Didático, do governo federal, analisa todos os livros didáticos, inclusive os das humanidades. E o que a gente encontra é que também essas disciplinas têm pouco a pouco começado a veicular a perspectiva mais atual de Ciência, que é aquela integrada com a sociedade. A gente chama isso de CTSA, ou Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente. Essa vinculação das várias esferas permite não fragmentar e estancar as formas de saber. Ao contrário, a idéia é integrar e, assim, ampliar a compreensão do mundo. No livro da gente, tem um artigo inteiro sobre o parâmetro CTSA, que entende a Ciência não como a solução dos problemas, mas como uma geradora de problemas também. Não só científicos e tecnológicos, mas também ambientais e sociais e isso liga tudo.
Ou seja, o parâmetro principal proposto para o ensino da Ciência no Brasil entende que há implicações sociais, econômicas e políticas derivadas da produção científica e tecnológica?
Exatamente isso. A ciência e a tecnologia não estão apartadas da sociedade. Aliás, a ciência e a tecnologia que produzimos degradam o meio ambiente e criam uma sociedade de consumo e isso é uma forma de vida, a ser estudada pela sociologia, antropologia, comunicações, enfim... O parâmetro novo propõe exatamente esse olhar integrado. E os próprios livros didáticos começam a propor um olhar aliado entre ciência e filosofia, biologia e geografia, ecologia e sociologia e assim por diante.
Mas a mudança não pode se resumir aos livros, não? Há o fator professor para levar essas mudanças para a sala de aula e formar estudantes já tendo em vista esse novo paradigma.
Nosso olhar agora deve ser para o ensino dessa Ciência. Como eu disse antes, os professores vêem no livro um grande aliado e, além disso, apresentam de forma geral muita disposição para encarar as coisas de maneira diferente. Então o que os cursos de formação de professores e as faculdades devem começar a ensinar são as ferramentas para os educadores não ficarem cegos diante da Ciência, ou seja, que tenham conteúdo e mecanismos para questionar, desconfiar, pesquisar, criar formulações e estudar em obras que apóiem essa visão nova. A mídia já começa a abrir os olhos e divulgar esse novo parâmetro, e os governos, em todos os níveis, estão – ao que parece – bem empenhados em fazer a CTSA vingar. O nosso livro ajuda um pouco nisso também, porque traz as novas perspectivas, ensina a lidar com a divulgação científica, trata da ética multidisciplinar e chama a atenção do leitor para a importância da pesquisa, da vivência prática, das experiências em formato não tradicional. E ainda, para que a gente passe da fase mágica da Ciência, que encanta pelos resultados inexplicáveis que proporciona. No livro também tem muito claro que a Ciência é uma área de conhecimento intimamente ligada ao mercado e à economia e que caminha patrocinada por políticas públicas. Ou seja, ela não está desarticulada da vida real. Não é uma atividade trancada nos laboratórios e alheia ao mundo ao redor. Em outras palavras, Ciência é poder, e o ensino da ciência é a chave para garantir que esse conhecimento seja um caminho para a cidadania e não algo que mate a cidadania pela raiz.