O dia 1º de Dezembro marca o Dia Mundial de Luta contra a Aids. Levando em consideração todos os números e estudos recentemente divulgados, como podemos avaliar o atual estágio da epidemia no Brasil?
Surpreendentemente, 25 anos depois de detectada, a Aids não alcançou a dimensão que imaginávamos. Há 20 anos, a gente não podia supor que o número de pessoas soropositivas seria o que temos hoje, a gente achava que ia ser bem maior. Por isso, aqui e no resto do mundo, o número de doentes é aquém do esperado. Felizmente. Outra coisa que podemos dizer é que hoje, no Brasil, a epidemia está estabilizada. O número de novos casos ainda é elevado, gira em torno de 32 mil, 33 mil novos casos relatados por ano, mas já apresentam uma boa responsabilidade. Ou seja, os novos casos não apresentam muitos sobressaltos, ou números muito diferentes. E isso, certamente, já é uma vitória.
Mas os dados apontam mudanças nesse quadro, não?
O que os dados apontam é que há alguns novos caminhos pontuais diferentes do quadro geral. Há uns 5 ou 10 anos, os números apontavam uma intensa feminilização da Aids. A diferença entre homens e mulheres que tinham a doença caiu muito, e a situação hoje é de quase igualdade entre os sexos. Também nos últimos anos, os dados mostravam que a doença estava deixando os grandes centros urbanos e avançando em direção às cidades menores e à zona rural. Os números mais recentes, contudo, revelam mudanças no que diz respeito à idade e ao nível de escolaridade. Mas repito que são mudanças pontuais. Não é que só estejam aparecendo casos de soropositivos com mais de 50 anos. A maior concentração ainda é entre pessoas de 20 a 30 anos, mas estão aparecendo mais casos entre os maiores de 50.
Num primeiro olhar, essa informação chama a atenção... Em geral a gente tende a acreditar que uma pessoa com mais de 50 anos não tem mais o comportamento de risco associado à Aids...
É e é por isso que a imprensa está martelando tanto nesse dado. A grande questão é que a doença não tem mais muito a ver com comportamentos de risco. Tem a ver com falta de informação e vida sexual ativa. E esse aumento nos casos entre pessoas com 60 ou 65 anos está diretamente ligado aos remédios para disfunção erétil. Há 10 anos, a vida sexual de alguém nessa faixa de idade era, vamos dizer assim, menos ativa. A maior atividade é que está fazendo a Aids se difundir entre esse público.
O problema é que não se poderia prever isso?
Exatamente, há 20 anos, quando as políticas anti-Aids foram implantadas, ninguém imaginava que remédios como o Viagra e o Cialis apareceriam e que dariam tão certo. E ninguém poderia prever, portanto, a ligação entre os medicamentos e o aumento da Aids. Por isso é que eu defendo trabalhos específicos de informação e esclarecimento. O senhor de 50 anos ou mais precisa ser re-informado de que ele também pode ser uma vítima da doença. Tem benefícios tomar Viagra, mas traz riscos também.
O melhor a fazer é desenvolver trabalhos pontuais e específicos de esclarecimento para reduzir a incidência de Aids?
Isso mesmo. Sempre defendi abertamente que os trabalhos de publicidade e de educação sejam pontuais e voltados a públicos específicos. O que se aplica a um casal com mais de 50 anos não vale para jovens com menos de 15 anos. E não vai funcionar fazer publicidade sem respeitar isso. Também o fato de a mídia ter deixado de noticiar é problemático. A Aids já não é uma doença de famosos, ricos e glamurosos, já não mata mais, já não causa mais o terror que causava nos anos 1980 e 1990. Por isso sumiu um pouco do noticiário, aí a sensação da sociedade é que se trata de uma doença sob controle. O alerta que a gente deve fazer é: não falar sobre o problema não significa dizer que ele não existe. E estou falando de propaganda governamental, cobertura jornalística. E essa situação de silêncio se repete com outras enfermidades como sífilis, gonorréia, malária e muitas outras. Não se fala sobre elas, mas elas estão firmes, desafiando os médicos. A Aids deixou de aparecer no Fantástico, deixou de acometer personalidades...
O senhor destacou que a publicidade para um grupo não funciona com outro. Seria essa uma das razões para a Aids estar crescendo nas camadas com maior escolaridade? Algo como a comunicação é voltada para um público menos esclarecido e, portanto, não cola com pessoas com maior nível de escolaridade, que acabam se achando imunes ou invulneráveis ao HIV?
Olha, se você analisar os números da Aids vai entender claramente que é uma doença fortemente identificada com as pessoas com menor escolaridade e de classes sociais mais baixas. São pessoas que não têm acesso a informação e que, quando têm, não conseguem entender. O que acontece é que vem sendo registrado um aumento pontual, vou repetir, pontual entre as pessoas com nível de escolaridade entre 8 e 11 anos. É muito tempo de estudo para afirmarmos que são pessoas que não têm acesso ou que não entendem a informação. Talvez seja um grupo menos aberto a esse tipo de educação. Talvez partam do pré-suposto que Aids é uma doença de pobres e então não se cuidam como deveria. O que há, com certeza, é uma acomodação da população em relação ao tema. Seja pela redução da publicidade e das inserções na mídia, o fato é que a doença não causa mais o espanto que causava, o que é um problema sério. Hoje o noticiário aponta muito mais para assuntos como obesidade, depressão, estresse... e há muito mais pesquisas sobre a calvície, por exemplo, que sobre Aids e HIV.
Quem é, então, o soropositivo de hoje?
Para a gente conhecer o perfil, temos que dividir a população em quem está soropositivo e quem poderá vir a ser. Então, hoje quem pode ficar doente? Todos. Não é mais uma doença de grupos de risco, de guetos. Qualquer um hoje tem chance de se contaminar. E quem está soropositivo hoje? Aqueles que já participaram de guetos, com predomínio de homossexuais. Mas também encontramos ainda muitos casos de usuários de drogas e mulheres contaminadas por seus companheiros. O crescimento entre os heterossexuais é muito mais intenso que entre os homossexuais, mas esses últimos ainda estão mais infectados. No futuro breve, os mitos vão se dissolver e acredito que em cinco anos os estudantes de medicina já não vão achar que Aids só aparece em prostitutas, homossexuais, usuários de droga... Os soropositivos serão pessoas contaminadas ao acaso, sem nenhuma ligação com grupos de risco.
E ao mesmo tempo em que alguns grupos vêm sendo mais afetados, em outros vêm caindo em número de contaminados. É o caso da contaminação vertical, aquela de mãe para filho. É isso?
O número de bebês contaminados por suas mães caiu vertiginosamente. É uma queda estrondosa e poderia ser ainda melhor. O sucesso no caso da contaminação vertical se deve a uma atenção importante das equipes de saúde para a prevenção durante a gestação. É obrigatório que todas as gestantes façam o exame de HIV durante a gestação. E caso seja detectada a doença, quando a mãe se trata, a chance de o filho ter a doença é muito pequena, se ela não se tratar, a incidência é de 25 a 30%. Se tomar os remédios e se cuidar, isso cai para 1 ou 2%.
Então ainda falta informação?
Falta, principalmente, as pessoas descobrirem se são ou não soropositivas ou não. Agora vou te dar um dado que não está em nenhum relatório e não saiu na mídia também: 43% das pessoas que morrem em conseqüência do HIV não sabiam que estavam contaminados. 43% é quase a metade dos soropositivos. É muita gente. Não saber que tem o vírus significa duas coisas: primeiro, que o portador pode continuar passando os vírus adiante, contaminando as pessoas que ele gosta. E a segunda é que a pessoa não desfruta de todos os avanços que a ciência e a medicina já proporcionaram para os soropositivos e, hoje, alguém que tenha sido contaminado tem o mundo todo pela frente. E é por esse caminho que as campanhas devem seguir, devem sugerir que as pessoas façam o exame, se conheçam, saibam de sua condição. É aí que o Ministério da Saúde tem de bater pesado: examine-se.
E hoje já é possível ter uma boa qualidade de vida sendo soropositivo?
Na década de 1980, 100% dos que descobriam que eram HIV-positivos morriam. Hoje, o soropositivo pode viver bem por décadas. Vai depender muito mais dos cuidados que ele toma, de fazer o tratamento direitinho, de fazer exercício e ter uma dieta equilibrada. Os remédios do coquetel dão como efeito colateral um aumento do colesterol, da triglicérides e da hipertensão arterial. Tudo isso precisa ser controlado para o soropositivo ter uma vida saudável, por longos anos. Ele não deve portanto viver com medo de pegar uma gripe, ou comer uma coxinha estragada. Ele tem é que se preocupar em ter uma vida saudável, fazer atividade física e controlar a dieta.
E o lado emocional?
Também é fundamental e precisa estar em dia. Esse lado psicológico precisa ser muito mais valorizado tanto entre os médicos e profissionais de saúde como nos veículos de comunicação. A vida boa, com qualidade, precisa ser valorizada. Agora, estamos aqui falando de uma situação ideal. Eu trabalho no Hospital Emílio Ribas e a realidade lá é bem diferente. Eu às vezes me sinto muito mal de falar em dieta equilibrada e exercícios físicos para uma pessoa que mora no cortiço, na favela, ou na rua. Como eu posso cobrar que essa pessoa não coma muita gordura se ela nem sempre tem o que comer, ou se não pode se dar ao luxo de escolher o que vai comer? Chega a parecer escárnio. Então lá é uma abordagem bem mais pé no chão, afinal a realidade é outra. Essa população precisa ser muito bem esclarecida sobre a doença e sobre o tratamento. Entender de forma que aceite, assuma e não abandone o tratamento e que não se ofenda com as recomendações. O vocabulário também precisa ser muito pé no chão para garantir a compreensão total.
Recentemente também houve a divulgação de que as vacinas contra a Aids que vinham sendo testadas não só não estavam funcionando como também possivelmente estariam contaminando os pacientes. É verdade, é isso mesmo?
No final de 2007, o Nobel de Medicina fez um alerta geral de que as vacinas não iam dar em nada, porque estavam indo na direção errada. Isso caiu como uma bomba no mundo científico, mas faz todo o sentido. É preciso repensar essas vacinas porque elas consomem uma fábula de verbas e não vêm gerando resultados. Não porque as pesquisas não são boas, mas porque o vírus é muito esperto, é um vírus muito especial, com alta capacidade de modificação e adaptação. Ele dorme um hoje e acorda outro amanhã. E nós nem sabemos ao certo quais são todos os tipos de vírus HIV existentes, então a vacina fica meio impossibilitada.
Por isso também o grande desafio é conter as mutações do vírus?
É, e isso se consegue com a adesão do paciente ao tratamento. Se ele toma o coquetel direitinho e não deixa sua taxa viral ficar aparente, quer dizer, se o vírus dele não se reproduz, esse é um vírus que não gera novas variações e, portanto é controlado por medicamento. Cada nova variação pede remédios inéditos, o que demora para se conseguir. O soropositivo acaba agindo como um agente de saúde pública quando toma a medicação corretamente e não deixa seus vírus crescerem, aí não dá chance para o vírus se reproduzir. As pesquisas aqui no Brasil vão bem. Há grupos na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal de São Paulo, na Fundação Oswaldo Cruz e outras. Mas acho que o caminho que essas pesquisas vêm seguindo, muito alinhado com o caminho do resto do mundo, não é o melhor. Defendo que aqui no país, as pesquisas sirvam para produzir novos e eficientes medicamentos. Vamos deixar a busca pela vacina, que é caríssima e até agora ineficaz, para os países estrangeiros, que têm muito dinheiro para gastar. A gente que não tem tanto assim devia investir na criação e difusão de novos medicamentos, com métodos e procedimentos 100% nacionais. Isso baratearia muito o custo do tratamento para o setor público e sobraria mais dinheiro para mais pesquisas.