Professor, a chamada ‘era Bush’ já faz parte do passado? O mundo de fato respira novos ares na área das relações internacionais?
Não podemos ainda prever as consequências das intenções e dos movimentos feitos pelo governo Obama. Mas sinais de mudanças realmente existem. Na América Latina, por exemplo, eles são muito fortes. Basta citar o consenso recentemente obtido na Conferência dos Estados Americanos, em Honduras, que determinou a volta de Cuba ao cenário continental. É preciso fazer referência ainda ao discurso do presidente Obama no Cairo, falando diretamente para os povos árabes e muçulmanos, além de um diálogo internacional que aceita a participação de um número maior de países, quando se discute a crise financeira global. Essas ações têm sido reconhecidas inclusive por outros países. Parcela da sociedade iraniana já aceita os Estados Unidos como interlocutor e como alguém com quem se deve negociar. Agora, ainda é muito cedo para tentar avaliar ou identificar os impactos concretos de todos esses movimentos. Há forças conservadoras ainda muito bem organizadas nos Estados Unidos, e a crise econômica é bastante grave.
De qualquer forma a ideia da negociação e da diplomacia está gradativamente substituindo a perspectiva das bravatas, das ameaças e das guerras?
Em princípio sim. Mas de fato não sabemos quais os desdobramentos que poderão se manifestar. Há situações locais que efetivamente não podem ser resolvidas apenas com a intervenção das potências mais importantes e que, a depender do encaminhamento, podem levar a crises significativas. Vivemos problemas regionais graves no Oriente Médio, conflitos latentes na África, cenários complexos no ex-bloco soviético, temos mais recentemente a questão nuclear na Coreia do Norte reaparecendo com gravidade. No longo prazo, não sabemos ao certo como os Estados Unidos poderão se comportar diante dessas crises. São todas questões que podem ter desdobramentos imprevisíveis.
Qual a sua avaliação sobre o discurso feito pelo presidente Obama na Universidade do Cairo?
Creio que não seja possível pensar que exista uma política externa radicalmente nova com Obama. Veja só: ele fala na Universidade do Cairo, no Egito, um país tradicionalmente aliado dos Estados Unidos, depois de ter passado pela Arábia Saudita, outro país parceiro dos norte-americanos há décadas. Avalio ser incorreto dizer que exista uma mudança radical nas ações norte-americanas relacionadas ao conflito árabe-israelense. Claro que Obama sinaliza com maiores concessões aos árabes, mas esse movimento faz parte de uma análise pragmática e da necessidade de um quadro de estabilidade e de segurança para os países da região.
Mas o presidente Obama fala na criação do estado palestino, na exigência de Israel congelar os assentamentos, evita usar a palavra ‘terrorismo’ e ainda termina o discurso com uma saudação em árabe. Ainda que simbolicamente, não são movimentos significativos?
São importantes, mas não significa que haja modificações intensas ou bruscas na condução da política externa norte-americana para a região. De fato, há uma clara decisão de manter canais de diálogo com todos os grupos envolvidos no conflito, incluindo os grupos palestinos e até mesmo o Hamas, caso aceite participar dessa negociação. Portanto, o afastamento dos Estados Unidos se dá em relação ao governo conservador de Benjamin Netanyahu, mas não de Israel de uma maneira mais ampla, até porque a presença judaica nos Estados Unidos é ainda muito forte, muito viva e intensa. O que parece existir nos Estados Unidos é uma análise, que já se desenvolve há alguns anos, da conveniência em manter a atual política para a região e dos prejuízos que os norte-americanos vêm colhendo com o alinhamento incondicional com Israel. Esse debate retorna agora com intensidade.
Não há então um afastamento ou ruptura da aliança com Israel? Essa aliança deve permanecer, mesmo diante da defesa dos dois estados e da exigência de interrupção de construção de novos assentamentos?
Certamente trata-se de mudança significativa por parte dos Estados Unidos, mas sem rupturas, com continuidade. Os Estados Unidos sempre defenderam a posição de dois estados para dois povos na região e o fim da expansão e até mesmo dos assentamentos judaicos, mesmo durante a era Bush. A diferença é que isso agora parece tornar-se um foco prioritário.
E no caso do Irã, como ficam os acenos iniciais para o diálogo depois da reeleição do presidente Ahmadinejad, respaldado por mais de 60% dos votos, caso os resultados oficiais, bastante questionados nesse momento, sejam confirmados? A disposição para negociar permanece? Ou a tendência é o acirramento de tensões?
Creio que a tendência será a continuidade da vontade de negociar. Mas, como em qualquer outra negociação, o resultado é incerto. Alguns analistas dizem que o resultado eleitoral, ao favorecer Ahmadinejad, lhe garante legitimidade e margem de manobra inclusive para negociar efetivamente com os Estados Unidos e com os vizinhos, até mesmo com a Arábia Saudita. O mesmo raciocínio vale para o programa nuclear iraniano. Mas os resultados ainda não estão dados, e teremos portanto de esperar os desdobramentos. Mas insisto: a tendência, ao menos no curto prazo, é a busca de espaço para negociações.
É uma disposição que parece já não existir em relação à Coreia do Norte.
Os Estados Unidos já deixaram bem claro que o tratamento dado à Coreia do Norte será diferente, até porque se trata de um país que já demonstrou possuir armas nucleares, ainda que de pequena potência ou capacidade de destruição. O governo Obama tem buscado agir de forma bem mais incisiva e contundente e articulado com outras potências, principalmente com a China, que tem relações comerciais e financeiras muito estreitas com os norte-americanos e para quem não interessa uma crise nos limites de suas fronteiras. Portanto, há um interesse recíproco, de Estados Unidos e da China, de evitar um agravamento da crise norte-coreana provocada pelos testes com os mísseis.
Ainda assim os Estados Unidos procuram agir em sintonia com a perspectiva do multilateralismo, sem recorrer ao discurso do “eixo do mal’ da era Bush.
Isso mesmo. Note que as ações dos Estados Unidos passam pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelas relações com países como a China, o Japão e a Coreia do Sul. Indica de fato uma mudança de postura.
E as relações com Cuba, outro tema bastante presente na política externa do governo Obama? Como o senhor avalia a autorização para volta da ilha caribenha à Organização dos Estados Americanos?
Não se trata de concessão do governo Obama, mas de resultado alcançado a partir da forte pressão exercida por alguns países latino-americanos, como Venezuela, Bolívia e Equador, que ameaçavam até mesmo romper com a OEA caso não houvesse acordo. E a negociação caminhou justamente no sentido de encontrar uma solução que pudesse ser aceitável para os Estados Unidos. O fim do bloqueio norte-americano a Cuba de fato é um tema em discussão, mas vai depender essencialmente de difíceis negociações que serão travadas no Congresso norte-americano e também das pressões da sociedade. Há certamente uma reorganização das forças sociais nos Estados Unidos, mas a direita ainda é muito poderosa e tem presença marcante no Congresso, em parcela significativa das elites. O debate sobre Cuba deve avançar e o fim do bloqueio é uma possibilidade, mas ainda vai encontrar resistências internas.
O tema do terrorismo, como vem sendo tratado pelo governo Obama?
Há uma negociação para a concreta saída do Iraque, mas em contrapartida a questão do Afeganistão continua sendo tratada como caso de guerra, cenário que parece indicar duas tendências conflitantes. O que acho importante destacar é que muitas das forças presentes nesses países citados não podem ser encaradas como terroristas, pois são forças políticas, que merecem algum tipo de interlocução e não simplesmente tratamento sustentado pela força dos tanques e bombardeios. Mesmo o Taleban é uma força política enraizada no Afeganistão e no Paquistão, ainda que sejam radicais e muitas vezes violentos. Mas representam forças sociais e exigem outras formas de relação, que não o enfrentamento.
Nesse debate, um continente que muitas vezes acaba sendo completamente esquecido é a África...
Pois é, e trata-se de uma região do planeta cada vez mais importante para as pretensões de política externa dos Estados Unidos, principalmente em função do comércio. O problema é a presença cada vez mais marcante da China naquele continente, além das relações históricas estabelecidas com os europeus, por conta dos laços históricos e coloniais, cenários que diminuem a margem de atuação dos Estados Unidos. O grande problema é que parcela significativa das elites africanas tem sérias dificuldades em avançar em direção ao desenvolvimento político e econômico, há problemas de corrupção, de instabilidade social, disputas étnicas, bolsões de pobreza. A emancipação das classes populares africanas está ainda muito longe de ser alcançada.
O presidente Obama afirmou recentemente que o presidente Lula ‘ é o cara’... A tendência é que o Brasil de fato se torne um parceiro cada vez mais próximo dos Estados Unidos?
O Brasil há muito tempo tem defendido um fortalecimento do multilateralismo, uma diversificação nos atores das decisões internacionais, para que o país possa garantir espaços cada vez mais representativos de atuação, que deveria culminar com a conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Com o governo Obama, as relações razoavelmente estáveis e sem conflitos específicos mantidas entre Brasil e Estados Unidos tendem a se intensificar. A atuação próxima dos dois países no debate sobre o retorno de Cuba à OEA é um exemplo recente dessa possível parceria. Mas esse é um cenário antigo, que já vem desde a época do presidente Clinton. No entanto, prevejo possíveis dificuldades no setor comercial. Com o agravamento da crise econômica, há riscos evidentes de tentações protecionistas por parte dos Estados Unidos, cenário que poderia prejudicar setores representativos da economia brasileira e estremecer pontualmente as relações entre os dois países.