Francisco Bicudo, de Paraty
A palestra do biólogo inglês Richard Dawkins na sétima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) terminou com uma pergunta encaminhada pela plateia: depois de morrer, se encontrasse deus, o que o senhor diria para ele?
Dawkins, ateu convicto, não hesitou:
- Primeiro eu perguntaria: que deus é você? Thor? Zeus? Apolo? Um deus maia, asteca ou dos aborígenes australianos? E em seguida me inspiraria em Bertrand Russel para dizer ‘bem, sinto muito, mas não há evidências científicas suficientes para dizer que você é deus’.
As duas tendas (a dos autores, onde aconteceram as palestras, e a do telão, para onde eram transmitidas as conversas) montadas para o evento estavam lotadas. Eram quase duas mil pessoas e uma noite de chuva fina e insistente e de temperatura mais que agradável. O biólogo inglês falou durante pouco mais de uma hora, usando os mais diversos argumentos (e o tradicional bom-humor) para defender a Teoria da Evolução e justificar seu ateísmo.
Segundo ele, somos desde pequenos educados para não criticar a religião. “Vivem nos dizendo que não podemos e não devemos falar mal dos deuses”. Destacou, no entanto, que suas palestras têm sido acompanhadas em todo mundo por públicos cada vez maiores e mais entusiasmados, até mesmo em regiões tidas como ferrenhas adversárias, como o chamado “Cinturão da Bíblia”, no sudeste dos Estados Unidos (região conservadora de forte influência religiosa, da qual fazem parte estados como Oklahoma). “Há muitos ateus que estão saindo do armário e passando a admitir essa condição”.
Engana-se quem acusa o autor de ser agressivo e deselegante com as religiões. Dawkins é certeiro e firme em suas teses, mas trabalha sempre com argumentos. O autor dos livros “Deus, um delírio”, “O gene egoísta” e “A grande história da evolução”, recentemente lançado no Brasil, reconhece ser mundo difícil, quase impossível, idealizar um mundo sem religiões, já que o ser humano precisa de conforto e de consolo, condições muitas vezes encontradas na fé. “Mas isso não quer dizer que algo seja verdadeiro ou realmente exista simplesmente porque você se sente bem”.
Sobre a Bíblia, o biólogo lembrou que a história da humanidade é marcada pelas diferentes narrativas construídas a partir das presenças de mitos grandiosos e maravilhosos, carregadas de beleza poética, com a intenção de explicar a origem da vida. Para ele, o surpreendente é imaginar como um mito específico, o judaico-cristão, acabou ocupando a condição de verdade absoluta. “É totalmente equivocado afirmar que o mundo tem seis mil anos e foi criado em apenas seis dias. Do ponto de vista científico, é uma aberração, algo ultrajante, pois sabemos que o planeta tem quase cinco bilhões de anos”.
Dawkins também refutou a perspectiva de que a religião detém o monopólio da moralidade – em seus livros, aliás, o britânico não perde a oportunidade de destacar que conhece muitos ateus que seguem com muito mais propriedade os princípios morais do que muitos daqueles que se dizem religiosos. “Para muitos que têm fé, fica parecendo que só agem moralmente para alcançar a recompensa do paraíso. Que péssimo motivo moral para se agir de forma moral!”, contestou, durante a palestra.
”Privilégio de viver aqui”
Dawkins não poupou críticas às religiões que são impostas às crianças. Foi enfático: não há criança católica ou muçulmana, mas filhos de casais católicos ou muçulmanos. “É uma das coisas mais cruéis dizer para uma criança qual crença ela deve seguir. Deixe-a crescer, pensar, refletir e escolher por ela mesma”. O biólogo foi longamente aplaudido quando, ao responder sobre o que espera encontrar após a morte, disse que a vida na Terra é a única que temos e que é preciso qualificá-la, valorizá-la e aproveitá-la ao máximo. “Temos o privilégio de viver aqui. Essa é a vida que a gente tem. Não a desperdicem. Ela é única!”.
Quando a comunidade científica comemora os 150 anos de “A origem das espécies”, uma pergunta feita com frequência é: as descobertas e evidências científicas recentes, principalmente as relacionadas à biologia molecular e aos genes, confirmam ou refutam a Teoria da Evolução e as ideias apresentadas ao mundo em 1859 pelo naturalista inglês Charles Darwin? Dawkins mais uma vez não tem dúvidas: “Darwin era um cientista incrivelmente futurista, que acertou na evolução e em seus detalhes, com exceção de seus aspectos genéticos”.
Vale lembrar que, com base no conhecimento disponível na época, Darwin acreditava que a genética era simplesmente a mistura de substâncias masculinas com femininas; se fosse assim, haveria pouca variação (seria como misturar tinta branca com preta e obter sempre a cor cinza, segundo analogia usada pelo próprio Dawkins), e a seleção natural não poderia acontecer. “Darwin foi um pioneiro e sua obra é fácil de ser compreendida pelo público leigo. Aliás, ele queria ser entendido, em uma atitude elogiável e que nem sempre representa a marca e a postura de muitos acadêmicos contemporâneos”.
Mais uma vez com muita convicção e sem usar meias palavras, o pesquisador condenou o darwinismo social, que se aproveita das idéias de Darwin e, a partir de uma leitura enviesada e instrumentalizada delas, tenta defender a supremacia dos mais fortes, tendência que tem no nazismo e na sua apologia da raça pura um dos momentos de ápice – e mais dramáticos e condenáveis da história da humanidade. Para Dawkins, temos também de aprender com Darwin aquilo que devemos evitar. “A Teoria da Evolução explica a origem da vida e a seleção das espécies, ou seja, ajuda a entender o funcionamento da natureza. Não deve, portanto, ser aplicada automaticamente ao planejamento da política ou à vida social. É inescrupuloso. Foi justamente a seleção natural explicada por Darwin quem nos deu um cérebro maravilhoso e inteligente o suficiente para que possamos nos revoltar e nos rebelar contra o darwinismo social. Nesse sentido, somos uma espécie singular, pois podemos lutar contra a natureza”, afirmou, mais uma vez sob aplausos entusiasmados.
Nesse sentido, o mais recente livro de Dawkins lançado no Brasil (“A grande história da evolução”) ajuda a desfazer outra percepção equivocada a respeito das teses de Darwin – aquela que imagina que os seres humanos são perfeitos e ocupam o topo da árvore da vida, lugar que não permitiria mais mudanças ou evoluções. Para escapar dessa armadilha, Dawkins organiza a narrativa como se fosse uma grande romaria, buscando nossos ancestrais e caminhando do presente para o passado mais remoto. “Andamos para trás e vamos cumprimentando nossos ancestrais. Todos buscam o mesmo ponto, a mesma meta, que é a origem da vida. É uma árvore com muitos galhos, mas nenhum é o mais importante”.
E, para aqueles que apreciam as ideias de Dawkins, uma boa notícia: será lançado em outubro no Brasil o livro “O maior espetáculo da Terra”, que também discute a Teoria da Evolução. Eis um pequeno trecho da obra: “A evolução é um fato. Além de qualquer dúvida razoável, além de qualquer dúvida séria, além de uma dúvida sã, bem informada, inteligente, além de toda dúvida, a evolução é um fato. As evidências da evolução são, no mínimo, tão fortes quanto as evidências do Holocausto, mesmo levando em conta que este teve testemunhas oculares. É pura verdade que somos primos do chimpanzé, primos um pouco mais distantes dos macacos, ainda mais distantes do porco-da-terra e do peixe-boi, e mais distantes ainda das bananas e dos nabos... e podemos continuar a lista até onde desejarmos. Isso não precisava ser verdade. Não é evidentemente, tautologicamente, obviamente verdade, e houve um tempo em que a maioria das pessoas, inclusive as instruídas, pensavam que não fosse. Não tinha de ser verdade, mas é. Sabemos disso porque é atestado por uma crescente enxurrada de evidências. A evolução é um fato, e este livro a demonstrará. Nenhum cientista que se preze o contesta, e nenhum leitor imparcial fechará o livro duvidando disso”.
Assim é Richard Dawkins, incisivo, instigante, provocador. É aguardar. E ler.