Por Francisco Bicudo
Pensando no vírus, professor, e levando em consideração que ainda há muita confusão: como é o H1N1, qual a origem e a estrutura dele?
Esse vírus é o resultado da mistura das variantes suína, aviária e humana, representa o encontro dessas três vertentes. Provavelmente é descendente daquela espécie de vírus que provocou a grande epidemia de gripe espanhola, em 1918. Veio sofrendo uma série de mutações até chegar ao formato e à estrutura que tem agora. O vírus é portanto uma combinação de espécies diferentes. Há dúvidas ainda sobre como ele atua no organismo. É sabido que temos alguns vírus da gripe que atacam as células, se multiplicam e por isso causam doenças. Mas se sabe também que há outras variáveis de vírus de gripe que têm outras peculiaridades e que são capazes por exemplo de provocar sintomas e efeitos colaterais, como distúrbios de coagulação do sangue. Ainda não sabemos se o H1N1 faz isso, não houve tempo suficiente para estudá-lo com profundidade, pois estamos sendo obrigados a atender os casos e dar conta da epidemia. As evidências coletadas até agora sugerem que ele é do tipo que mata as células, sem outros efeitos. Mas ainda é preciso aprofundar esse conhecimento.
E por que o H1N1 tem assustado tanto? O que tem de diferente e especial?
Acho que a temos aqui uma convergência de fatores. Em primeiro lugar, trata-se de um vírus novo. Nos últimos 400 anos, a cada período de 30 a 35 anos, aparece um vírus que é resultado dessas misturas. Ao longo desses intervalos, eles vêm sofrendo mudanças pequenas, mas os seres humanos também conseguem se adaptar a essas transformações, ainda que lentamente, e os sustos são pequenos. Mas, nesses períodos de 30 a 35 anos, as mutações são mais intensas e a gente não sabe ao certo o que pode acontecer. A epidemia de gripe espanhola em 1918 foi provocada justamente por uma dessas mutações e matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo, embora naquela época o cenário fosse completamente diferente, a medicina era outra, não havia antibióticos, não havia internação em Unidades de Terapia Intensiva. Em segundo lugar, os dados científicos iniciais revelam que de fato o H1N1 tem um grau de letalidade inferior ao do vírus da gripe convencional. Aproximadamente metade dos infectados pertence claramente aos chamados grupos de risco, como idosos, pessoas com problemas pulmonares, pessoas com sobrepeso. Mas, em relação à outra metade, não conseguimos ainda definir com muita precisão esses fatores de risco. Ficamos na dúvida e um pouco perdidos. Tudo é ainda muito recente, muito novo. Não houve tempo para definir ao certo quem vai evoluir para um quadro grave e perigoso. É fato que o H1N1 está matando menos que o vírus da gripe convencional, mas é verdade também que temos pacientes que em tese não seriam motivo de preocupação e que estão morrendo. Há ainda uma terceira possível linha de raciocínio, que diz respeito à velocidade de propagação da informação. A última epidemia semelhante de gripe que vivemos aconteceu em 1968, quando não tínhamos internet. Hoje, morre alguém no Acre e em cinco minutos e notícia é dada, torna-se pública, fica martelando na nossa cabeça, e ficamos esperando a próxima parcial, os próximos números. No ano passado, nessa mesma época de inverno, os dados do Ministério da Saúde mostram que morreram no Brasil dezessete vezes mais pessoas por gripe convencional que o índice de mortes registrado em 2009 por H1N1. E não fizemos esse barulho todo que se vê agora.
Há vários possíveis desdobramentos em função de sua resposta... Em primeiro lugar, parece que há também mais um grupo de risco que vem sendo considerado pelas autoridades de saúde pública, que são as crianças e os jovens, talvez mais suscetíveis à ação do H1N1.
Não sei se temos informações e evidências científicas suficientes para sustentar esse grupo de risco. Precisaríamos conhecer com mais precisão o total de pessoas que estão pegando a nova gripe. A gente sabe quem está morrendo, mas não se sabe ao certo quantos são os infectados, para que então a proporção possa ser estabelecida e as relações, construídas. A gente sabe que há algumas crianças morrendo, mas não tem como fechar a conta da quantidade total de crianças infectadas. E esses números são fundamentais. Se eu tiver, por exemplo, duas mortes e dez infectados, apenas para construir uma hipótese, o cenário é gravíssimo; se, por outro lado, são duas mortes em um universo de dez milhões de infectados, a situação é bem diferente. Da mesma forma, as grávidas parecem representar um grupo de risco. Qual a chance de uma gestante morrer? Não sabemos ao certo. A gente só consegue mesmo contar as que morreram.
Mas é possível afirmar que o cenário é bem diferente daquele vivido em 1918, quando explodiu a epidemia de gripe espanhola? Parece que aquele episódio ainda funciona como uma referência simbólica muito forte para a população.
É completamente diferente, não há termos de comparação. Não tínhamos antibiótico, não tínhamos UTI, as possibilidades de tratamento eram outras, os hospitais hoje têm muito mais recursos e condições para atender a população de forma adequada. Não é lícito fazer essa comparação.
O senhor fez referência também à gripe convencional. Em 2008, de acordo com números do Ministério da Saúde, a cidade de São Paulo registrou 17 mortes por dia, seis mil no ano, provocadas pela chamada gripe comum. No Brasil, também em 2008, foram mais de 70 mil mortes por gripe comum. E as vítimas fatais da gripe nova, do H1N1, não chegam a 70, até o dia 29 de julho. Ou seja, a gripe comum matou muita gente no ano passado, mas esse cenário passou despercebido da população.
É verdade, essa comparação com a gripe normal é fundamental. É óbvio que ninguém gosta de enfrentar o que estamos enfrentando, que é preciso atenção e cuidados. Mas conversei recentemente com colegas que vivem nos Estados Unidos e em países da Europa, também afetados pela nova gripe, mas que conseguem lidar com o problema de uma forma bem mais serena. No hemisfério norte, o inverno é bem mais rigoroso, as temperaturas são muito mais frias, e a gripe é algo sempre muito presente. Quando um novo vírus surge, as perguntas que eles se fazem são: é mais grave? É mais mortal? Se não for, as providências de combate são encaminhadas com muito mais naturalidade. Aqui, em função das condições climáticas mais amenas e favoráveis, de um inverno mais curto, parece que não estamos muito acostumados a pensar o que é uma gripe. Por conta de todo o barulho que está agora sendo feito, estamos repentinamente sendo obrigados a ter a dimensão do que é uma gripe. Parece que não sabíamos o que era isso. E ficamos assustados.
Como o senhor avalia a cobertura jornalística sobre o assunto? O noticiário é equilibrado e presta serviço ou, ao contrário, está ajudando a amplificar o clima de pânico?
Acho que temos um pouco de tudo. Há veículos e matérias conscientes e sensatas, com informações que se propõem a ajudar a reduzir esse pânico, que procuram orientar e acalmar a população. Essa parece ser a tendência dominante. Mas temos também exageros e discursos que escapam para o sensacionalismo.
O ombudsman da Folha de São Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, dedicou sua coluna do último domingo justamente para criticar com muita ênfase a manchete de primeira página da edição do jornal de 19 de julho, um domingo, e que dizia que “a gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em dois meses”. Para o ombudsman, “foi um dos mais graves erros jornalísticos cometidos pelo jornal” desde que ele assumiu o cargo, em abril de 2008, já que o verbo que deveria ter sido usado era “pode”, e não “deve”; além disso, a matéria era sustentada por um modelo matemático questionável, “pois baseado em dados de pandemias anteriores e que visavam formular cenários para a gripe aviária (H5N1)”.
Concordo com ele. Esse é certamente um exemplo evidente de discurso irresponsável. Não há como sustentar a afirmação da manchete.
E como o senhor avalia a medida adotada pela Secretaria de Educação de São Paulo, que sustentada por uma recomendação da Secretaria Estadual de Saúde, decidiu adiar para 17 de agosto o início do semestre letivo?
A resposta é certamente difícil e vou tentar ponderar algumas coisas. Li recentemente alguns artigos que indicam que esse tipo de medida tem uma certa eficácia, que vai ser maior ou menor em função de um conjunto de atitudes que eu não sei se as autoridades públicas terão condições de adotar. Um estudo publicado pela revista Lancet comparou medidas adotadas nas epidemias de gripe de 1918, de 1957 e de 1968. Claro que eram mundos diferentes. Mas, mesmo com todas as limitações de interpretação, o que esse estudo revela é que, se fechar só as escolas, o impacto é muito pequeno, restrito. Se as crianças e jovens começarem, por exemplo, a freqüentar os shoppings centers, essa eficácia desaparece. Agora, se fechar, além das escolas, os restaurantes, os teatros, os cinemas, os clubes, as igrejas, os estádios de futebol, ou seja, outros espaços importantes de convivência pública, o estudo mostra que as taxas de redução no número de casos poderiam chegar a algo em torno de 15% a 40%. Os números variam exatamente em função do alcance das medidas e das naturezas dos estabelecimentos fechados. Agora, o que acho que precisamos também avaliar é o momento vivido pela epidemia no Brasil. Se temos 200 casos novos por dia, significa que podemos estar no pico, e fechar escolas poderá então ter um impacto grande. Mas se são apenas cinco novos registros diários, o fechamento das escolas provavelmente vai reduzir muito pouco ou mesmo nada esse número. E o grande problema, como já disse, nossa grande dificuldade é que ainda não sabemos quantos casos novos de infecção estão aparecendo diariamente no Brasil. Técnica e politicamente, precisaríamos ter esses números, para monitorá-los, e depois avaliar e recomendar o fechamento gradual de diferentes tipos de estabelecimentos, se fosse o caso, para em seguida podermos então analisar os impactos, fazendo as devidas análises, comparações e cruzamentos. Esse seria, acredito, o encaminhamento mais adequado. Não podemos confiar em ações isoladas. O que se deseja é um contexto de iniciativas coordenadas e articuladas. Sei que não seria fácil, teríamos impactos econômicos inclusive. Mas confesso que tenho receio de fechar as escolas sem ter dados mais precisos e de provocar o efeito contrário ao que se deseja alcançar.
No imaginário popular, não se corre ainda o risco de isolar o problema e de certa forma indicar que o único foco de transmissão seriam as escolas e que, com os estabelecimentos de ensino sem funcionar, o risco seria eliminado? Não se pode passar uma falsa sensação de segurança?
Certamente. Esse é um problema, responsabilizar apenas as escolas. Mas para onde irão os estudantes que não vão frequentar as aulas? Para os shoppings centers? Para os cinemas? Para os bares? Não vai resolver. No limite, o ideal seria que todos ficássemos fechados em casa, mas ainda assim estaríamos correndo riscos, pois a presença de apenas um infectado poderia por exemplo espalhar o vírus para outras dez pessoas sadias presentes. O H1N1, afinal, já está circulando livremente no país. Superamos aquela fase inicial onde as contaminações só aconteciam por contato com pessoas que tivessem vindo de regiões consideradas focos da epidemia, como o México ou a Argentina. O vírus está espalhado.
E o período de quinze dias, que corresponde ao adiamento das aulas, é suficiente para minimizar os riscos e tentar controlar a situação? Por que esse tempo? No dia 17 de agosto, não estaremos ainda em pleno inverno?
É uma questão também bastante pertinente. É achismo meu, um palpite, mas imagino que o que se levou em consideração foi o cenário meteorológico, acreditando que em quinze dias as temperaturas estarão mais altas, que as janelas poderão ficar mais tempo abertas, que a ventilação vai se intensificar, diminuindo assim as chances de contaminação. Creio que esse tenha sido o cálculo.
O sistema de saúde do país está preparado para dar conta da epidemia?
Acho que o sistema de país algum está preparado. Na Argentina, alunos de medicina foram convocados e treinados para atender à população, embora ainda não fossem formados. Foi uma medida emergencial. É verdade que o Brasil avançou muito nessa área nos últimos quinze anos. Mas ainda temos uma série de deficiências.
E as recomendações de prevenção e cuidados continuam sendo aqueles corriqueiros, mas importantíssimos...
Sim, não há nada de novo. É preciso lavar as mãos com frequência, com água e sabão. Álcool em gel também é bom, mas não imprescindível. Se não tiver, não há problema. Água e sabão são suficientes. É preciso, claro, evitar contato com pessoas infectadas, não compartilhar copos e talheres, evitar levar as mãos à boca e aos olhos e procurar manter arejados os ambientes. São medidas simples, mas eficientes. Além disso, deve-se procurar hospitais e centros de saúde quando aparecerem sintomas como dor de cabeça, febre em torno de 39 graus, dores musculares, dor de garganta e tosse. A auto-medicação precisa ser evitada.
Como os professores podem ajudar?
Servindo como referência e exemplo. Vi recentemente uma reportagem na televisão que mostrava uma professora em escola de São Paulo ensinando cada um de seus alunos a lavar as mãos, com muita dedicação e competência. E aí eu realmente fico em dúvida se é melhor essas crianças ficarem em casa ou frequentarem mesmo a escola, onde estão aprendendo um procedimento de prevenção importantíssimo. E esse aprendizado é coletivo, pois o professor é um agente de cidadania, tende a ser imitado pela criançada, e é muito importante que ele saiba como ocupar esse espaço e como dar conta desse papel de liderança. É preciso abrir a discussão sobre a nova gripe nas salas de aula, trabalhando a informação com equilíbrio e responsabilidade, mas sem proibições ou tabus.