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Entrevista com a historiadora Priscila Perazzo

As pessoas tendem a ligar campos de concentração à Alemanha nazista. Em seu livro, no entanto, a senhora aponta que essa prática é anterior ao III Reich e não é também uma exclusividade do século XX.
Os campos de concentração de prisioneiros de guerra, como os que existiram no Brasil, não foram criação de Hitler na Alemanha, nem foram uma prática exclusiva daquele país, ao contrário do que se costuma imaginar. Na verdade, eles são até recorrentes ao longo de todo o século XX. E é importante lembrar que os campos nazistas instalados na Polônia e em outras regiões chegaram a extremos e se converteram em campos de extermínio. Aqui no Brasil e em outras localidades, o que existiu foram campos de internação de prisioneiros de guerra, de civis, era uma outra forma. Naquela época, eles existiram em vários países da América Latina também. Aliás, campos dessa natureza já aparecem por exemplo na Guerra dos Boxers, na África do Sul (1899-1900), e se multiplicam ao longo de todo o século XX.

Mas a gente não costuma ouvir falar desses campos, ou seja, trata-se de espaços ou práticas que são esquecidas, de momentos nebulosos das histórias dos diferentes países?
Olha, no mundo todo existem histórias que não são muito contadas. E isso se deve a vários fatores. De um modo geral, acaba chegando às páginas da História tradicionalmente ensinada aquilo que chamou a atenção, que divergiu do comum. E como naquela época essa prática dos campos era, como eu disse, comum, disseminada, isso acabou ficando meio de lado. Vários países adotaram essa política. Vale lembrar que já o século XIX foi um século de lutas intensas na Europa e naquele momento certamente já existiam esses campos de prisioneiros. Mais do que isso, a repressão violenta e desmedida dos inimigos que se envolviam nas várias disputas era algo frequente, aceitável até. Por isso os campos de concentração não se destacaram das outras práticas. Falando especificamente do Brasil, a gente precisa entender que, a partir do início dos anos 1990, a História que se começa a escrever desse país é uma nova história, com muito mais dados, com mais abertura e com muito mais possibilidades de busca. Essa noção de respeito aos seres humanos é uma coisa relativamente nova, recente, começa a aparecer na historiografia francesa na década de 1960, por exemplo.

Aqui no Brasil esse cenário também era frequente?
Eu tive acesso a pesquisas realizadas no Ceará e que relatam que nos anos de 1915 a 1930, por exemplo, cidades como Fortaleza implantaram campos de refugiados da seca. Nesse período, as grandes cidades do Brasil estavam passando por remodelações urbanísticas, se industrializando e modernizando, e os retirantes, segundo as autoridades da época, poderiam comprometer esse avanço. Eles eram mantidos nesses campos então. Não eram prisioneiros, mas eram confinados ali. Portanto a prática já existia, mesmo fora da guerra. O próprio Hitler já lançava mão desse recurso antes mesmo de começada a II Guerra. Também não dá para esquecer que Apolônio de Carvalho, histórico militante comunista brasileiro que foi lutar na Guerra Civil Espanhola, também ficou preso num campo no norte da África e relatou tudo isso anos depois, naquele livro Vale a pena sonhar (depois transformado em documentário, disponível em DVD). O que eu preciso deixar bem claro aqui é que quando a gente conta que as práticas eram diferentes não estamos fazendo julgamentos de valores, como se prender um fosse menos grave que prender 100 pessoas. Ou como se só torturar fosse menos grave que exterminar. Não dá para medir assim, desrespeito à vida humana não dá para quantificar. O que a gente pode fazer é contextualizar, entender, contar o que aconteceu e apontar semelhanças e diferenças.

O primeiro campo para os chamados súditos do Eixo no Brasil foi implantado em 1942. Por que essa data e por que essa política?
Desde o início da guerra, os Aliados já recorriam a essa medida. Os norte-americanos, mesmo antes do ataque à base naval de Pearl Harbor, tinham campos para confinar os japoneses. Quando o Brasil se coloca ao lado dos Aliados, já no início da guerra, passa a ser cobrado para, além de discurso, tomar medidas práticas de apoio ao bloco e de repressão aos inimigos. A exigência foi aumentando e, em 1942, o Brasil precisa adotar essas medidas. O governo opta então pela implantação de campos de internação de súditos do Eixo. Eu pesquisei essa implantação e a discussão sobre o que deveria ser feito e como, quais seriam as regras a cumprir.

A senhora estudou as discussões internas do governo? E encontrou quais informações importantes?
Sim, toda a sistematização dessa política. E encontrei por exemplo que não havia até aquele momento nenhuma regulamentação para as condutas em campos de civis. O que existia era a Convenção de Genebra, de 1929, que pontuava a respeito de campos de militares. Como não havia nada para os civis, o Brasil decide seguir a Convenção de Genebra, que era bem específica no que diz respeito às instalações, ao tratamento dos presos, aos trabalhos, à alimentação, as correspondências. E como é bem frequente nesses casos, quando não há legislação e um país toma uma decisão, os outros países signatários passam a seguir aquela normativa. Ou seja, o Brasil lançou uma tendência. Eu segui então toda a discussão para a implantação, para as normas e a posterior dificuldade dos estados (Pará, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) para implantar o que havia sido determinado nacionalmente. Esse é um país muito grande. A realidade de cada estado é muito diversa do outro.

E afinal quem esses campos prenderam?
Depois de toda a discussão, foram implantados, nos estados que já identifiquei, e ficou decidido que seriam internados os súditos do Eixo que comprovadamente tivessem ligações com o nazismo, ou que fizessem espionagem. De fato foram presos alemães, italianos e japoneses que moravam aqui, ou que eram tripulantes de navios. Muitos eram funcionários de empresas alemãs ou italianas, que acabavam aderindo ao ideário nazi-fascista não por uma questão de ideologia ou crença, mas porque viam naquele ideário a própria pátria. E, no caso da Alemanha, vale lembrar, era a pátria que saía de um longo período de trevas.

Quais as fontes que a senhora pesquisou?
Tive acesso aos arquivos do Itamaraty e a toda a correspondência trocada entre os diplomatas brasileiros e as representações dos aliados e também com as instâncias governamentais nacionais. Toda a discussão sobre implantação dos campos, as normas de conduta, a opção pela Convenção de Genebra, as investigações, a decisão de quem seria preso, se seriam todos os alemães, se só alguns... Está tudo ali nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores.

A senhora também conheceu as localidades em que os campos de concentração foram instalados ou teve acesso a relatos de presos?
Pude viajar a cada lugar onde houve um campo de prisioneiros. O problema é que só restou a memória dos moradores dos lugares. De memória arquitetônica não sobrou nada. Os presídios de Ilha Grande e da Ilha das Flores no Rio de Janeiro ainda estão lá, mas ninguém sabe dizer ao certo em que ala, ou em que cela ficaram os alemães. Nem o registro de quantos súditos foram presos no total. Até onde a gente conseguiu contar, o número varia entre 1000 e 2000 prisioneiros. Não é muito se você pensar em outros campos pelo mundo, mas é uma boa quantidade de gente. E eram, na maioria absoluta, homens. As raríssimas mulheres foram presas junto com os maridos, mas são casos especialíssimos.

A senhora estudou os relatos dos prisioneiros? O que eles contam e que marcas ficaram dessas prisões?
Muitas marcas ficaram. Conheci, por exemplo, a filha de um alemão, funcionário gabaritado de uma empresa alemã em Santa Catarina. Ele foi acusado de espionagem e foi preso. Independentemente de apontar se ele era ou não ligado aos nazistas – engraçado porque ninguém na família conseguiu descobrir se era mesmo ou não e ele foi absolvido no julgamento –, a história dele serve para revelar um pouco quem eram esses presos. A filha conta que o pai era um antes da prisão e voltou outro três anos depois. Ele nunca mais sorriu depois que voltou, perdeu o posto na empresa. A família nunca mais comemorou as festas alemãs típicas. E, enquanto o pai estava preso, a mãe e as três filhas não tinham notícias, passaram muitas privações, dificuldades mesmo. Elas tiveram direito a três visitas, não recebiam as cartas do pai e só depois souberam que ele havia sido transferido de Joinville para o Rio de Janeiro. O dano que a prisão no campo provocou nos prisioneiros e nas famílias é algo muito grande.

E como eram as condições nos campos?
Os presos não relatam torturas, fome ou condições desumanas nos campos de concentração, mas nunca era uma condição confortável. Eles eram obrigados a fazer todos os trabalhos. A higiene, a comida, a manutenção. Também plantavam, colhiam e criavam animais em alguns estados. Em um dos campos, em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, houve uma ocasião em que os prisioneiros se recusaram a trabalhar e foram punidos. Foram levados a um estábulo, despidos e obrigados a dormir no chão, sem cama e sem colchão, que tinha sido encharcado. Alguns também revelam as dificuldades em relação a doenças. Alguns já chegavam lá com problemas de coração, com insuficiência renal e tinham dificuldade em continuar o tratamento. Outros adoeciam lá e o tratamento não acontecia. Teve casos de transferência para hospital, mas foram raros e era uma operação cheia de dificuldades.

Como e quando os campos de concentração deixaram de funcionar e o que aconteceu aos prisioneiros? De que forma essa experiência chegou ao fim?
Paulatinamente, entre a rendição da Alemanha, em maio, e a do Japão, em setembro, os campos foram sendo esvaziados. O governo foi soltando os prisioneiros. Eles haviam se beneficiado minimamente da condição de prisioneiros de guerra – até pela Convenção de Genebra que garantia isso –, mas ao sair se viram em situação bem difícil. Sem dinheiro, sem documento, com a vida em família arrasada. Alguns tripulantes de navio não podiam nem ficar no país e nem sair, porque não tinham os documentos. A embaixada da Espanha, que representava o Eixo e que socorria as famílias dos prisioneiros, foi fechada e não deixou alternativas. Reconstruir a vida, contam os relatos e os familiares, foi bem difícil.

Serviço: Prisioneiros da guerra: os “súditos do Eixo” nos campos de concentração brasileiros (1942-1945), de Priscila Perazzo, será lançado em 22/08, às 11h, na Pinacoteca do Estado, no espaço onde funcionou o prédio do Dops (Largo General Osório, 66).
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