Por Francisco Bicudo
As células-tronco embrionárias escaparam dos limites dos laboratórios de pesquisa e deixaram de ser assunto exclusivo dos cientistas para se tornarem mais conhecidas do leigo e se aproximarem definitivamente do universo de compreensão do grande público em 2008, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), em um julgamento considerado histórico, discutiu se o Brasil poderia continuar ou não desenvolvendo estudos nessa área.
Uma das grandes apostas dos pesquisadores, as células-tronco embrionárias são chamadas de “curingas”, justamente porque, os indícios científicos apontam, têm a capacidade de se transformar em qualquer tecido, representando expectativa de tratamento, ainda que a longo prazo, para distrofias musculares, problemas cardíacos e doenças como os males de Parkinson e Alzheimer, dentre outros. Já as células-tronco adultas, obtidas principalmente da medula óssea, do cordão umbilical e da polpa dos dentes, por não serem tão jovens, manifestam limitações e conseguem se diferenciar apenas em alguns tecidos. Essa é a vantagem. Mas, se é assim, por que a questão chegou até Brasília e teve de ser julgada pela mais alta Corte do país?
Grupos religiosos argumentam que, quando o embrião é usado em pesquisa, uma vida acaba sendo destruída – e essa dimensão se colocaria contra a Constituição brasileira, que garante, em seu artigo 5º, o direito à inviolabilidade da vida. Em uma decisão apertada – seis votos contra cinco –, o Supremo decidiu, em maio de 2008, autorizar as pesquisas; em seu voto, o relator da matéria, ministro Carlos Ayres de Britto, pautou o debate, afirmando que não há inconstitucionalidade nos procedimentos, e defendeu o direito à saúde e ao avanço científico, argumentando ainda que “para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano” e que “o zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado”.
Pesquisas permitidas
A decisão representou uma espécie de divisor de águas – a partir dela, estão permitidas as pesquisas envolvendo embriões congelados há pelo menos três anos em clínicas de fertilização assistida e que seriam descartados (ou seja, jogados no lixo), e desde que exista a autorização prévia dos responsáveis. O julgamento foi comemorado pela comunidade científica, que respirou aliviada, e ajudou a dissipar o receio de que os estudos pudessem ser interrompidos. Com as regras legais claras e estabelecidas, o financiamento oferecido por agências de fomento se ampliou e diversificou. No entanto, os trabalhos com células-tronco embrionárias ainda caminham a passos lentos no Brasil.
“É uma área muito recente, carente de pesquisadores, de grupos sustentados, de parcerias e de integração, embora não falte dinheiro. De certa forma, esse é um traço mais geral da nossa ciência, que avança, certamente, mas não com a velocidade que gostaríamos. Apenas em uma pequena cidade da Califórnia, há mais pesquisadores atuando nesse segmento do que no Brasil inteiro”, compara Stevens Rehen, diretor de pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das principais autoridades brasileiras quando o assunto são as células embrionárias. Para ele, a oposição manifestada por grupos religiosos às pesquisas não é a razão desse atraso e lentidão na consolidação dos estudos com as embrionárias. “Esse debate ético foi importante à época do julgamento no Supremo, permitiu que ciência e religião apresentassem seus argumentos sobre o tema, mas a discussão entre fé e razão ficou concentrada naquele momento. Nesse sentido, os trabalhos não sofrem mais qualquer espécie de restrição. O que acontece é que estamos definindo áreas estratégicas de investimento, tentando equipar os laboratórios e atrair pesquisadores qualificados. É um processo longo, mas está acontecendo”, afirma Rehen.
Um desses avanços pôde ser comemorado em outubro de 2008, quando um grupo de pesquisa do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) liderado pela geneticista Lygia da Veiga Pereira, em trabalho desenvolvido em parceria com a equipe de Rehen na UFRJ, anunciou o desenvolvimento da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias, chamada de BR-1. O domínio dessa técnica é fundamental, já que não basta ter apenas o embrião – é preciso obter, a partir dele, em laboratório, em condições especiais e complexas, uma cultura de células chamadas pluripotentes, que recebem esse nome justamente porque manifestam a condição de se transformar em qualquer tecido. O ganho está também na autonomia e na auto-suficiência científica e tecnológica, minimizando a necessidade de importação de células e permitindo que outros laboratórios do país sejam abastecidos com a linhagem nacional. Além disso, há no mundo diferentes estratégias e protocolos sendo seguidos na obtenção de células-tronco embrionárias com qualidade e em quantidade suficiente para aplicação em pesquisas – ou seja, são distintos os caminhos para se chegar às linhagens. “E ainda não há definição a respeito da melhor linhagem. Podemos contribuir com as comparações e ajudar a definir consensos”, analisa Rehen.
Conquistas já alcançadas
O pesquisador da UFRJ lembra que, se os estudos brasileiros com as embrionárias ainda estão em estágio bem inicial, as conquistas alcançadas por trabalhos envolvendo as adultas são evidentes e importantes, reunindo cada vez mais evidências de que essas células de fato terão contribuições significativas nos tratamentos de problemas de coração e de fígado e do diabetes, por exemplo. Em abril de 2007, liderada por Julio Cesar Voltarelli, uma equipe do Centro de Terapia Celular (CTC) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) demonstrou que injeções de células-tronco adultas, retiradas da medula óssea, são capazes de combater o diabetes do tipo 1 (também conhecido como juvenil, por em geral afetar pessoas com menos de 20 anos) e eliminar a exigência de o paciente receber doses diárias de insulina. Para Rehen, a dedicação mais intensa aos trabalhos com as adultas, onde, garante, o Brasil pode ser considerado referência internacional, deve-se ao fato de as pesquisas envolverem riscos menores e potencial amplificado de aplicação clínica mais rápida. “A preferência pelas adultas se manifesta em todos os países, até porque os primeiros trabalhos com células da medula surgiram na década de 1970 e portanto já se sabe com mais precisão como podem funcionar em seres humanos”, completa.
E quando olhamos para o cenário internacional, não é difícil identificar as histórias que a ciência já é capaz de contar sobre as células-tronco embrionárias. “Já entendemos boa parte do funcionamento delas, a capacidade de diferenciação, como se comportam em organismos animais. As dúvidas ainda estão relacionadas aos seres humanos”, diz Rehen. Ele destaca que um dos grandes desafios que precisa ser superado pelos cientistas reside no fato de a diferenciação celular abrir espaço para o surgimento de teratomas – pequenos e indesejados tumores. Aqui, vale detalhar uma importante contradição: quando o teratoma se manifesta nos estágios iniciais de pesquisa, antes da diferenciação celular, é de certa forma bem-vindo, pois significa indício de pluripotência da célula; no entanto, quando o tumor surge já depois do processo de diferenciação, representa problema e não é bom sinal, já que pode contaminar outros tecidos. Rehen explica: “Para ter uma célula pluripotente, o teratoma inicialmente precisa aparecer. Mas, quando estamos trabalhando, por exemplo, com a doença de Parkinson, e usamos as embrionárias como matéria-prima para se transformar em neurônios capazes de produzir o neurotransmissor dopamina em uma região específica do cérebro, alcançamos em geral um índice de sucesso de 70%. Os outros 30% são teratoma, e precisam ser excluídos”. Uma das estratégias usadas consiste em tentar isolar os remanescentes que representam perigo, usando para tanto anticorpos, “que conseguem reconhecer proteínas de membranas celulares e assim auxiliam na eliminação dos teratomas daquela população ou cultura”, completa o pesquisador carioca.
Debate ético
A ciência também já foi capaz de idealizar alternativas ao debate ético que se coloca com a religião a respeito do início da vida e da possível destruição de embriões quando grupos japoneses e norte-americanos anunciaram, no final de 2007, que tinham conseguido reprogramar células da pele, fazendo com que assumissem características de células-tronco embrionárias. A técnica consiste essencialmente em usar uma “máquina do tempo” e patrocinar uma espécie de viagem ao passado, rejuvenescendo as células da pele. O problema é que essa dinâmica de rejuvenescimento se dá a partir da inserção de fragmentos de vírus, o que pode resultar em efeitos colaterais indesejáveis, como o aparecimento de tumores. “Um grupo de pesquisas na Califórnia já conseguiu resultados interessantes, substituindo o vírus por proteína”, conta Rehen. “Mas, até agora, não foi possível reproduzir esses estudos em outros laboratórios, o que indica que se trata de um processo muito difícil, que só acontece em condições muito especiais”, completa.
Mais recentemente, em janeiro último, pesquisadores da Universidade de Stanford, na Califórnia, conseguiram transformar uma célula da pele diretamente em um neurônio, sem passar pelo estágio embrionário intermediário. Mas, se essas novas possibilidades minimizam as disputas entre ciência e religião sobre os limites da vida, certamente conduzem a novos debates éticos que prometem ser também bastante acalorados. “E se, depois de uma pessoa morrer, for retirada dela uma célula da pele, depois reprogramada e transformada em espermatozóide capaz de fecundar uma pessoa, mas carregando a carga genética daquela que já morreu?”, ilustra hipoteticamente Rehen, sugerindo que as discussões não serão de pequena monta. Ele lembra, no entanto, que os avanços científicos sempre se deram dessa maneira: surgiram dúvidas e resistências quando os primeiros transplantes de coração começaram a ser feitos (seria razoável substituir um órgão deficiente?); foi assim também com a reprodução assistida e os bebês de proveta (a fecundação não seria um ato divino, natural?). “São debates normais, saudáveis, que se sucedem e se renovam. A ciência aponta caminhos. A sociedade faz opções. Sempre foi assim”, faz questão de ressaltar o pesquisador da UFRJ.
Rehen avalia que os primeiros testes clínicos envolvendo células-tronco embrionárias e seres humanos devam acontecer ainda em 2010. Há pelo menos duas empresas norte-americanas que solicitaram ao Food and Drug Administration (órgão regulador) autorização para estudar os efeitos da terapia em lesões de medula espinhal e em reconstituição da retina. O pesquisador brasileiro diz que é preciso ter cautela e paciência e condena os tratamentos que muitas vezes são oferecidos como panaceia pela China e por países do leste europeu, onde as células-tronco estão sendo aplicadas em humanos sem que os experimentos com animais tenham sido esgotados. “Os riscos são imensos, não há efetiva segurança sobre os benefícios e os efeitos dos tratamentos podem ser efêmeros e pontuais”, alerta. Ele usa como exemplo procedimentos que combinam injeções de células-tronco com fisioterapia, melhorando movimentos de pessoas que sofrem com paralisia dos membros. Como os artigos via de regra não são publicados e as metodologias desses estudos permanecem obscuras, não se sabe ao certo se a recuperação parcial de movimentos se dá por conta das células ou da fisioterapia. “Obviamente entendemos que pacientes angustiados se apeguem a essas promessas. Mas é um cenário preocupante, em função dos riscos envolvidos”.
Na entrevista que deu ao site do SINPRO-SP, Rehen também comentou reportagem publicada pelo jornal Folha de S. Paulo de 16 de fevereiro, que relata que “alguns dos principais especialistas do ramo (área de células-tronco) decidiram lançar um manifesto contra a maneira como os estudos sobre o tema são selecionados para publicação nas principais revistas científicas. Esse "vestibular" teria se transformado numa panelinha, que barra a divulgação de dados importantes para manter seu próprio prestígio, acusam eles”. O pesquisador da UFRJ lembra que cientistas são seres humanos muitas vezes movidos por vaidades e que a competição por resultados é sempre intensa, o que pode gerar distorções e imperfeições. “Mas é importante que a sociedade tenha convicção que a publicação dos estudos em revistas sérias e a revisão por pares são as melhores formas de divulgar para a sociedade a ciência bem feita que é desenvolvida nos laboratórios”, define.
Por fim, Rehen falou sobre as dificuldades – e os prazeres – de estudar as células-tronco embrionárias. Clique aqui para ouvir o áudio com o depoimento.