O relatório norte-americano cita textualmente a cultura da cana como o maior foco de utilização da mão-de-obra escrava. É essa a situação que também tem sido identificada por vocês?
Se você olhar as estatísticas dos últimos dez anos, vai encontrar que o maior número de trabalhadores escravos libertados é proveniente mesmo das lavouras de cana-de-açúcar. Mas essa cultura não detém a maior quantidade de escravos. A pecuária, até pelo feitio mesmo da produção, tem muito mais casos. Nas fronteiras de expansão agrícola, a pecuária é a primeira atividade econômica que chega. Então o fazendeiro chama os peões para cortar madeira, limpar o mato e para tocar o gado no pasto novo. Esse trabalho, muitas vezes, é qualificado como escravo. Mas não chama tanta atenção porque, quando esses trabalhadores são libertados, o número é menor. São dois, três, dez no máximo. Na cultura da cana, só no ano passado, foram dois mil libertados. Aí você nota a diferença dos números.
Quando falamos em trabalho escravo, estamos falando mais especificamente de quais cenários?
Essa é uma boa pergunta, porque essa questão da escravidão ainda é tema de muitas discussões dentro e fora do governo. A questão é classificada pelo Código Penal, mas a definição depende de uma série de avaliações e isso causa tanto debate. Mas, de um modo geral, trabalho escravo é aquele em que o trabalhador não tem as condições mínimas para sobreviver e para desenvolver suas tarefas. Então quando não tem água potável, quando não tem uma casa ou um lugar apropriado para dormir, quando o trabalhador é impedido de sair da fazenda – seja por falta de transporte, seja por imposição de seguranças armados –, quando o empregado tem alguma restrição sobre o pagamento – por conta de dívidas com o armazém ou qualquer coisa parecida – e aí não recebe o pagamento, tudo isso é considerado trabalho escravo.
Ou seja, quando a situação é extremamente degradante...
Isso mesmo, quando a precarização é tão grande, configura trabalho escravo.
E como vocês atuam para identificar, denunciar e combater o trabalho escravo?
O primeiro trabalho é de monitoramento. A gente fica em contato direto com as regiões onde há maior incidência de trabalho rural precarizado e faz um acompanhamento da safra não em relação à economia, mas em relação à questão socioambiental. A cada ano, a imprensa divulga o balanço econômico das principais culturas do país e a gente faz o mesmo, mas em relação ao trabalho e ao meio-ambiente. Nesse trabalho a gente analisa tudo, inclusive o trabalho escravo. A gente olha os salários (subiu ou caiu de um ano para o outro? E por quê?), se houve greve ou outras movimentações dos trabalhadores e tenta entender por que aquilo está acontecendo. De 2002 a 2007, a safra da cana, por exemplo, foi muito bem e os ganhos dos empregados cresceram. Em 2008, teve a crise do preço do álcool e os salários caíram. O resultado é que houve muitas greves de trabalhadores rurais naquele ano. E apesar do apoio expresso do governo a esse setor, de o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) investir pesadamente no setor, a situação do trabalhador ainda é muito ruim, muito precária.
Há uma rede específica que auxilia nessa tarefa de monitoramento?
Temos uma rede de parceiros em muitos estados do país, que são outras ONGs, sindicatos rurais, além do Ministério Público e do Ministério Público do Trabalho. Também colhemos os relatos dos auditores do trabalho e dos funcionários do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Eles contam o que acontece em cada localidade e a gente vai até lá averiguar as informações, fazemos trabalho de campo mesmo, vamos até as fazendas e analisamos os dados. A Repórter Brasil também tem um escritório avançado na região do Bico do Papagaio, no Tocantins, num lugar de acesso bem complicado. Os pesquisadores vão até a região e conferem tudo, confirmam os dados e reportam a situação. Aí a gente faz um relatório bem profundo e completo. Caso seja necessário, a gente faz uma denúncia, entrega os dados para o Ministério Público e eles dão seguimento à ação.
E o que vocês encontram de fato nesse trabalho de campo?
O Brasil é um país enorme e em cada região a gente encontra situações diferentes, às vezes bem diferentes mesmo. Em São Paulo, por exemplo, metade da cultura da cana é mecanizada. É a região em que encontramos um maior uso da tecnologia e problemas ambientais e sociais muito específicos. Mas aqui em São Paulo não encontramos trabalho escravo. Por outro lado, se você for para o interior de Minas Gerais, de Goiás e de Mato Grosso do Sul, regiões onde a cana ainda está chegando, aí sim tem trabalho precarizado.
O que é que faz a diferença em São Paulo?
A cultura da cana é bem antiga em São Paulo, remete ainda ao tempo da colonização. Por isso e por uma situação econômica bem avançada, a gente vê uma maior atuação do estado, das ONGs, dos sindicatos, de forma que você encontra outras violações, como a falta de transporte adequado, a falta de equipamento e jornada de trabalho abusiva, mas não encontra trabalho escravo.
Você falou em 2 mil trabalhadores libertados no Brasil no ano passado, apenas na cultura da cana. Por que foi que chegamos a essa situação?
As análises são bem variadas e se você buscar as pesquisas acadêmicas, vai encontrar uma série de hipóteses. Culturais, econômicas e políticas, principalmente. Trabalhando há tanto tempo nesse tema, encontramos três pontos mais importantes: o primeiro é a ausência de um Estado fiscalizador. E quero ressaltar aqui que não é a ausência de Estado, porque o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) está lá, o Ibama às vezes também está, o Banco do Brasil e o BNDES também financiam ações nessas regiões, mas falta fiscalização. Em São Paulo tem mais fiscalização que no Mato Grosso do Sul e, comprovadamente, tem mais trabalho escravo no segundo estado. Da mesma forma, a sociedade civil é mais organizada em algumas regiões. Ali, os sindicatos são mais atuantes, as organizações não governamentais também e aí o trabalho é menos precário e não se encontram escravos. Esse é, portanto, o segundo ponto para a situação ficar como está hoje.
Antes de falarmos na terceira razão, gostaria que o senhor comentasse o que mais especificamente impede o poder público de se fazer presente em algumas regiões.
Acontece que falta gente. Ouvimos tanto falar em inchaço da máquina pública, mas nessa frente de fiscalização faltam funcionários mesmo. Em Goiás, na região de Rio Verde, por exemplo, a cultura da soja já é antiga, mas a de cana é nova. Para aquela região toda, são apenas quatro fiscais do Ibama. Para o estado de São Paulo, são 24 fiscais e, uma parte deles integra um grupo super capacitado para fazer a auditoria das condições de trabalho.
E a terceira razão para ainda encontrarmos trabalho escravo no país?
É econômica mesmo. Alguns fazendeiros ainda têm uma mentalidade de conseguir lucro a qualquer custo, social e ambiental inclusive. Uma folha de pagamento muito enxuta reduz os custos de qualquer empresa. É isso que o trabalho precário garante aos empresários rurais. E se a fiscalização não combate isso, quem pode combater? A cadeia econômica. Um dos trabalhos mais importantes das ONGs dessa área é tentar convencer outros elos da cadeia econômica a não manter relações com quem usa trabalho escravo, por exemplo. Ou seja, bancos não deviam dar financiamento, transportadoras podiam se recusar a buscar a safra e assim por diante. Dessa maneira, a opção pelo trabalho não escravo vira uma condição básica para continuar no mercado, de maneira competitiva. No Pacto contra o Trabalho Escravo (programa lançado pelo governo federal em 2003), assinado por ONGs, sindicatos, governos e outras entidades, existe uma intenção muito grande disso virar realidade.
Você acredita que uma das razões para o Brasil ser liderança na produção de álcool combustível é o trabalho escravo?
Não, verdadeiramente não. Nesse setor trabalham mais de um milhão de pessoas e, no ano passado, foram libertados dois mil trabalhadores escravos. Um número bem pequeno perto do contingente todo. Mas a mão de obra precarizada sim faz cair os custos dos empresários e empurra a economia da cana-de-açúcar para frente. Eu não tenho dúvidas de que a precarização do trabalho favorece a produção do álcool no Brasil.
Mas aí chegamos a um ponto bem contraditório. Por um lado, o governo segue apoiando abertamente a cultura da cana e a produção do etanol como um dos produtos mais estratégicos do país. Por outro, esse mesmo produto é responsável pela escravidão de milhares de trabalhadores. Não é uma situação bem delicada?
É sim e por vários motivos. Os sindicatos rurais, que representam os trabalhadores da cana de açúcar, estão na base de apoio ao governo federal. Mas esses mesmos sindicatos são um pouco responsáveis pela precarização do trabalho. Funciona assim: os trabalhadores ganham um salário fixo e mais uma remuneração por produção. Quanto mais colhem, mais ganham. E os sindicatos apoiam essa forma de pagamento, mesmo que signifique que muitos trabalhadores fiquem muitas horas a mais cortando cana. Eles acreditam que, com esse sistema, a chance de ganhar mais é maior. Isso não é totalmente verdade, mas eles acreditam que sim e defendem essa forma. Como é que o governo pode ir contra a opinião da própria base? As ONGs brigam pelo fim da remuneração por produção, mas os trabalhadores, e portanto seus sindicatos, não querem essa mudança.
Internacionalmente, a existência de escravos não é ruim para a imagem do Brasil? E não fica pior ainda por ser um setor estratégico da economia?
Fica mal sim, mas o governo brasileiro conseguiu mostrar às entidades internacionais que não está parado e apresentou duas medidas que, em tese, são bem positivas, mas que ainda não são aplicadas na prática. A primeira é o Zoneamento Agroecológico da Cana, que determina até onde pode ir a plantação de cana – portanto até onde pode ser desmatado – no Pantanal, na Amazônia e na Bacia do Alto Paraguai. O documento tem um conteúdo muito bom, mas ainda não foi implantado. O que significa que quem quiser derrubar madeira na Amazônia para plantar cana pode, sem punições. O texto está no Congresso, que tem uma enorme bancada ruralista e muitos outros assuntos que consideram mais importantes na frente. A outra iniciativa é o Pacto Nacional contra a Escravidão, assinado por usinas, sindicatos e governos. Lá fora, as duas medidas são muito bem vistas e só quem está aqui dentro vê que algumas dessas usinas, que assinaram o compromisso, continuam violando os direitos dos trabalhadores e não foram expulsas do pacto. De qualquer maneira, o governo conseguiu instalar a dúvida na cabeça dos estrangeiros. Eles até sabem que existem violações, mas também entendem que o governo está agindo.
E o que você e a Repórter Brasil imaginam que deva acontecer nos próximos anos? Para onde vai essa situação dos trabalhadores precarizados?
O grande discurso do governo e dos empresários do setor é que a automação da produção vai acabar com a escravidão e com a precarização. É verdade que onde há mais tecnologia e investimentos, há menos escravidão. Já falamos isso, mas já falamos também que as violações aos direitos dos trabalhadores vão além da escravidão apenas. E tem mais uma coisa. O estado mais mecanizado em relação à cultura de cana é São Paulo, que tem 50% da produção automatizada. É muito em termos de estado. E muito pouco em relação ao Brasil. Imagine quanto tempo vai demorar para o Piauí chegar a essa mesma cifra? Mecanizar a produção é algo muito, muito caro e demorado. Então, nos próximos 10 anos, imaginamos, a situação vai se estabilizar em alguns locais e até piorar em outros. É bem ruim terminar uma conversa apontando para um futuro nebuloso, mas é o que conseguimos enxergar daqui.