Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Não é exagero dizer que, durante a ditadura militar brasileira (1964 – 1985), a violência contra os direitos civis era tão grande e a censura e a truculência se manifestavam tão intensas que os cidadãos que se sentissem injustiçados ou perseguidos pelo governo muitas vezes só tinham uma alternativa: reclamar com o bispo. Ou melhor, com o cardeal. Aqui em São Paulo, foi Dom Paulo Evaristo Arns quem assumiu esse papel. Era na mesa dele, na Cúria Metropolitana, que desembarcavam – diariamente – denúncias sobre mortes, desaparecimentos, torturas e toda a sorte de desrespeito aos direitos humanos cometido pelos representantes do regime autoritário.
Entre 1977 e 1984, o jornalista Ricardo Carvalho acompanhou de perto vários dos casos abraçados por Dom Paulo. Transformou muitos desses relatos em reportagens – e algumas acabaram fazendo História. “Porque num tempo de censura e de autoritarismo, fazer a informação chegar às pessoas é perigoso. A gente tinha que ser corajoso para contar histórias”, lembra o autor. O arquivo das coberturas – registros, fotos, histórias, documentos, depoimentos – ficou guardado com Carvalho durante mais de 30 anos e, em 2008, quando eram comemorados os trinta anos da Campanha pela Anistia, o jornalista entendeu que era o momento de fazer um livro contando toda a sua experiência e os bastidores das reportagens que havia produzido. “Depois de mexer em todo esse material, me dei conta que queria fazer um texto contando a aventura e os perigos de fazer aquelas reportagens”.
Assim nasceu O cardeal e o repórter, publicado pela Global editora e lançado no último dia 25 de maio. Carvalho se declara um protagonista involuntário da História e acredita que todos os jornalistas que se embrenham em reportagens importantes que mudam o curso dos acontecimentos também o são. Por isso pensou num livro que inspirasse os repórteres e que contasse como são feitos esses textos, um trabalho que, segundo o autor, só pode existir com apuração, pesquisa e ética. “Eu não tenho visto livros assim no país. Os bastidores das grandes reportagens precisam ser contados, porque isso inspira os jornalistas”.
Se o repórter foi audacioso e desafiou a ditadura, tal postura só foi possível porque o personagem central dos textos, Dom Paulo, era um cardeal aguerrido, destemido e admirável, na opinião de Carvalho. Ele conta que, na América Latina, durante os duros anos 1970, uma parte da igreja católica foi a única possibilidade para muita gente se salvar, encontrar o corpo de um morto, ou parentes desaparecidos. Padres do baixo clero, bispos e alguns cardeais – como Dom Paulo – entenderam que, como portadores da bandeira cristã, a única alternativa era enfrentar os poderosos e cuidar dos oprimidos. “O cardeal Arns chamava de ‘o povo de Deus’ as pessoas de quem ele cuidava. E isso mostra como ele se colocou diante da situação. Ele não estava apenas dando uma resposta aos fieis – como as igrejas chamam seus seguidores hoje. Ele estava amparando o próprio povo de Deus, que é a função primeira de um pastor”, explica o autor.
Exatamente como agiu Arns, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e Dom Angélico Bernardino, só para citar alguns, foram outros religiosos que se posicionaram a favor dos direitos dos mais fracos e enfrentaram corajosamente as polícias políticas, as forças armadas e os governos ditatoriais do Brasil e até mesmo de outros países do Cone Sul. “Para começar, eles denunciavam as agressões aos órgãos internacionais e também conversavam com a imprensa. Estive incontáveis vezes com Dom Paulo antes de ele fazer alguma denúncia”, lembra Carvalho.
À medida que a repressão amainava, os trabalhos de Dom Paulo ficavam mais intensos e mais visíveis. As reportagens de Carvalho também ganhavam mais espaço na Folha de S. Paulo, jornal em que ele trabalhava e que àquele tempo era dirigido por Cláudio Abramo, um dos jornalistas mais respeitados do país. Mas, se era um trabalho arriscado publicar matérias que desagradavam o governo ditatorial brasileiro, como Carvalho não foi preso, ou morto, como outros jornalistas? Só para lembrar, Vladmir Herzog, diretor de redação da TV Cultura de São Paulo, foi preso em 25 de outubro de 1975 e assassinado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI), horas depois. Embora tenha ficado muito próximo de Dom Paulo e de ter participado da cobertura de histórias escabrosas promovidas pelos partidários da ditadura, o autor de O cardeal e o repórter atribui essa sorte ao fato de nunca ter se filiado ao Partido Comunista ou a qualquer organização de oposição ao governo. “Não me filiei porque, como jornalista, achava que isso podia contaminar meu trabalho. Então ficava mais difícil para a repressão encontrar uma desculpa para me pegar”, avalia.
A amizade de Carvalho com Dom Paulo fez diferença naquele tempo. “Posso dizer que ficamos amigos nesse período, mas nunca a ponto de interferir na narrativa, de acrescentar fatos, ou de mudar o que eu tinha apurado”. Aliás, o ex-Secretário Nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, afirmou publicamente, depois de ter lido o livro, que o autor, embora fosse amigo de Dom Paulo, do próprio Gregori e simpatizante de todos que se opunham à ditadura, jamais acrescentou uma palavra a qualquer declaração de suas fontes. A proximidade com o Cardeal teve mais um sentido de confiança e credibilidade. “Ele sabia que podia contar comigo e com a minha seriedade para ajudar a apurar os casos e publicar depois”.
Foi assim que o repórter publicou em 1978 na Folha de São Paulo, em primeira mão, um dossiê que Dom Paulo Evaristo Arns produziu sobre o desaparecimento de 23 brasileiros, enviado secretamente ao ex-presidente norte-americano Jimmy Carter. O jornal O Estado de São Paulo – “que nunca gostou de Dom Paulo”, afirma Carvalho – desmentiu a existência do dossiê. O Cardeal foi a público confirmar cada palavra da reportagem do jornalista. “Mais uma prova da coragem dele. Em 1978, falar abertamente sobre desaparecidos e sobre correspondência secreta com Carter, só podia ser a postura de um pastor franciscano que cuida, sem medo, de seu povo”.
Outro ponto alto dos trabalhos do autor de O cardeal e o repórter foi a cobertura do “caso Anatole e Vicky”, duas crianças que eram filhos de um casal de militantes uruguaios presos e assassinados pela ditadura do Uruguai, com apoio direto da repressão argentina. “Era comum nas ditaduras do cone sul matar os pais e entregar as crianças para adoção, mesmo que essas crianças tivessem três ou quatro anos. No Brasil isso não aconteceu, mas no Uruguai sim e na Argentina mais ainda”, narra Carvalho. O menino de quatro anos, Anatole, e a irmã, Vicky, de pouco mais de um ano, foram abandonados numa praça em Valparaíso, no Paraguai, e foram recolhidos por uma assistente social. A moça entregou os dois a um casal paraguaio, que os criou como filhos. Tempos depois a assistente social viu uma avó carregando a foto das crianças numa das manifestações de familiares de desaparecidos. Ao reconhecer os dois pequenos, ligou para um jornal e forneceu pistas de onde estavam os meninos. “O caso, claro, foi parar na mesa de Dom Paulo e foi ele mesmo quem me passou a pauta. Aliás ele era meu grande pauteiro. Eu fui até o Uruguai, recolhi muitos documentos e – de repente – entrei em pânico achando que a polícia estava me seguindo e ia me matar. Pedi asilo na catedral de Montevidéu, mas o cardeal me expulsou de lá por não querer se envolver com política e com o governo”, relembra o jornalista. “Mas eu não saí, não arredei o pé e a confusão foi tanta que eles prometeram que o motorista do próprio cardeal me levaria ao aeroporto no dia seguinte”. Quando chegou ao Brasil, Carvalho publicou a história toda na revista IstoÉ. Foi o que os jornalistas chamam de furo – a primeira reportagem no Brasil mostrando crianças da América Latina, filhas de militantes políticos, que tinham sido sequestradas por forças de segurança e entregues para adoção.
Carvalho conta várias dessas histórias no livro recém-lançado, mas evita os detalhes mais quentes nas entrevistas que concede para não perder a graça para os leitores. Ele revela que levou o livro ao Cardeal Arns. A senhora que cuida de Dom Paulo duvidava que ele fosse ler, porque embora o velho pastor, hoje com 89 anos, dedique os dias à leitura, parece que vem se afastando do mundo. Não lê jornais nem revistas, não ouve rádio, não vê TV e se interessa muito pouco pelos assuntos terrenos. “Ele recebeu”, conta o autor, “mas disse que não faria nem correções e nem confirmações públicas das informações contidas ali. E leu, porque tempos depois me disse ‘Muito bom seu livro, pode publicar’”.