Elisa Marconi e Francisco Bicudo
A eleição do presidente Barack Obama, em 2008, foi marcada por propostas, mensagens, simbologias e esperanças que mobilizaram milhões de norte-americanos: pela primeira vez na história do país, um negro, filho de pai queniano, alcançava a condição de líder maior da potência planetária hegemônica. Obama representava ainda a memória da luta pelos direitos civis, nos anos 1960/70, interrompia a escalada bélica, isolacionista e imperialista dos anos de administração George Bush Jr. e prometia colocar em prática um arrojado conjunto de mudanças e de ações progressistas que incluíam um plano público de saúde para todos os estadunidenses e políticas menos restritivas e intolerantes para os imigrantes que vivem nos EUA. Apenas dois anos depois, o cenário político vivido pelo país é assustadoramente distinto.
Mas às vésperas das eleições legislativas de 2 de novembro nos EUA, que vão renovar a Câmara dos Deputados e 1/3 do Senado, ganha expressão, visibilidade e – mais perigoso – força política um ideário ultraconservador que discorda de qualquer ação promovida pelo governo Obama. Dos impostos às políticas afirmativas, das medidas econômicas ao ensino de ciências nas escolas (substituído pelo criacionismo religioso) – praticamente todo o ideário democrata é contestado por esses militantes, que são ainda ferozes adversários do aborto, defendem com convicção a posse de armas e culpam os imigrantes latinos, os negros e os homossexuais por quase todos os males do país, como o desemprego, a crise econômica e a violência.
O Tea Party
Esse movimento está diretamente vinculado a grupos religiosos fundamentalistas, tem fieis representantes nas igrejas e na política e conquista novos adeptos a cada dia. E esse movimento tem nome – Tea Party (Festa do chá, na tradução). Trata-se de uma referência explícita a um episódio ocorrido em 1773, quando os colonos se negaram a vender a safra de chá para a Inglaterra e preferiram jogar o produto no mar. O acontecimento marcou a resistência à dominação britânica e foi decisivo para a construção da independência do país, conquistada em 1776.
Ciente da força alcançada pelo movimento, a ex-governadora do Alasca, Sarah Palin – que concorreu à vice-presidência em 2008, na chapa republicana –, deu início em meados de outubro à caravana do Tea Party, iniciativa que pretende percorrer alguns dos principais estados do país em busca de votos e de apoio para as eleições parlamentares. Palin é o expoente máximo dessa agremiação que se auto-proclama um “movimento de libertação”, já que os ultradireitistas dizem buscar um sentimento de autonomia que sempre foi elemento de identidade para a nação norte-americana.
Segundo a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cristina Pecequilo, a expansão desse ideário se dá por uma série de fatores, mas o principal é a crise econômica que assola os Estados Unidos desde 2007.
Para a pesquisadora, desemprego, desvalorização do dólar e outros sintomas da fragilidade da economia acabam acirrando os ânimos. Os medos vêm à tona, fazendo crescer com força a sensação de que há um ou vários culpados para as mazelas nacionais. E quem seriam os invasores culpados? Mexicanos, que entram ilegalmente no país; negros e mulheres, minorias historicamente perseguidas; muçulmanos, com a jihad atacando a América; homossexuais e feministas, com valores que supostamente corromperiam a sociedade de bem. É um pensamento de ultradireita, sem pudor algum de se manifestar publicamente. É importante dizer que nos EUA, a 1ª emenda da Constituição garante a total liberdade de expressão dos cidadãos. Ninguém pode ser punido por professar suas crenças.
Cresce o movimento
Outra razão para o crescimento do movimento, de acordo com Cristina, é a estratégia política adotada pelo Tea Party. “Eles não têm um partido, estão dispersos em alguns, mas escolheram fazer uma aliança importante com o Partido Republicano. Sarah Palin e os ditos libertadores estão dispostos a aumentar significativamente o número de parlamentares afinados com os ideais retrógrados do movimento”. Some-se a isso a farta veiculação de notícias pela rede de TV Fox News – sabidamente a porta-voz da direita norte-americana – e as bênçãos de várias igrejas protestantes, lideradas por pastores ultraconservadores, e da igreja católica. A consequência imediata é, assim, a presença de multidões expressivas e ensandecidas nos comícios da turma de Sarah Palin, o que pode sugerir que também o resultado da votação de 2 de novembro poderá representar uma forte guinada à direita, uma resposta imediata ao medo que parte da população sente do diferente, do diverso.
Causa certa estranheza, no entanto, e ao menos em um primeiro olhar, que esse movimento reacionário tenha alçado vôos tão altos sob o governo de Barack Obama. Como já se disse, o presidente democrata foi eleito com forte apoio popular, colocando os republicanos na defensiva. Não seria muito pouco tempo para uma expressão tão forte, para uma recuperação tão intensa? “As pessoas acreditavam que Obama seria uma resposta a esse crescimento da direita, que é geral no mundo, não está restrito aos Estados Unidos. Obama representa o que há de moderno, de progressista, e é contra isso que o Tea Party se coloca”. Ou seja, parece um contra-senso, mas construir oposição a um presidente democrata, negro, progressista e defensor das minorias acabou ajudando os conservadores a crescer, a ganhar espaço. O inimigo a ser combatido era visível – e reunia todos os valores contra os quais a ultradireira ergue suas vozes. “O preconceito, a desinformação, a educação criacionista, contrária à ciência e a crise dos valores humanos mais básicos, fizeram os americanos médios se sentirem sem saída. Aí se externaliza esse sentimento da repulsa ao diferente”, explica Cristina.
Apesar da ameaça que o Tea Party pode vir a representar para a geopolítica internacional, parece que os outros países não estão muito preocupados e seguem fazendo vistas grossas ao enraizamento do pensamento fundamentalista nos EUA. “Primeiro, a expansão da direita, como eu já disse, é um fenômeno mundial. Basta olhar a França de Sarkozy”, avalia a especialista. “Depois, a sensação é que os líderes de outras nações ainda não levam essa postura muito a sério, alegam que os libertadores e os ultradireitistas são minoria. Mas não é bem assim”, completa. Há que se levar em conta por exemplo que numa das mais recentes convenções do movimento havia um milhão de pessoas na plateia. “E esse é um público que não debate, que apenas aceita como dogmas as verdades que são ditas pelos líderes”, reforça.
E o que pregam esses líderes conservadores vai de encontro, segundo Cristina, aos avanços mais significativos em termos de direitos e de liberdades que os seres humanos vêm alcançando nos últimos séculos. “É frontalmente contrário ao estado laico, por exemplo, e um retrocesso, portanto”. Por mais que se afirme se tratar de um pequeno grupo, os seguidores do Tea Party são fortes o suficiente para mudar os planos de Obama. “Foi uma promessa de campanha dele defender que os homossexuais possam declarar sua opção e não ser expulsos das Forças Armadas. Recentemente, Obama pediu que a questão ficasse congelada. A Suprema Corte concedeu o direito, mas ainda está em tramitação. Ou seja, ele mudou de postura, tal foi a pressão. Acaba pressionado a abandonar certos projetos em face dos ataques ao Estado”, sugere a professora da Unifesp.
Cristina faz questão de reforçar que o crescimento da direita reacionária é um fenômeno global, em parte provocado pelas crises econômicas, em outra dimensão pela fragilidade de certos valores e muito por repulsa ao diferente, como se o outro sempre fosse o responsável pela situação ruim de um povo ou de um país. “A eleição brasileira talvez seja o melhor exemplo. Velhas bandeiras em cena, patrulha moral com força e apoio nas religiões conservadoras são prova de como esse discurso ainda tem ressonância”, afirma. Se por aqui a crise econômica não é o maior vilão, a falta de propostas políticas claras dos candidatos e dos partidos abre espaço para a intolerância, defendida por instituições conservadoras, como os militares e segmentos religiosos. Na ausência de projetos políticos, os candidatos compram essas discussões, como ser contra ou a favor ao aborto, de forma simplista. O intuito dessa agenda, para Cristina, é a aposta no medo, no pânico. Ainda em terras brasileiras, o preconceito velado (contra negros, índios, nordestinos, mulheres, homossexuais e outros grupos) também é um convite a um fundamentalismo perigoso. “A gente tem que dizer mesmo que é perigoso. Aqui há ainda algumas barreiras para a pessoa expressar sua opinião. Nos Estados Unidos, não”, alerta a professora.
É a irrestrita liberdade de discurso que permite que Sarah Palin e outros adeptos do Tea Party ataquem os chamados excessos liberais, que poderiam, na concepção do Movimento, destruir a América. O alerta está dado: sim, o Tea Party e movimentos similares podem prosperar e colocar em risco os ideais de democracia. Para combatê-lo, a professora da Unifesp acredita que é preciso focar no grupo que chama dos descontentes. “Cerca de 5 ou 10% dos participantes do Tea Party é caso perdido, porque acreditam nas verdades que professam como dogmas, como verdades absolutas. Com esses não tem conversa, há que se administrar. Mas tem 30 ou 40% do grupo que apareceu depois da crise. Com essa parcela dá para negociar”, propõe. E isso precisa ser feito com urgência, porque caso a direita retrógrada ganhe muito espaço no Parlamento – como se anuncia que deve ocorrer –, o que se observará nos próximos dois anos é um bloqueio sucessivo e sistemático às propostas de Barack Obama. “Por isso é que estamos apostando que essas eleições de 2010 serão uma antecipação da disputa presidencial de 2012, quando Obama deve tentar a reeleição”, diz.
Cristina defende que se a situação econômica do país melhorar – se o desemprego diminuir, se o dólar alcançar estabilidade internacional –, boa parte dos insatisfeitos voltará a acreditar no Estado, no governo, nos impostos. E, quando se perde o medo, os “outros diferentes” deixam de ser ameaças prementes. Ainda nesse terreno do combate à insegurança, seria importante, segundo Cristina, que Obama e os outros políticos que emergem como líderes alinhados com o progresso cumprirem suas promessas de campanha, levando adiante as mudanças ansiadas pela população.
Os outros caminhos, diz ela, são velhos conhecidos: força na educação, capaz de apresentar a multiplicidade de pensamentos e de permitir visão crítica, porque “o problemas nos Estados Unidos é a uniformização do pensamento e a falta de questionamento dos seguidores. Isso é sempre uma questão importante”, lembra. Ela sugere por fim o estímulo à comunicação múltipla e diversa, para garantir a veiculação de informações plurais e dissonantes. “Nesse aspecto, o entrave é que toda vez que se fala em verificação da imprensa, alguém diz que é censura, que fere a liberdade de expressão. Não é nada disso. O importante é que se garanta espaço para serem veiculadas ideias novas, que rebatam as antigas e promovam reflexões saudáveis”, finaliza.