
Ouça a entrevista do historiador Mário Scalercio
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Professor, como o senhor define o Tea Party?
Trata-se de um movimento de caráter conservador, promovido pela sociedade civil norte-americana. A maior parte dos participantes é afiliada ao Partido Republicano, mas não apenas. A gente sabe que nos Estados Unidos o jogo eleitoral se dá entre os partidos Democrata e Republicano, mas apenas parte desse último é formado pelos partidários do Tea Party, que tem um programa bem conservador e múltiplo.
Ou seja, não é um grupo com reivindicações uniformes?
Então, é um grupo coeso no que diz respeito aos princípios que regem as reivindicações. Alguns dos partidários acreditam que a política fiscal do governo é exagerada, por isso combatem os impostos. Outra parcela é contrária à ampliação da atuação do Estado, por entender que maior poder do Estado significa redução das liberdades individuais. Outra parte defende ainda a redução no número de ministros, de programas de governo.
Vamos pensar mais profundamente sobre essa questão do Estado...
Essa discussão sobre o tamanho do estado está presente, na verdade, desde a criação do Estado norte-americano. Não foi o Tea Party quem inventou e nem foram resgatar algo meio esquecido. Essa é uma discussão bem tradicional naquele país. Daí por que o Tea Party tenha feito desse o assunto o principal no proselitismo do grupo. Mas tem ainda posições como ser contra o aborto, contra o casamento de homossexuais, pelo aumento das liberdades individuais, como o porte de armas, e ainda o aumento do controle nas fronteiras do país, impedindo a entrada dos imigrantes e aumentando o arsenal de defesa. E tem ainda o grupo que é por todas as opções anteriores.
É uma articulação de reivindicações políticas, econômicas, sociais e morais? Eles estão atuando em todas essas frentes?
Estão sim. Esse grupo entende que o Partido Republicano está muito moderado em relação ao que chamam de abusos dos liberais. Liberais, nos Estados Unidos, não é a mesma coisa que aqui. Lá, liberal quer dizer de esquerda, progressista. Por isso criam esse movimento, fazem comícios, manifestações e discursos. E tem a mídia que, se não apóia abertamente, como a Fox News – uma emissora declaradamente conservadora –, ao menos noticia a movimentação do Tea Party, fazendo essa discussão ficar em voga o tempo todo.
Para quem sempre viveu no Brasil e acompanha os jornais e o noticiário daqui é surpreendente como os norte-americanos são claros nas posturas que defendem. Por aqui é mais difícil as pessoas se declararem de direita, explicitamente. Como o senhor avalia isso?
Em relação à economia de mercado, alguns especialistas afirmam que ela nasceu ainda antes do Estado norte-americano, por isso o tema é tão arraigado lá. Agora, pouca gente se diz de esquerda. E existe sim ideologia na discussão política, mas ela aparece pontualmente e com mais força nos momentos em que os governos federal, estadual e municipal estão sendo questionados em relação à legitimidade dos programas sociais que buscam aplicar. Em termos históricos, essa discussão apareceu com mais força a partir da década de 1930, depois do crash da Bolsa de Nova York. O presidente Franklin Roosevelt avançou bastante nessa linha, para tentar reverter a crise pela qual o país passava. Aliás é bem importante dizer que a quebra da Bolsa começou como um problema do mercado financeiro e, em 10 anos, virou a pior crise econômica norte-americana, com consequências mundiais, graças à desastrosa gestão republicana. Roosevelt leva adiante projetos sociais, obras públicas, desvincula o dólar do padrão ouro, para poder imprimir mais dinheiro, e até provoca certa inflação para recuperar a economia. Naquela época o debate se acirrou e, de lá para cá, parece que há sempre um movimento espiral nos Estados Unidos. Não é pendular porque, a cada variação, sobe um degrau. E entendo também que essa mobilização dos ultraconservadores é resultado da guinada progressista que se deu na vitória de Obama. Foi um passo grande dos liberais, aí os conservadores precisam recuperar o terreno.
Se não são ideias novas, são discursos que encontram um mundo novo. Como esse programa do Tea Party repercute hoje?
Sempre que a gente fala dos Estados Unidos, é importante explicar que o sistema político e judiciário são fundados sobre a chamada common law, também chamado de direito consuetudinário, que é baseado na tradição, nos princípios fundadores, e não nos atos legislativos ou executivos publicados. É uma herança da colonização da Inglaterra, que também rege sua política e seu poder judiciário pela common law. No caso dos Estados Unidos, esses princípios são aqueles mesmos dos “pais fundadores da pátria”, Thomas Jefferson, John Adams e Benjamin Franklin, entre outros. Para comparar, é bom lembrar que, aqui no Brasil, o Direito se baseia no Direito Romano, que privilegia os atos do legislativo, talvez por isso a gente fique confuso sobre como é possível prosperarem tão abertamente essas ideias conservadoras. Toda a organização social, o sistema político e o judiciário são fundados sobre esses princípios atemporais, fundadores da nação, sem os quais os Estados Unidos deixariam de ser os Estados Unidos.
O que o senhor está sugerindo é que as ideias conservadoras, defendidas pelo Tea Party, estão, na origem, baseadas nos princípios fundadores da nação norte-americana e por isso são aceitas e propagadas livremente?
É isso, mas não só isso. O grande segredo do equilíbrio norte-americano é a livre interpretação e o apoio nos tais princípios fundadores. Ou seja, a partir do que os “pais fundadores” disseram dá para defender a redução do Estado, ou o investimento estatal na economia em caso de crise. Dá para defender as liberdades individuais e o direito à vida, enfim, desde que se encontre amparo naqueles princípios, ou na interpretação deles, pode-se pregar qualquer ideia. A mágica desse sistema mora na possibilidade de um Poder nunca poder se sobrepor ao outro. Quando um dos três poderes cresce demais, os outros recorrem aos princípios fundadores e barram essa hipertrofia.
E como é a repercussão do programa fora dos Estados Unidos?
Mas os norte-americanos não estão nem um pouco preocupados sobre como suas ideias e sua maneira de levar o país toca os outros países e as outras populações. Os americanos se preocupam com o Kansas. Mas é claro que essa agenda chega aqui e em outros países. Essa discussão sobre o aborto que acompanhamos na nossa eleição presidencial faz parte do crescimento dessas ideias conservadoras. Agora, não é uma política de propagação desse ideário de direita. Isso acontece porque qualquer coisa que aconteça nos Estados Unidos repercute no mundo todo. Por aqui, soa estranho, esquisito, porque, como você disse, nossos políticos têm dificuldade em assumir suas posturas, ou as posturas do seu partido publicamente. Aí fica essa discussão sobre religião, comportamento, assuntos que jamais pontuariam uma eleição na França por exemplo. E tem mais uma coisa, embora em Nova York os bares que recebem as stand-up comedies só brinquem com o absurdo das reivindicações do Tea Party, e a gente até possa rir, pela falta de sensatez dos pedidos, nada disso é brincadeira. O que eles defendem, defendem a sério.
E encontraram uma parte do eleitorado ávida por moralização, redução do Estado, liberdades individuais. Devemos ter um crescimento considerável da direita no parlamento norte-americano então?
Alguns analistas estão dizendo que sim, outros que o Tea Party, dependendo do candidato apresentado, pode até atrapalhar. Em alguns estados, onde o candidato eleito pela convenção do Partido Republicano é ultraconservador além do limite, ali o grupo pode perder votos. Porque, de novo, é importante entender que nos Estados Unidos há sempre três variáveis (e não duas como aqui). Lá, ou o cara vota nos Democratas, ou nos Republicanos, ou não vota. Traduzindo, se o candidato conservador é do Tea Party e ele ultrapassa todos os limites, o cara que é conservador e votaria nos Republicanos fica incomodado, não se sente representado e não vai nem votar. Assim, pode ser que os conservadores não consigam todas as cadeiras que poderiam.
E os democratas estão reagindo?
Daqui, o que vemos é que não. A reação Democrata é tentar salvar o próprio pescoço, ou seja, se reelegerem. Mas há analistas que dizem que vai ser bom para Barack Obama se a maioria do Parlamento norte-americano for Republicana, porque assim o presidente sempre vai poder culpar os parlamentares adversários pelo entrave aos avanços. Hoje isso não é assim, o que pode dificultar um pouco a situação de Obama. Faz parte de um jogo político tradicional nos Estados Unidos.
E como o senhor acredita que será o futuro breve para a política norte-americana?
Antes é preciso dizer que o futuro do Tea Party não é similar ao futuro da ala conservadora. Essa vai sempre existir, pode arrefecer, ou folgar um pouco, mas estará sempre lá porque é uma tradição de mais de 200 anos. Já o Tea Party depende fundamentalmente do resultado das urnas. Se perderem, o movimento vai minguar, até voltar ao pequeno tamanho que tradicionalmente tem. Se for bem na eleição e fizer muitos parlamentares, aí deve fazer o jogo mais comum dos Estados Unidos. Irá atrás de patrocinadores e vai fazer crescer o movimento. A sorte é que, pode não parecer, mas os norte-americanos são muito diversos, são muitos e variados grupos sociais. Além disso, a democracia tem mais de 200 anos lá e as estruturas políticas e as instituições são sólidas e muito ligadas nesse equilíbrio entre os poderes, de forma que ideias tão duras como aquelas defendidas pelo Tea Party não terão passagem sem alguma resistência.