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Cidades que derretem

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Quem vive na cidade de São Paulo tem a sensação de enfrentar dias cada vez mais quentes. E parece que não é apenas impressão. De acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), os termômetros na cidade marcaram 33,8 graus no domingo, 30 de janeiro. Foi a marca mais alta do ano, até aqui. Uma semana antes, no domingo, 23, os paulistanos foram surpreendidos por uma tempestade de raios, no início da noite – foram 1.736 relâmpagos em pouco mais de duas horas, segundo medição feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). As fortes chuvas que caíram no mês de janeiro, concentradas em poucos dias, deixaram um saldo assustador.

No estado de São Paulo, mais de 20 pessoas morreram em consequência dos estragos provocados pelos temporais (afogadas, levadas por enxurradas, soterradas por imóveis que desabaram ou por terra e lama que desceram de encostas). No Rio de Janeiro, a situação foi ainda pior. A região serrana do estado, onde ficam cidades como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, acompanhou o deslizamento de parte dos morros, o soterramento de centenas de imóveis, o desalojamento de cerca de 35 mil moradores e a morte de mais de 870 pessoas, considerando dados da Defesa Civil Estadual. Como é comum em situações assim, as autoridades se apressaram em culpar o clima. “Choveu demais, foi anormal”, diziam. Também como esperado, os veículos de imprensa noticiaram e mostraram imagens das catástrofes – que gradativamente estão desaparecendo da agenda pública.

Vale insistir: tudo isso aconteceu há cerca de um mês apenas; no entanto, quem procura referências nos jornais de hoje praticamente já não encontra mais qualquer menção às tragédias provocadas pelo aguaceiro de janeiro. Sumir tão rapidamente da pauta midiática é certamente um indício de que a sociedade não está tão atenta à gravidade da situação. Quando as chuvas passam, voltamos a viver a “normalidade” do cotidiano, até que o verão seguinte nos traga novamente preocupação. É um ciclo perigoso. Para entender melhor esses dois fenômenos (administração pública que lava as mãos e responsabiliza a natureza e esquecimento tão rápido), o site do SINPRO-SP conversou com a geógrafa Cleide Rodrigues, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

A especialista em geomorfologia encara com preocupação e uma ponta de frustração todos esses acontecimentos ligados à temporada de chuvas do verão. Por um lado, diz, porque a própria formação do geógrafo está muito associada à vivência da cidadania; portanto, ver populações sofrendo com esses eventos desperta o sentimento da solidariedade. Por outro, a frustração vem da percepção de que todo conhecimento científico e acadêmico produzido e transmitido pela perspectiva da Geografia não chega às concepções e ações dos gestores públicos.

Para ela, as obras e as intervenções promovidas no espaço urbano não levam em conta o pensamento mais global e integrador, tão caro à Geografia. “A gente considera os diversos fluxos, os sistemas naturais e a ação humana”, conta a geógrafa. “Por exemplo, a intervenção num morro tem de pensar o que acontece no alto do morro e como isso se integra ao que se passa na base do morro, além das relações desses dois sistemas com a planície fluvial que vem imediatamente a seguir”, completa. Ou seja, a visão da Geografia integra os diversos atores e procura oferecer soluções articuladas e mais integradas, que acabam infelizmente não sendo viabilizadas pelas instâncias que tomam as decisões políticas e administrativas – e que acabam por definir o cotidiano das cidades.

A ideia que se apresenta é que, caso as autoridades públicas que têm poder de definir como será usado o espaço urbano manifestassem um olhar mais cuidadoso e sintonizado com o pensamento geográfico, algumas catástrofes poderiam sim ser evitadas. Cleide usa mais um exemplo para mostrar como gestão do espaço público e Geografia têm pontos em comum. Ela recorre à História, recorda o início da ocupação mais efetiva dos espaços urbanos e lembra que, naquele início de século 20, foram as grandes empresas do setor de energia que deram o tom das intervenções. As companhias sugeriram o traçado das ruas, mudanças nos cursos dos rios, etc.

A fase seguinte do pensamento urbanizador enfocava mais os chamados usos múltiplos dos espaços; então – novamente – o poder público atuou seguindo a cartilha vigente na época. Atualmente, segundo a especialista, o olhar dos geógrafos que trabalham mais diretamente com a ocupação das cidades se volta para os riscos, como os desmoronamentos, inundações e enxurradas – com atenções redobradas para essas duas últimas situações, porque as condições urbanas hoje propiciam que aconteçam com mais vigor. “Ruas em fundos de vales, ou na mesma altura dos declives, a forte impermeabilização do solo e tudo isso que a gente produziu vem possibilitando esses fluxos mais torrenciais, que podem mesmo destruir as construções, arrastar objetos e até matar pessoas”, explica. Vale lembrar que fenômenos assim são próprios de áreas desérticas, mas que têm se tornado cada vez mais frequentes em áreas urbanas, “não apenas porque o clima mudou, mas porque a paisagem se transformou”, defende Cleide.

A especialista ressalta que boa parte das reflexões que apresenta nasce das pesquisas feitas por geógrafos. Ela destaca uma respeitável produção científica atual na área, mas indica que esse conhecimento talvez pudesse ser mais pontual, para atender às demandas específicas de municípios. Por outro lado, os gestores também poderiam se apoiar mais no conhecimento produzido nas universidades, para tomar decisões e estabelecer políticas públicas mais responsáveis. “Aí, neste ponto, é que falo que o problema [parte das catástrofes] é de gestão. Falta transformar o conhecimento técnico já produzido em política pública”.

E quando se olha para o Brasil e mais especificamente para São Paulo, um dado preocupante e impossível de ser ignorado surge. Cleide conta que boa parte dos problemas de risco tem uma ligação profunda com a demanda social por habitação. A pesquisadora considera importante explicar que, quando se fala em risco, ele pode ser natural ou socioeconômico. Quando esse risco atinge pessoas, estruturas e benfeitorias, a Geografia dá o nome de catástrofe, que foi o que aconteceu, por exemplo, em janeiro na serra fluminense.

Na visão da professora, a crônica e conhecida carência de moradia muitas vezes empurra a população a uma série de ações que transgridem a legislação – que o país tem e de boa qualidade -, sem que o poder público atue com competência para equacionar esse déficit habitacional. Faltam políticas públicas e vira-se as costas para um grave problema social. Como disse à época das recentes enchentes a urbanista Raquel Rolnik, “as pessoas não constroem casas em locais irregulares porque querem, mas porque não têm alternativas”.

E, mesmo quando seguem a lei, muitas vezes as construções avançam por locais que não deveriam ser ocupados, seja porque estamos falando de preservação de áreas naturais, seja porque tratamos de regiões estratégicas para o cumprimento de planos diretores e de zoneamento de municípios. Ou seja, há movimentos que podem até ser legais, mas que acabam sendo inadequados, porque não afinados com o pensamento geográfico integrado destacado pela pesquisadora. Nesses casos, pode-se novamente falar em omissão, pois o poder público deveria também agir para orientar a respeito dessas ocupações não pertinentes.

A professora da USP lembra ainda que duas posturas capitaneadas pela mídia andam de mãos dadas com o desgoverno: o esquecimento e reafirmação da normalidade. Passado o primeiro mês da tragédia em Nova Friburgo, São José do Vale do Rio Preto, Teresópolis, Petrópolis e demais cidades da região, as notícias vão se tornar ainda mais raras. E exatamente na mesma medida, a tendência é que o poder da população para pressionar autoridades por ações de reparação e prevenção de novas catástrofes também acabe minguando.

Já a reafirmação da normalidade está por trás das respostas dadas pelos gestores públicos, ao “explicar” um desmoronamento, uma inundação ou uma enxurrada: “Choveu demais em pouco tempo”, “A água desceu do morro e não tinha por onde escoar”, por exemplo. “A gente percebe que, antes que alguém consiga faturar politicamente com o episódio, a culpa vai imediatamente para São Pedro”, diz Cleide. Tendo em mente que o sistema de previsão meteorológica do Brasil é avançado e confiável, não dá para colocar apenas na conta da natureza os efeitos das chuvas.

A especialista em geomorfologia aponta ainda outro fator que leva à suscetibilidade a catástrofes: o excesso de valorização da visão da engenharia. “Os engenheiros se baseiam em estatísticas e medições que são ótimas, mas que não vão além de cem anos, nem para trás, nem para frente”, explica. Esse período de tempo é eficiente para propor que as telhas das casas sejam de barro ou de vidro, por exemplo, mas não é suficiente para dizer que naquela região acontecem grandes inundações, ou trombas d’água. Nesses casos é preciso olhar ainda mais para trás, porque dados mais sólidos ajudam na prevenção. “Aí a Geografia pode ser uma boa parceira. As características do solo e das rochas encontradas numa determinada região dão pistas sobre a vocação daquele espaço, sobre o que costuma se passar ali. E quando se pensa na construção de uma cidade, temos que ter esses grandes períodos e intervalos de tempo em mente. Cidades são feitas para durar muitos séculos”, afirma.

E os professores podem contribuir com esse debate? A pesquisadora tem certeza que essa participação não é apenas possível, mas fundamental. “Como professora de Geografia, tenho presenciado um momento de virada no lugar que a Geografia física ocupa”, argumenta. Nos últimos anos, teria havido a priorização da Geografia humana, “o que foi ótimo, porque houve uma contraposição interessante à visão de mundo oferecida tradicionalmente pelas outras humanidades, mas que por outro lado acabou encobrindo os conteúdos da Geografia física, que hoje vão sendo retomados, por serem fundamentais para a gestão atual do planeta”, completa.

A boa notícia é que se trata de um momento novo. “Os professores aprenderam muito com o tempo de primazia da Geografia humana e não querem abrir mão de todos os avanços obtidos ali. A idéia agora é somar, enriquecer a experiência com os conteúdos da Geografia física”, defende. A vontade dos geógrafos é fazer os alunos, a imprensa e a população compreenderem que as informações e o conhecimento que eles têm a oferecer são muito relevantes para as demandas do mundo atualmente. O caminho para isso? “Formação contínua. Porque os conteúdos são muitos e os avanços científicos também. Para ficar atualizado e fazer os cruzamentos mais importantes entre as vertentes das humanidades, o professor tem que seguir estudando”, sugere a geógrafa.

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