Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Publicado em 18/3/2011
Em três cidades do Nordeste brasileiro, Natal e Macaíba, no Rio Grande do Norte, e Serrinha, na Bahia, 1400 crianças e adolescentes de 11 a 17 anos estão aprendendo a conhecer o mundo por meio dos olhos da Ciência. São alunos dos três centros de educação ligados à Associação Alberto Santos Dummont de Apoio à Pesquisa (AASDAP), entidade mantenedora do já bastante conhecido Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra, e às demais instituições que compõem o projeto idealizado pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor da Universidade Duke, que fica na Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
A missão da Associação é produzir pesquisas de qualidade e referência internacionais sobre o cérebro e os sistemas neurais; ao mesmo tempo, pretende garantir que a Ciência seja um agente de transformação social local, primeiramente, para em seguida conquistar amplitudes regional e nacional. “A gente acredita que para haver mudança social de fato, além das pesquisas que ensinam os jovens a desvendar a realidade à volta deles, todos precisam ter acesso à educação e à saúde”, sugere a educadora Dora Montenegro, diretora dos Centros de Educação Científica da AASDAP. Por isso, além das unidades científicas e de pesquisa propriamente ditas, a mantenedora gerencia simultaneamente as três escolas e ainda um centro de saúde, com a perspectiva de completar esse ciclo virtuoso.
Os três centros de educação funcionam em dois turnos e recebem alunos do ensino fundamental II de escolas públicas sediadas nas três cidades. A ideia não é de maneira alguma complementar os estudos, dar aulas de reforço ou suprir possíveis deficiências das instituições de origem. “Temos um respeito enorme pela educação pública, pelas escolas públicas e pelos professores e é claro que a experiência aqui enriquece a vivência e o aprendizado do menino e da menina na escola, mas não é esse o intuito do projeto”, explica Dora. “A educação científica ensina a estudar, a pesquisar e a exercitar a curiosidade. Tudo isso modifica primordialmente a relação do estudante com o conhecimento, o que vai afetar várias frentes da vida dele”.
Gosto pelos saberes
O objetivo, portanto, é promover a educação científica, ensinar mesmo os métodos que a Ciência tradicionalmente usa e, a partir daí, formar jovens que sistematizem conteúdos de forma mais complexa, problematizem a realidade, busquem respostas e soluções para esses problemas, possam fazer análises críticas em relação às diversas situações e que tenham gosto pelos saberes por entender que o conhecimento traduzido para a realidade de cada um deles pode ser uma mola propulsora para a mudança, para a transformação. Como se vê, nada modesta a meta. “Estamos falando de um jovem que pergunta por quê?, para quê?, para quem? e com que fim? É alguém mais preparado para não se conformar, não aceitar acriticamente o que lhe impõem. E ter essa postura é o primeiro passo para buscar outras possibilidades para a realidade deles”, lembra a educadora.
Dora é bem incisiva quando avalia a questão da realidade do aluno. “A gente parte do cenário que o cerca, respeita profundamente o que ele sabe e o que ele traz como aprendizado, quer tenha sido aprendido na escola pública ou fora dela”. A diretora dos centros de ensino emenda: “O aluno só andou meio caminho ao aprender o conteúdo. O aprendizado só é de fato transformador se o estudante se apropria dele e traz essas informações para a própria realidade. É ali que o conhecimento que adquiriu precisa atuar”, pontua. Por essa mesma razão, os grupos que formam as oficinas de educação científica (o equivalente às disciplinas da escola tradicional) são bastante heterogêneos. Idades variadas, meninos e meninas, oriundos de escolas diferentes, para que o contato com a diversidade – e cada aluno representa uma nova realidade – também seja motivador.
Nas oficinas de ciência e tecnologia, os estudantes lidam diretamente com conteúdos da Física, Química, Matemática, Biologia e também é muito grande o empenho para que os meninos se aperfeiçoem em expressão oral e escrita. De acordo com Dora, falar sobre um conteúdo, defender uma ideia, escrever sobre ela é uma maneira de seguir o método científico. Mas é também uma forma de proporcionar maior relação das crianças e adolescentes com os projetos, os avanços, as descobertas. “Um cidadão e um cientista conscientes precisam não só conhecer seu objeto, mas saber falar sobre ele, saber escrever sobre ele, argumentando, defendendo, com uma linguagem própria. Aqui a gente teoriza praticando e pratica teorizando”. É mais um desafio e tanto.
E toda criança e adolescente, segundo Dora, é plenamente capaz de aprender a fazer tudo isso, desde que lhe sejam fornecidas ferramentas e métodos de aprendizagem baseados numa pedagogia séria. E é justamente neste ponto que um projeto de educação científica que pretende mudar a realidade de 1400 crianças e adolescentes, alunos de escolas públicas nordestinas, dá as mãos aos professores que atuam nos centros de ensino e nas escolas públicas da região.
“O aluno é o sujeito de direito da Educação. Ninguém aqui está fazendo favor ou assistência. O aluno precisa saber que ele está sendo atendido num direito. Ao mesmo tempo, o professor é o sujeito de direito da formação contínua. Sem educador e sem formação, a gente não conseguiria nada”, pontifica a diretora dos Centros de Educação Científica da Associação Alberto Santos Dummont de Apoio à Pesquisa. Dora conta que uma vez por mês os professores das escolas públicas parceiras da AASDAP se reúnem com as coordenadoras dos três centros de ensino e participam de cursos, oficinas e conversas de avaliação, para que as informações sobre as trajetórias das crianças em cada uma das escolas sejam trocadas.
Resistência docente
De início, admite, os professores do ensino fundamental ficaram muito desconfiados com o projeto. “Eles imaginavam que a gente ia medir o quão eficiente eles eram e, em caso de alunos com pouco conteúdo, íamos culpá-los por isso”, lembra Dora, entre risos. Hoje já é possível brincar com essa questão; no entanto, no início da caminhada, lá pelos idos de 2007 e 2008, foi preciso vencer muitas resistências dos docentes. “A gente começou acabando com essa história de culpa. Ninguém é culpado por fracasso de ninguém. A segunda providência foi mostrar que a escola científica não substituiria e nem julgaria a tradicional. Aqui é outra experiência, só isso”, lembra a educadora.
Superada essa fase, Dora comemora: os relatos tanto dos gestores dos centros de ensino como dos professores das escolas públicas e até dos alunos sugerem que se formou uma parceria de fato. Os docentes vão às escolas de Macaíba, Natal e Serrinha para aprender, para trocar experiências e para se inspirar a não desistir de brigar por uma educação de boa qualidade para todos. “Os educadores chegam dizendo que com a estrutura que a gente tem aqui é fácil e saem notando que a relação das pessoas com o conhecimento, com a Ciência, com a postura para mudar a realidade não tem a ver com dinheiro ou estrutura física. Numa escola pobre é mais difícil, claro, mas ainda assim não há razão para desistir”, orgulha-se Dora. Segundo ela, nos relatos que esses professores fazem aparece de uma maneira ou de outra que alguns deles foram se transformando em multiplicadores dessas idéias nas escolas de origem.
Com os professores dos centros de ensino científicos, o trabalho é um pouco diferente. Primeiro eles são sensibilizados para trabalhar, respeitar e trazer para as oficinas a realidade e os conhecimentos dos alunos. Segundo, eles precisam ter um plano de curso bem desenvolvido, com os objetivos da oficina, a justificativa, os conteúdos, os pontos de encontro com a realidade dos estudantes e, por último, mas não menos importante, os critérios de avaliação objetiva.
Aqui importa alertar que os alunos não ganham nota, nem passam de ano, nem recebem faltas. “A avaliação segue parâmetros que medem a mudança de atitude em relação à construção do conhecimento”, explica a educadora. Portanto, a apropriação dos conteúdos, a expressão oral e escrita, a argumentação e defesa do que foi aprendido, a problematização da situação e a busca por soluções vão indicando e revelando quanto os alunos se transformaram no decorrer de cada oficina. “A gente não analisa as notas deles na escola, porque não é nosso trabalho, mas a gente tem também a devolutiva de professores e pais relatando como os meninos e meninas estão se comportando frente às situações da vida e das aulas.” A educadora completa: “E os depoimentos, de um modo geral, registram grandes avanços, apropriação de conteúdos e desejo de transformar”, comemora.
Dora conta que costuma avisar que os educadores da escola científica não inventaram nada de novo em termos de linhas pedagógicas. “Uma pesquisa rápida mostra que há tantas experiências bem sucedidas inspiradas nos pensamentos de Paulo Freire e Anísio Teixeira, por exemplo, que a gente não precisa inventar muito. Nossa linha é a educação democrática crítica”. Foi a educadora quem resgatou e recordou durante a conversa com a reportagem do SINPRO-SP um dos valores básicos de Freire em relação ao que ele pensava sobre a postura do professor. O pensador dizia que “ou se educa para domesticar, ou para libertar”.
E para Dora, a educação que os meninos e meninas das escolas científicas recebem pretende fazer com que esses jovens se descubram agentes de transformação e que sejam capazes de construir o caminho para serem justamente essas figuras conscientes e autoras de mudanças.