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Entrevista com jornalista Lourival Sant’anna

Quem está do lado de cá do Atlântico tem a sensação de que se trata de um cabo de guerra em que ora os rebeldes avançam, ora as forças de Kadafi conquistam espaço. É isso mesmo? O movimento é pendular? O que mais precisamente está acontecendo na Líbia?

Kadafi governa a Líbia desde 1969. Ele era um capitão na época e liderou um golpe de jovens oficiais que derrubou uma monarquia então recente, instituída cerca de 10 anos antes e que foi o governo estabelecido depois de conquistada a independência da Grã-Bretanha. Os oficiais do grupo de Kadafi derrubam o rei e a família real e implantam um regime nasserista, ou seja, afinado com a proposta de (Gamal Abdel) Nasser, no Egito (governou o país de 1954 até 1970). O governo deveria ser, portanto, pan-arabista, fortalecendo o povo árabe, anti-Israelense e secularista. Contudo, Kadafi montou um regime que girava totalmente em torno dele mesmo. O Estado era ele, o regime era ele. Kadafi implantou uma repressão violentíssima, sustentada pelo medo que todo mundo sente de todo mundo. Acontece na Líbia uma situação parecida com a de Cuba. Além dos Conselhos Revolucionários, em cada quarteirão, o governo escolhe uma família para ser a espiã das famílias vizinhas. Ninguém sabe quem é o espião, por isso todo mundo tem medo de todo mundo, porque ser denunciado e preso é fatal na Líbia. Há relatos de atos de repressão selvagens. A prisão de AbuSalim, para onde são levados os dissidentes, é palco de atrocidades.

E do que sobrevive esse Estado tirano?

Vive do petróleo, quase não cobra impostos e quase não há atividade industrial. Os petrodólares que entram no país supervalorizam o dinheiro líbio. Um dólar equivale a 1,20 dinares. E isso é um problema, por que o Estado é rico, é forte, mas a sociedade é fraca. Os impostos são uma das moedas de troca para os cidadãos cobrarem direitos e melhores condições de vida dos governos. É o equivalente econômico da cidadania. O custo de vida na Líbia também é barato, porque os preços são subsidiados pelo governo, o que faz a sociedade ser ainda mais passiva, brigar menos.

Existem outras razões para a população ter suportado uma ditadura tão cruel durante tanto tempo?

Para entender a situação dos países de maioria muçulmana é preciso entender dois conceitos fundamentais para o Islamismo. O primeiro é que o senhor, o governante, o líder está lá porque Alá quis assim e não se luta contra as designações de Alá. O segundo é que não é aceitável para um muçulmano brigar contra o seu povo, causar a divisão, Fitna, em árabe. Esses dois conceitos são profundamente arraigados. Brigar com o líder ou promover a fitna é espiritualmente condenável e socialmente inaceitável, seja no Egito, seja na Líbia.

Mas como então os egípcios e os líbios se levantaram contra seus líderes?

É comum justificarem o levante explicando que (Hosni) Mubarak não é verdadeiramente árabe, porque vem de uma sub-tribo dentro de uma tribo pequena. E Kadafi seria filho de mãe judia. Isso justificaria as ações contra ambos.

E como afinal esse equilíbrio se rompeu? Na sua avaliação, quais as razões dos levantes populares nesses países?

Os levantes são resultado da ação das novas gerações. Gente de 20, 30 anos, que cresceu assistindo duas TVs árabes: Al Jazeera e Al Arabia. As duas emissoras de magnatas do petróleo milionários que transmitem do Golfo Pérsico e mostram a realidade dos outros países do mundo, onde há liberdade e democracia. O mundo globalizado, que chega por parabólicas de sinal gratuito, foi dando novas referências àqueles povos. Os pais e avós dessa geração não conheceram esse outro mundo que agora chega pela televisão. Então os jovens estão fazendo as revoluções. Pode parecer pouca coisa por aqui, mas essa é a primeira geração que está escolhendo mais livremente com quem quer casar.

Mas há certamente também diferenças entre o que aconteceu no Egito e o que está acontecendo na Líbia.

O fator principal é a atuação das Forças Armadas. No Egito, o exército é popular, assim como o nosso. Os jovens são recrutados e, em geral, vêm das camadas mais populares, por isso, mesmo que cheguem a generais, continuam com raízes atreladas ao povo, daí porque não atacaram os irmãos de origem. Já na Líbia há dois exércitos. Um popular, pobre e mal preparado, formado por pessoas do povo, que tem como missão proteger a Líbia de ataques externos, como qualquer exército. E há um outro, de elite, que trabalha, exclusivamente, para proteger Kadafi, são os chamados Kataeb – que significa Brigadas. É importante compreender essa diferença porque os rebeldes diziam para si e para o mundo que os Kataeb combatiam por dinheiro, não tinham outra motivação e, por isso, cairiam logo. Só que não aconteceu, nem está acontecendo isso. Os Kataeb lutam, principalmente, para salvar o regime – sem o qual não sobrevivem, porque estão profundamente ligados a ele e seriam trucidados sem Kadafi e sem a ditadura. Portanto, protegem a própria pele. Não há motivação maior que essa. Esse exército é de uma ferocidade enorme.

Além da fraqueza das instituições, também se pode dizer que as divisões tribais na Líbia ajudam a situação a ficar mais complicada?

A Líbia mudou muito e esse tribalismo que é divulgado não tem mais o peso que já teve. Aliás, foi uma política do governo de Kadafi reduzir a força do tribalismo. Como eu já disse, ele vem de uma sub-tribo de uma tribo pequena, o que o enfraqueceria. O jogo foi se aliar à maior tribo, em troca de benefícios aos membros dessa segunda e assim governar.

E qual é o cenário atual dos combates?

Trata-se de uma guerra civil, que deve se prolongar. A Líbia está sob uma zona de exclusão aérea e terrestre, ou seja, Kadafi não vai conseguir mais armas. Mas o governo é extremamente bem armado. O general se preparou a vida inteira para essa guerra, portanto está preparado, possui armas, muitas armas. Não vai ser simples acabar com o conflito. A Otan está trabalhando, mas é bem difícil destruir os armamentos porque, ou eles estão bem escondidos, ou estão em áreas urbanas, com muitos civis, o que impede qualquer ação da Otan. Além disso, essa sensação de cabo de guerra, de ioiô, que a gente tem parece ser bem real. Quando os rebeldes conquistam uma cidade, poucos dias depois – ao avançar para a próxima – acabam perdendo o controle da primeira. Eu não falei ainda, mas a Líbia é um país desértico, as cidades ficam a enormes distâncias umas das outras. Dezenas, centenas de quilômetros entre uma e outra, o que facilita o corte das linhas de suprimentos, sem os quais ninguém come, bebe, se veste, tem armas. Assim, num dia os rebeldes tomam uma cidade e, ao avançarem, os Kataeb retomam o posto. E o contrário também.

A partir do que você viu e apurou lá, é possível inferir ou arriscar algumas possibilidades para o futuro próximo?

Com certeza será uma Guerra Civil prolongada, que deve durar um ano ou mais. Se isso de fato acontecer, o governo vai se enfraquecer, até cair. Existem outras duas possibilidades: Kadafi ser assassinado e o regime morrer com ele, ou Kadafi renunciar e ir embora. Mas as duas coisas são muito difíceis. Um fator que pode desequilibrar o cabo de guerra do exército com os rebeldes é o avião Predator, aquele não tripulado, que voa muito baixo e pode acertar os alvos militares poupando a vida de civis. De qualquer maneira, são operações que vão demorar.

E a população líbia, o que você percebeu?

Está aliviada, mesmo sob uma guerra civil. Ninguém aguentava mais. Do litoral até mil quilômetros para dentro do continente – toda uma região já dominada pelos rebeldes – é possível dizer que a população está apoiando o movimento. Dei para frente é difícil afirmar, seja porque é a região de origem de Kadafi e, portanto, a população apóia o general, seja porque o medo ainda está imperando e aí as pessoas não têm coragem de se dizer contrárias ao regime.

Estamos conversando enquanto você está indo para o Aeroporto Internacional de São Paulo, onde pegará um avião para o Líbano. De lá, o destino é a Síria. Uma rebelião também se anuncia naquele país?

A Síria é mais um dos países do norte africano que cansou de governos anti-democráticos. A população começou a protestar exigindo a saída do presidente Bashar al-Assad, filho do ditador (Hafez al) Assad, que estava no poder desde 1971 (faleceu em 2000). Os conceitos do Alcorão e a repressão à população novamente ajudam a explicar por que a população aceitou a situação por tanto tempo. A polícia política do governo também é extremamente violenta e mantém um controle estreito dos sírios.

Mas a Síria é um terceiro caso, diferente de Egito e Líbia.

Sim, porque é um país muito próximo a Israel. As Colinas de Golan, onde nasce o Rio Jordão, ficam na Síria e são um território dominado por Israel. Os sírios sempre tiveram enorme receio de que, caso se dividissem, abririam espaço para o domínio de Israel. Assad aparecia como o único líder capaz de unificar o país e proteger a população da dominação israelense.

Os protestos começaram há seis semanas, o número de mortos não é confirmado, mas se fala em quase 500 vítimas até aqui. E é sabido que o governo vem reagindo de forma violenta às manifestações. Indícios de mais um conflito prolongado?

As forças de repressão do governo sírio estão atirando para matar. No início da semana, na cidade de Deraa, no sul do país, oito tanques e franco-atiradores abriram fogo contra a população. E naquele dia não estava havendo nenhum protesto. Ações como essa são chamadas de punição coletiva e são relativamente comuns nos países árabes, servem para dar o exemplo. Não é confirmado, não temos como ter certeza, mas punições assim podem indicar a presença de focos de luta armada, o que mudaria completamente o cenário. Vou repetir que ainda é cedo é para afirmar que há luta armada na Síria, mas pode sim ser um indício. Estou indo para lá justamente para trazer mais informações. Por enquanto é cedo afirmar como está a situação e para onde deve seguir o conflito sírio.

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