Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Publicado em 20/5/2011
Em 13 de maio último, comemoramos os 130 anos de nascimento de Afonso Henriques de Lima Barreto, escritor brasileiro que viu a abolição da escravatura, a chegada da República e que retratou em sua obra um País multifacetado, formado por elites racistas que se corrompem, pobres humildes que se deixam oprimir, passando pelos intelectuais sonhadores e pela classe média apática a quase tudo que não seja frívolo. A veia irônica, crítica e atual da obra de Lima Barreto é o que faz, ainda hoje, escolas e professores recomendarem a leitura de !Recordações do escrivão Isaías Caminha” e de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, para citar apenas dois exemplos.
Para a professora de literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Carmen Lúcia Nogueira de Figueiredo, é justamente essa série de características muito peculiares à obra de Lima Barreto que garante a atualidade das histórias criadas pelo escritor. A começar pela diversidade dos temas tratados: a vida na cidade, o sonho do Eldorado (Amazônia), a preservação da natureza e vários outros aparecem de forma direta (nas crônicas e contos que revelam traços da biografia do autor) ou de forma indireta, em cenas ou diálogos dos romances.
Carmen destaca ainda a sedução pela imagem. “A geração de hoje tem uma relação com as imagens já antecipada por Lima Barreto. A identificação é quase automática”. Há uma passagem em “Triste Fim”, por exemplo, em que o escritor retrata como um morador dos subúrbios do Rio de Janeiro fica fascinado pelas vitrines do centro da cidade. “O que uma pessoa que passa por isso sente? Como fica sua alma depois? Embora tenha sido narrado há mais de 100 anos, continua fazendo sentido”.
Atento observador
Barreto era um observador, narrava paisagens, cenas prosaicas, roupas e certos detalhes de maneira incomum para a época. Talvez fosse o lado jornalista vindo à tona. O escritor ganhava a vida escrevendo relatos para jornais grandes e pequenos e revistas grandes e pequenas. A vivência como noticiarista também reforçou outro aspecto relevante da obra do autor carioca, como conta a especialista: “O romance tinha naquele tempo o papel que a TV tem hoje na vida das pessoas. Lima Barreto sabia dessa importância e, por isso mesmo, atribuía à leitura um papel histórico, porque remete a um ato político, de formação mesmo do cidadão”.
A pesquisadora se refere às consequências da exposição a essas imagens narradas nos livros. O leitor, segundo ela e segundo a proposta de Lima Barreto, se deixa – de alguma forma – influenciar pelo que está sendo contado nas páginas do romance: das roupas da moda e à decoração da casa, passando por aspectos culturais, até chegar ao imaginário sobre o que é a Amazônia e o que é Brasil mesmo. “E ele tinha razão. Pergunte a uma pessoa comum como é a Floresta Amazônica. Mesmo não tendo lido nada sobre a região, a pessoa pode descrever por conta de imagens passadas por livros escritos há muito tempo. Lima Barreto se preocupava muito com essa questão”, completa.
Daí porque não é exagero dizer que a qualidade da obra de Lima Barreto – que justifica a leitura ainda hoje – passa também pelo cuidado estético, literário mesmo, da narrativa. A preocupação do autor com a função de um texto escrito desembocou em preciosidades da língua portuguesa. “Os livros de Lima Barreto representam uma novidade: a linguagem mais coloquial, distante da língua pomposa usada pelos literatos do final do século 19, próxima do jornalismo, tratada com o impacto da imagem e com qualidade estética”, ensina a professora da UERJ. Ou seja, é a literatura de alta qualidade que torna irresistíveis “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Vida e morte de M J Gonzaga de Sá”, “Clara dos Anjos” e outros, todos imperdíveis, como reforça a historiadora Maria Salete Magnoni, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e pesquisadora da obra de Lima Barreto.
Um escritor libertário
“O perfil crítico e engraçado de Lima Barreto é sempre a primeira razão para conhecer as obras, mas não devemos parar por aí. Trata-se, afinal, de boa literatura, de livros de excelente qualidade”, defende. Quando explica as razões para se indicar a leitura do escritor carioca, a pesquisadora lembra que, primeiro, ele é comparável a todos os outros grandes: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector e, por isso, deve fazer parte das bibliotecas de adolescentes, jovens e adultos. Em segundo lugar, os temas sobre os quais Barreto se debruçou ainda merecem reflexão e, em terceiro lugar, junto com a qualidade estética dos textos, Maria Salete levanta um aspecto pouco discutido na produção barreteana. “Ele tinha um projeto muito claro de tratar, por meio da literatura de boa qualidade, de temas libertários. Ele era um escritor libertário”, conta.
A ideia de que Lima Barreto tinha planos e traçava caminhos para oferecer ao leitor essa libertação se contrapõe frontalmente à imagem do escritor que passou para a história. Tido como um bêbado, neurastênico e relaxado, Lima Barreto era, na verdade, um homem muito metódico e organizado, a ponto de catalogar e classificar toda a sua biblioteca e seus estudos. “Ele era um intelectual que pensava o Brasil e os leitores brasileiros, tinha planos, trabalhava nesse projeto. E de cada um dos seus estudos tirava argumentos e força para buscar essa literatura libertária”, reforça a historiadora.
A desqualificação pública que Lima Barreto enfrentou – ser taxado de bêbado e louco – tem algumas razões, segundo Carmen. A própria vida boêmia de Lima Barreto ajudava a compor essa imagem. Mais do que isso, porém: entre os anos de 1920 e 1930, era comum que a crítica literária partisse da vida pessoal dos escritores para explicar e justificar determinados aspectos da literatura feita por eles. Assim, parte do que se comentou sobre os livros de Barreto se apoia nessa visão de que ele era alcoólatra e desorganizado.
Além disso, como os escritos não se pareciam com a literatura empolada da época e nem se encaixavam perfeitamente nos outros padrões vigentes, a crítica tratou de desmerecer. “É comum que desqualifiquem aquilo que não se entende bem”, propõe a professora da UERJ. E Maria Salete completa e diz que esse romance novidadeiro proposto por Lima Barreto era pautado por um modelo de fazer – aliás descrito em Isaías Caminha – que buscava a solidariedade humana e a prosa como elemento de transformação da sociedade. Ele tinha método, produzia conscientemente uma arte engajada, sem perder nunca o caráter estético da sua produção.
Contra o racismo
Por outro lado, a vida de Lima Barreto de fato produziu ecos em sua literatura. “Ele era um mulato, viu aos sete anos a festa da abolição da escravidão e aos oito a apatia da chegada da República. Pai ex-escravo, mãe mulata e professora, como isso não influenciaria a obra?”, pergunta Carmem. É por esse caminho que chega a questão do preconceito, por exemplo. Mais do que denunciar a prática, Lima Barreto toca – por exemplo – num ponto nevrálgico dessa história. Muitas vezes, a venda que inferioriza o mulato, o negro, em relação ao branco está nos olhos do próprio mulato, revela a professora da UERJ e autora de livros, artigos e textos sobre o escritor carioca.
Quem oprime? É a pergunta que ainda hoje o movimento negro por vezes levanta. Se a névoa não desencobrir o olhar dos mulatos e dos negros, a igualdade não vai acontecer. Lima Barreto, além de narrar cenas que tocam nessa questão, buscava nas muitas leituras que fazia (a biblioteca dele era composta por pensadores como Karl Marx, Friedrich Engels, Jean-Jaques Rousseau, Friedrich Nietzsche e que tais) argumentos para se opor ao racismo. Até na fonte dos positivistas o escritor bebeu e de lá retirou inspiração para brigar contra o racismo, de acordo com a pesquisadora da USP.
Neste ponto cabe ressaltar que Barreto escrevia sobre a questão negra, se assumia como mulato e se posicionava fortemente em relação a isso, ao contrário de Machado de Assis, um dos maiores nomes da literatura brasileira que, apesar de mulato, não se pronunciava nem nos textos nem na vida real sobre os problemas dos negros. A crítica literária, conta Carmen, foi conivente com Machado e não o classificava como mulato, nem cobrava posicionamento do escritor. Da própria vida, Barreto também colheu elementos para expor uma das grandes injustiças do Brasil: aqui ninguém prospera apenas por seus próprios méritos.
Lima Barreto, embora autor de uma obra de respeito, jamais ganhou dinheiro com seus livros, nunca foi reconhecido pelo talento e jamais conseguiu entrar na Academia Brasileira de Letras – que embora criticasse, entendia como um lugar onde a qualidade de escritor seria respeitada. Por essa razão, perguntava-se tanto se seria mais feliz caso tivesse estudado menos, caso tivesse menos conhecimento. Embora estejamos falando do século 19, a sensação de que aqui ganha a vida quem tem outros atributos além do bom trabalho segue formando a imagem que o brasileiro faz de si e de seu país.
”Que país é esse?"
Há ainda um último aspecto fundamental para explicar a grandeza de Lima Barreto no cenário da literatura brasileira. Maria Salete lembra que o escritor está situado cronologicamente entre Machado de Assis, que conheceu e desnudou a elite do Brasil com irrepreensível qualidade estética, e os modernistas, que revolveram tudo aquilo que era tido como sagrado na literatura.
Barreto, por um lado, rompe com o padrão de Machado ao tornar o texto mais coloquial, dar força à imagem e a trilhar um projeto de literatura como elemento de transformação do mundo. Mas, por outro, ainda aposta no romance como a grande força da narrativa, aposta na narrativa como alavanca política e, embora não faça uma literatura de vanguarda, banca que o bonito não precisa ser o que é gramaticalmente complicado. Costurando essa última característica aparece o questionamento sobre o papel do intelectual – que ele era, que Policarpo Quaresma era. Os homens que apresentam o rosto do Brasil deveriam reconhecer que têm esse papel, que vão mostrar ao povo o que e como esse povo é.
Para Barreto, os intelectuais moveriam o país adiante e por isso mesmo a pergunta que os livros e seus autores deveriam fazer é: que país é esse? E, ao buscar a resposta, oferecer caminhos libertários, de solidariedade e de transformação social.
Assim era Lima Barreto.