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Muito além dos castelos, dos mosteiros e das trevas

Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Publicado em 3/6/2011

Estreou no último dia 21 de maio a exposição Castelos e Cavaleiros, na Estação Ciência, em São Paulo. A mostra, que tem a curadoria do historiador Evandro Faustino, professor da Universidade São Marcos, apresenta armaduras, elmos, inventos e informações e artefatos que foram projetados entre os séculos V e XV, na Europa Ocidental. Cheia de pequenos ambientes que reproduzem parte do cotidiano dos castelos, dos feudos e das cidades medievais, a exposição inspira a fantasia e desperta a curiosidade de estudantes mais novos e mais velhos.

Contudo, a intenção pode ser desvirtuada e se perder se o visitante incorrer no erro mais frequente quando se estuda a Idade Média: reduzir essa etapa a ação de três personagens caricatos (os camponeses, os cavaleiros e os padres). “É uma visão deturpada, muito vendida pelos filmes, mas que não corresponde à realidade”, inicia a discussão o historiador Carlos Nogueira, professor de História Medieval da Universidade de São Paulo. A professora de História Medieval da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Miriam Coser, concorda e reforça: “O primeiro grande engano é mesmo achar que na Idade Média a sociedade era formada por padres, guerreiros e camponeses”. Na realidade, insiste, a organização social era muito mais complexa. Outros atores compunham aquele cenário e, para o arrepio dos que pregam que se trata da Idade das Trevas (onde se oprimia o conhecimento, a escrita, as mulheres e os infiéis), os mil anos medievais foram muito ricos em relação à produção humana, artística e tecnológica.

A afirmação pode soar estranha, mas as pesquisas acadêmicas sobre a Idade Média, desenvolvidas aqui no país e também no exterior, mostram exatamente essa riqueza e essa diversidade que os especialistas apontam. Aliás, os estudos brasileiros foram ganhando qualidade e relevância à medida que foram estabelecendo intercâmbios e se afinando com grupos tradicionais de estudos medievais da Europa, sediados na França e em Portugal, por exemplo. Curiosamente, a ebulição que sacode a academia não é encontrada nas escolas de ensino fundamental e médio, períodos nos quais a Idade Média é apresentada aos estudantes.

Nogueira atribui essa distância a um intervalo natural que se observa entre a produção acadêmica e a aplicação nas escolas, um fenômeno bem comum e não reduzido à História. O professor da USP sugere ainda que as editoras que movimentam o mercado de livros escolares e didáticos não demonstram tanto interesse na Era Medieval quanto aquele revelado pela História do Brasil.

Miriam ressalta que é justamente a História do Brasil a área mais bem trabalhada no que diz respeito ao tempo que leva para as inovações nascidas na Universidade chegarem aos colégios; à riqueza de detalhes e reflexões; à presença de bons livros e outras obras de referência para apoiar os estudos. Para ela, a Idade Média não seduz tanto quanto poderia os livreiros, os professores e alunos, não apenas porque o Brasil não a atravessou da maneira mais conhecida, com os castelos, os camponeses, os cavaleiros e a Igreja, mas principalmente “porque se pensa o período como um intervalo entre o Feudalismo e o Capitalismo, ou seja, o importante é sair de uma fase e passar para a outra, mas para isso, há que se passar pela Idade Média”, provoca.

Longa e Rica

Os prejuízos para o entendimento do mundo medieval e até do mundo atual quando se sobrevoa superficialmente o período que vai do fim do Império Romano à chegada ao Capitalismo são vários. A professora da UniRio, que já havia comentado que a sociedade medieval era bem mais complexa que a redução mais clássica entre padres, cavaleiros e camponeses, destaca também a questão das cidades. Ao contrário do que se costuma estudar, as cidades também existiam na Era Medieval. Eram assentamentos rurais, diferente das cidades modernas que conhecemos hoje, mas existiam de forma independente dos castelos. “Tradicionalmente se relaciona o surgimento das cidades com o nascimento do próprio Capitalismo. E não é bem assim. Nem todo mundo vivia no castelo, existia uma economia, uma vida social e de trabalho nas cidades”.

E esse não é um detalhe descartável. Mais adiante, quando os professores apresentarem suas propostas para as aulas de Idade Média ficarem mais atraentes, as cidades e o trabalho terão um lugar significativo. Nogueira vai adiante. “Me preocupa o reducionismo com a Idade Média, porque as pessoas deixam de saber, por exemplo, que parte da inspiração fascista e de Hitler – com a figura do herói, do povo que sai para a conquista, da nobreza dos ideais de guerra, etc... – estão na Idade Média”. Ele lembra que, nesse período, a Europa conseguiu feitos incríveis, como construir as primeiras máquinas movidas à energia não humana, como o moinho d’água; com pensamento e tecnologia avançados para a época, os europeus medievais conseguiram também dominar a alimentação e possibilitaram que o continente ficasse mais dinâmico e pudesse conquistar os outros continentes. “Ou seja, até a corrida dos Descobrimentos do século XVI e o Neocolonialismo do século XIX têm, como origem, a Idade Média. Não dá para continuar achando que era um tempo sombrio em que o homem não se desenvolveu”, pontua o professor da USP.

Tudo isso vem temperado com o requinte da longevidade. Em tempos de produtos, valores e culturas descartáveis, as heranças que vêm da Idade Média ainda manifestam forte relevância no mundo atual. A primeira que merece atenção é a duração física do que foi construído entre os séculos V e XV. Pontes, castelos, igrejas, muros, universidades e cidades inteiras seguem firmes, de pé, desafiando o tempo e a intempérie.

De natureza mais sutil, a representação do feminino ideal também tem o berço naquela fase. “A figura da mulher perfeita, espelhada em Maria – o chamado modelo mariano –, devotada ao marido, submissa, que aguenta as dores sem fazer alarde, nasceu lá na Idade Média. A gente precisa se perguntar por que a Igreja tentou impor com tanta força esse modelo e demonizar as mulheres que desgarrassem dele”, provoca Miriam.

Nasceram na Idade Média também, e perduram até hoje, ideais de comportamentos e de posturas frente a vida e a sociedade. O certo e o errado em relação à sexualidade, ao aborto, ao casamento e às relações entre homens e mulheres seguem pautados pelo que a igreja já dizia em tempos medievais. O assunto, lembra Miriam, é tão atual que virou pano de fundo na última eleição presidencial. Se a isso o professor somar que muitos dos estudantes em breve serão – ou já são – eleitores, o período medieval fica inegavelmente atual.

Na prática

Não existe um caminho certo para convidar os alunos a conhecer essa nova Idade Média, carregada de detalhes intrigantes. Para Miriam, o professor precisa estar bem preparado e disposto a desbravar o terreno junto com os jovens. Uma possibilidade é retomar os contos de fadas e histórias infantis. É sabido que essa forma narrativa se inspira na Idade Média, ou no que foi romantizado nos séculos seguintes.

Como boa parcela das crianças tem contato com Bela Adormecida, Rapunzel, Branca de Neve, Rei Arthur e tantos outros, não é difícil propor conexões. O risco, como os especialistas já alertaram, é reduzir toda uma Era a um sonho dourado, com princesas, príncipes encantados, cavaleiros errantes (que Miriam garante: nunca existiram!) e dragões cuspidores de fogo. Essas histórias podem abrir o repertório, ajudar a fugir da falácia da Era das Trevas, mas não se pode parar por aí. Conhecer as cidades pode ser muito rico também, na opinião da historiadora. “Sabendo a realidade do estudante, dá para traçar estratégias diferentes. Se ele é de classe média ou alta, talvez ele, ou os pais, tenham visitado as cidades medievais que ainda existem na Europa e essa pode ser uma ponte. Se for de classe um pouco mais baixa, certamente já viu, ou ouviu falar, das cidades que – ainda hoje – são construídas ao redor de uma igreja. São Paulo, por exemplo. Essa é uma referência medieval”, propõe. Alinhar o conteúdo às artes também pode dar bons resultados: os vitrais medievais, as pinturas bizantinas e a música da Alta e da Baixa Idade Média – seja a religiosa, seja a popular – costumam atrair os alunos. Assim como ser uma tarefa produtiva pedir que eles mesmos representem as corporações de ofício, entidades de trabalho manual, artesanal, mas profundamente hierarquizadas.

Se é verdade que os livros didáticos ou desfiguram, ou não dão a devida importância à Idade Média, Nogueira sugere que o professor leia e se inspire em obras não-didáticas, como a biografia Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo, de Georges Duby (Ed. Graal), que conta a vida do paladino Guilherme, que trabalhou junto a três reis – entre eles o famoso Ricardo Coração de Leão –, ou O outono da Idade Media, de Johan Huizinga (Ed. Cosac Naify). Dependendo da idade e do grau de envolvimento dos estudantes, é possível ainda sugerir que eles mesmos leiam os títulos e, dessa forma, construam noções mais profundas sobre a relação entre as pessoas, a relação com o trabalho, o cotidiano nas cidades e nos castelos, as cruzadas etc.

Para quem quiser se arriscar nas produções audiovisuais, os dois entrevistados são unânimes: O incrível exército de Brancaleone (de Mario Moricelli) – porque, entre uma trapalhada e outra, é possível conhecer o cotidiano, as relações entre as pessoas e a mentalidade da época. Miriam recomenda ainda Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zefirelli (que dá até para alavancar uma conversa sobre como a época em que o filme é feito se reflete na época retratada e, nesse caso, mostra Francisco e Clara como pequenos hippies, próprios dos anos 1970, segundo a professora da UniRio). Já Nogueira sugere Monty Phyton: em busca do cálice sagrado (de Terry Gilliam e Terry Jones) e Robin e Marian, de Richard Lester. Todos eles, de acordo com o professor da USP, reconstituem mais fielmente o que foi a Idade Média e convidam alunos e professores a conhecer melhor essa fase muito mais rica e diversa do que se costuma conhecer.

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