Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Publicado em 14/9/2011
Há certas questões que compõem a História do nosso país que são realmente intrigantes e carecem de explicações mais aprofundadas. Uma delas está relacionada às razões que levam o gaúcho João Goulart a aparecer, na maioria das vezes, tão brevemente e de forma superficial e fragmentada, nos relatos e nos livros históricos, consolidando-se assim a imagem de um personagem histórico marginal e sem importância. E não deveria ser dessa maneira. Afinal, na década de 1940, Jango, como era chamado por seus eleitores, foi deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul, estado em que tinha grande importância política. Anos mais tarde, em 1953 e 1954, foi ministro do trabalho no governo de Getúlio Vargas e provocou impactos tão intensos com suas políticas trabalhistas que foi eleito vice-presidente pouco tempo depois, em duas ocasiões: 1955 e 1960. O último degrau da sua vida política foi a Presidência da República, cargo que alcançou quase por acaso, depois da renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Foi a deposição de Goulart que abriu as portas para a ditadura militar, que duraria 21 anos, de 1964 a 1985. Como é possível, portanto, que se fale tão pouco nessa figura?
Para responder a essa pergunta e tentar apresentar com outras nuances e profundidade o ex-presidente à sociedade atual, às novas gerações, o historiador Jorge Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), se debruçou sobre a vida de Jango. Foram anos de pesquisa, olhando documentos e ouvindo diversas fontes, até que tivesse material suficiente para escrever um livro.
João Goulart, uma biografia (Ed. Civilização Brasileira) ficou pronto em julho último e foi lançado oficialmente no dia 18 de agosto. A primeira edição já está esgotada e a segunda chega às livrarias em algumas semanas. O interesse pela história do ex-presidente revela a sede por informações de mais fôlego sobre essa figura marcante, que deixou um legado extremamente atual, mas que não recebe os devidos louros, na opinião de Ferreira.
O professor de História do Brasil, especialista no período de 1930 a 1964, conta que estudando essa fase atentou para os impactos promovidos pela gestão de João Goulart no Ministério do Trabalho, entre 1953 e 1954. “Jango já tinha sido deputado, mas até então era um político de expressão regional, não tinha projeção nacional. Chegando ao Ministério foi o líder de mudanças profundas”, explica. A principal marca desse intervalo foi a subida de status dos trabalhadores a uma classe respeitável e legítima. Goulart retira a restrição ao direito de greve, recebe os sindicalistas para conversar – coisa que não era comum – , suspende a necessidade do atestado ideológico, que garantia que as chapas que comandavam os sindicatos não eram formadas por comunistas, entre outras medidas muito impactantes. “Por isso os trabalhadores e sindicalistas enxergavam em Jango um interlocutor privilegiado no Estado”, ensina Ferreira. Essas iniciativas também tocam positivamente a população, de maneira mais ampla. Em 1955, concorrendo como vice-presidente, Goulart teve 3,5 milhões de votos. A título de comparação, na mesma eleição, pleiteando a presidência da República, Juscelino Kubitschek alcançou 3 milhões de votos.
“Jango é o herdeiro de Getúlio Vargas nas propostas trabalhistas. Getúlio percebe que não é imortal e entrega a Jango seu legado do trabalhismo e, dos anos 1950 para frente, Goulart aprofunda esse projeto, com uma leve guinada à esquerda”, afirma o professor da UFF. Por guinada à esquerda, o leitor pode entender como apoio à reforma agrária, defesa de benefícios sociais – inspirados na social-democracia europeia –, incentivo ao desenvolvimento industrial – inclusive com criação e fortalecimento de empresas estatais –, enriquecimento do país com distribuição da riqueza e independência da economia nacional em relação ao capital estrangeiro. “Essas propostas desembocam nas famosas Reformas de Base, defendidas por Jango, que causariam o arrepio de certos setores mais conservadores. Nesse momento, o presidente se torna o líder do projeto nacionalista e reformista do Brasil”.
A resposta daqueles conservadores foi o golpe de 1964 que, além de jogar o país numa aventura de ditadura militar violenta e repressiva, trata de apagar a memória desse líder e desse projeto trabalhista, um tanto identificado com as esquerdas. De forma consciente e orquestrada, a direita passa a atacar a figura do ex-presidente, colando nele o rótulo de fraco, inepto e corrupto. E classificando seu governo de comunista. As esquerdas, segundo o autor, não ficam para trás. Para esses grupos, Jango deveria ter resistido bravamente ao golpe de 64. Não ter comandado a resistência fez do ex-presidente um fraco, entreguista, covarde, que fugiu para o Uruguai. E o que ainda levava a crer – na visão da esquerda – que o ex-ministro do Trabalho era, na verdade, um manipulador.
“Destruir a imagem pessoal de João Goulart era uma maneira de apagar também um projeto, uma proposta de trabalhismo para o Brasil”, lembra Jorge Ferreira. Para a direita, essa jogada era fundamental para reduzir a importância do momento imediatamente anterior da nossa história. Era preciso limar a referência ideológica. Para as esquerdas, se afastar de Jango foi um caminho encontrado para que não houvesse associação com o golpe. Nos anos seguintes, a imprensa e os intelectuais trataram de reforçar a imagem negativa do gaúcho. A palavra encontrada foi populista, um político que age em benefício da própria figura, acaricia o povo, mas não tem um projeto político consistente. A pecha de populista acompanhou os últimos anos de João Goulart e as referências a ele e a seu governo daí para frente. Uma injustiça, na opinião do autor da biografia recém-lançada.
Vem a ditadura e, depois do bombardeio patrocinado por parte das direitas, das esquerdas, da imprensa e dos intelectuais, assume-se o silêncio. Jango passa a ser solenemente ignorado pela mídia, pela historiografia, pelos formadores de opinião e pelos políticos. Seu nome só volta à cena nacional em 1984, quando é lançado o filme Jango, dirigido por Silvio Tendler. “A ditadura estava nos estertores e falar de Jango soava como soar um grito entalado na garganta. Foi um momento expressivo, mas que logo se desfez, porque veio a redemocratização e o ex-presidente voltou para o limbo”, lamenta o historiador. Segundo Ferreira, Juscelino Kubitschek sofreu os mesmos insultos, mas com o fim da ditadura, passou ser revisitado, retrabalhado, recuperado. Hoje, a memória de JK é viva e bem abraçada pela sociedade.
O mesmo não se deu com Jango e um dos objetivos do livro João Goulart, uma biografia é, justamente, ajudar a resgatar o personagem do ostracismo e, eventualmente, impulsionar uma reconstrução da memória dessa figura. Por isso Ferreira investiu num relato que não fosse só político, ou que tratasse apenas do golpe de 1964. “É uma biografia mesmo. Começa lá no nascimento, passa pela juventude – que é muito pouco conhecida – chega à vida política sem nunca se distanciar da vida privada. Aí sim falo do golpe e dos 12 anos de exílio, um período esquecido, em que o ex-presidente sofreu barbaramente”, conta o autor.
O professor da Universidade Federal Fluminense defende que a falta de memória dos brasileiros se deve, em grande medida, à falta de informação e que lembrar a sociedade do que aconteceu é uma das funções do historiador, “porque até para criticar, ou para saber onde estão as raízes, é preciso conhecer”, defende, começando a explicar que o projeto trabalhista ainda é uma das bandeiras das esquerdas atuais (nacionalismo, bem-estar social, independência em relação ao capital estrangeiro) e, da mesma forma como acontecia na década de 1960, continua irritando setores das direitas. Na mesma linha, antes de se afirmar que Jango era um fraco, como se costuma fazer, é preciso saber que ele era, antes de tudo, um homem do diálogo, um negociador, um político que nunca impunha sua vontade contra tudo e todos.
“Numa situação de greve, por exemplo, o presidente chamava empresários e sindicalistas e negociava acordos que fossem bons para os dois lados e que fossem possíveis de cumprir. Acordos com avanços reais”, conta Jorge Ferreira, ressaltando talvez a principal característica do gaúcho. Essa maneira de conduzir as questões é que fez dele um político de expressão nacional, respeitado e odiado ao mesmo tempo. Foi essa forma de agir, chamando as partes à conversa, que fez avançar os direitos dos trabalhadores e a política nacional como um todo, sugere o professor da UFF.
Para o autor, a capacidade de negociação era uma das grandes qualidades de João Goulart, mas em tempos de acirramento de posições ideológicas, não raro também podia ser encarada como um grande defeito. “A década de 1960 foi um tempo de radicalização das esquerdas e das direitas. Era um tempo de Guerra Fria, de combate ao comunismo, de fortalecimento de movimentos sociais de esquerda”, vai contando o autor. “Por isso mesmo ser um negociador não funcionou, os tempos não permitiam esse luxo, e Goulart acabou pressionado demais, eram tempos difíceis, as partes não queriam acordos, queriam enfrentamento de todas as ordens”, afirma. E nesse embate, os setores conservadores acabam levando a melhor. Jango sai do país para viver no exílio e é paulatina e propositalmente apagado pela direita e massacrado pela esquerda, que exigia uma resistência ao golpe.
E por que Jango não resiste? Jorge Ferreira lembra que o golpe de 1964 começa a ser dado em 31 de março e é concluído em 1º de abril. As fontes consultadas para a escrita da biografia dão conta que, na manhã do dia 31, ao saber da movimentação das tropas mineiras sob o comando de José de Magalhães Pinto, governador daquele estado, Goulart teve o ímpeto de resistir. “E todos os entrevistados são unânimes em afirmar que se ele tivesse comandado, a resistência aconteceria. Ele era um líder forte o suficiente para isso e tinha apoio de uma parcela das Forças Armadas”, diz o historiador. Mas não é o que acontece, para arrepio das esquerdas.
Naquela mesma manhã, Francisco Clementino de Santiago Dantas, ministro da Fazenda daquela gestão e político muito próximo do presidente, obtém a informação que, caso houvesse qualquer resistência, o estado de Minas Gerais declararia Estado de Beligerância contra a União. “Nas resoluções do Direito Internacional, esse estado permite que o estado receba ajuda financeira, diplomática e militar de outras nações, o que significava que o governo norte-americano, através de seu exército, entraria nessa batalha contra o governo federal e o resultado seria uma guerra civil”, revela o biógrafo. João Goulart soube disso e teve imediatamente a confirmação de deslocamento de navios militares dos Estados Unidos na costa brasileira (informação que só seria conhecida pela maioria da população em 1973, quando já era tarde para entender as razões do presidente). Segundo o livro, Goulart entendeu que não se tratava de um descontentamento restrito a um grupo reduzido. O golpe foi um amplo movimento civil, militar e com apoio estrangeiro.
Ao se voltar para as instituições democráticas, o presidente vê ainda os governadores dos principais estados (Guanabara, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), e o presidente do Congresso Nacional, se manifestarem favoravelmente ao golpe. Os ministros do Supremo Tribunal Federal se calam, sem condenar a movimentação militar. “João Goulart tomou uma decisão sensata naquele momento, bem de acordo com o feitio dele, que sempre foi de ponderar e não de impor vontades”, conta Ferreira, enquanto lembra que àquela altura ninguém poderia supor que o golpe resultaria numa ditadura longa e violenta como a que se impôs. Nem mesmo os apoiadores, que no ano seguinte – 1965 – saíram como candidatos à presidência da República. “Naquele momento, o pensamento geral é que seria uma tomada do poder em nome da moralização do país e que logo tudo voltaria ao normal”, pondera o professor da Universidade Federal Fluminense.
Para piorar a fama, João Goulart sai do país e vai viver numa fazenda na Argentina e morre lá mesmo, em 1976. Como toda história misteriosa, a morte do ex-presidente também foi cercada por certas teorias de conspirações. Não faltaram versões atribuindo o falecimento a um possível envenenamento ordenado pela Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA. Jorge Ferreira alerta que um historiador só pode fazer afirmações que sejam baseadas em provas, de qualquer natureza – documentos, depoimentos etc. “E não há nenhuma prova do assassinato de João Goulart. Há indícios, mas de morte por causas naturais e muito menos glamourosas”, brinca.
De acordo com a biografia, Jango sofrera um acidente cardiovascular em 1962, um infarto em 1969, era hipertenso, tomava um remédio contra angina e dois conta a pressão alta, fumava dois maços de cigarro diariamente, bebia whisky todas as noites e não praticava exercício. “Pouco antes de morrer, Goulart fez exames, foi classificado como cardíaco, e iniciou a dieta da proteína, só comia carne e ovo”, detalha Ferreira. Além disso, um dos remédios para a hipertensão bloqueava a produção de serotonina, o hormônio relacionado ao bem estar e ao bom humor. “Podemos dizer que hoje João Goulart seria diagnosticado como depressivo”, conta, reforçando a versão de uma causa natural para o falecimento do ex-presidente. Mas o autor da biografia também retoma uma história recente que jogou gasolina nessa fogueira.
Em 2007, o uruguaio Mario Neira Barreiro, preso aqui no Brasil por crimes como assalto a carro forte e tráfico de armas, revelou que teria sido ele o algoz de Goulart. Décadas antes, enquanto trabalhava para a ditadura uruguaia, Barreiro seria o responsável por interceptar os telefonemas de João Goulart e, dessa forma, saberia tudo o que se passava na vida do presidente deposto, inclusive da necessidade dos medicamentos para controlar a pressão arterial. Segundo o agente, instruído pela CIA, teria trocado os comprimidos por pílulas de veneno, que matam Jango. Embora digna de filmes policiais e cheia de elementos atrativos, a história do criminoso uruguaio nunca foi confirmada.
“A Polícia Federal e o Ministério Público brasileiro investigam e não acham uma só pista que pudesse confirmar essa versão, mas fica claro que Barreiro queria evitar a extradição para o Uruguai alegando que lá seria julgado por crimes políticos, de forma que seria mais vantajoso para ele ficar aqui no Brasil”, relata o biógrafo. Não colou. Assim que se acertar com a justiça daqui, o prisioneiro seguirá para seu país de origem para ser julgado não por crime político, como afirma, mas por crime contra o patrimônio. Na opinião do professor da UFF, embora desaponte os apaixonados por trailers policiais, os supostos adversários do presidente não eram exatamente conhecidos pela delicadeza nos métodos de extermínio dos opositores. Sabidamente colocavam bombas em automóveis ou cravejavam o alvo de tiros. “Por que então matariam Goulart tão sutilmente? Não faz sentido”, sentencia o autor de João Goulart, uma biografia.
E, por falar em biografia, Jorge Ferreira argumenta que o crescimento desse tipo de obra se dá, em grande medida, porque o público gosta muito de conhecer a vida e a obra de personagens valorosos para a história, mas que isso não é novidade. “O que começa a acontecer mais recentemente é que os historiadores tomaram gosto pela biografia”. Para Ferreira, até bem pouco tempo atrás, os historiadores eram meio desconfiados com essa forma de narrativa, porque não acreditavam que o indivíduo, sozinho, em particular, fosse uma peça muito importante para a compreensão da História. “Jornalistas, intelectuais, escritores sempre fizeram biografias, historiadores é que eram mais resistentes. Essa é a visão que vem mudando. Biografar alguém é oferecer ao público uma oportunidade de conhecer a história pelos olhos de seus personagens, é uma visão humana, inédita e muito atraente para o leitor”, afirma o biógrafo. “O livro que eu escrevi atende exatamente a essas duas frentes, o rigor de uma obra histórica, com a leveza e a fluência que atrai o público comum, com o intuito principal de resgatar João Goulart do limbo do esquecimento”, conclui.