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Entrevista com Antônio Carlos Malheiros, presidente da Comissão de Justiça e Paz

DE REPENTE, QUASE 30 ANOS DEPOIS, OS JORNAIS VOLTAM A ESTAMPAR SUPOSTAS FOTOS DO DIRETOR DE JORNALISMO DA TV CULTURA, VLADIMIR HERZOG. DESSA VEZ, NÃO SE TRATA MAIS DA EMBLEMÁTICA FOTO DELE MORTO, QUE TENTAVA DAR LEGITIMIDADE AO FALSO SUICÍDIO, MAS SÃO NOVAS IMAGENS, DE UM HOMEM NU, ACUADO, PRESO. ALÉM DA DISCUSSÃO SOBRE SE AQUELE HOMEM É MESMO HERZOG, TUDO ISSO TROUXE À TONA FERIDAS NÃO FECHADAS. SERÁ QUE ELAS VÃO CICATRIZAR UM DIA?
Ah é difícil, é muito difícil que cicatrizem. A lei de Anistia [de 1979, que perdoou simpatizantes e antagonistas do regime militar, beneficiando também os torturadores] foi muito legal. Legal porque trouxe a paz que a gente precisava naquele momento, deu força à abertura política pela qual já vínhamos passando, soltou os presos, deixou voltar os exilados. O grande problema dessa lei é que ela não julgou quem deveria ter sido julgado. Perdoou criminosos. E por causa disso, eu posso cruzar na rua com quem torturou. Eu acho que, para uma ferida qualquer cicatrizar, ela precisa ser bem limpa, tirar toda a sujeira de lá de dentro e aí sim deixar ela fechar. Ficar fazendo agrado nas feridas não limpas não ajuda em nada, nem deixa ela cicatrizar. E no Brasil a gente não fez essa limpeza. Vamos julgar todos. Por que não? Vamos julgar sim, passar essa história e essa verdade a limpo. Você, que matou para não morrer, você que investiu contra o sistema vigente, você que entrou na ilegalidade por defender causas democráticas vai ser julgado com todas as atenuantes. Você que violou os direitos humanos, que torturou, que teve prazer em torturar – ou não, porque a abominação é a mesma –, você também vai ser julgado, sem atenuante nenhuma. Aí, fazendo essa passagem, vamos começar a desvelar a verdade e realmente dar início à cicatrização, com verdade e transparência. A Argentina começou esse processo e está colocando no banco dos réus seus torturadores. O Chile também seguiu essa linha ao julgar o Pinochet, mesmo depois de tanto tempo e mesmo não conseguindo enquadrá-lo em todos os crimes que cometeu.

O QUE É PRECISO E POSSÍVEL ENTÃO FAZER?
Eu colocaria em segundo plano a necessidade de descobrir se o homem da foto é o Herzog ou não. Não porque isso seja desimportante, mas porque há uma questão anterior a essa. O importante é que existem fotos e documentos. Então vamos mostrar todas essas fotos e documentos. Vamos passar a limpo a história do Brasil. Vamos escancarar os arquivos. E se os militares ficarem bravos, que fiquem. Eles não mordem, não podem mais morder. Por que a gente precisa ter medo constantemente do que eles vão fazer? Eles não podem fazer nada contra a Constituição. E tem mais. Já tem a Lei de Anistia, que permite esse acesso ao que está registrado. Ninguém mais pode ser preso em função da ditadura, a Lei de Anistia diz isso. Então não pode acontecer nada se a gente mexer nesses materiais.

MAS ESSES ARQUIVOS EXISTEM MESMO?
Ah existem, com certeza! Acreditamos na Comissão de Justiça e Paz que boa parte deve ter sido destruída, mas ainda existem sim. Se não sob custódia da União, com personagens que viveram aquele tempo. Cada um deve ter lá, no fundo da casa, um bauzinho com seus guardados, recordações, documentos, fotos e versões para contar. E não estou falando só dos militantes de esquerda não. Acreditamos que apoiadores do regime, que hoje percebem os equívocos daquela fase, vão querer entregar seus arquivos pessoais também e participar dessa faxina. Os documentos vão chegar pingo a pingo. É hora do Brasil e das novas gerações terem acesso à história e à verdade sobre a tortura, a violação dos Direitos Humanos e o massacre que foi, por exemplo, o fim da Guerrilha do Araguaia. Não tem jeito, só a verdade nos liberta.

ATUALMENTE, NO GOVERNO FEDERAL, ESTÃO PESSOAS QUE LUTARAM ABERTAMENTE CONTRA A DITADURA. TEMOS MINISTROS QUE FORAM PERSEGUIDOS, EXILADOS, PRESOS, E ATÉ O PRESIDENTE VIVEU ESSA SITUAÇÃO NA PELE, AO COMANDAR ALGUMAS DAS MAIORES MANIFESTAÇÕES DE OPOSIÇÃO AO REGIME, QUE FORAM AS GREVES DE 1978, NO ABC PAULISTA. QUEM VOTOU NESSE GOVERNO ESPERAVA MAIS EM RELAÇÃO À ABERTURA DOS ARQUIVOS DA DITADURA E À REPARAÇÃO DE DANOS? E, DE FATO, O GOVERNO PODE FAZER MAIS?
Com certeza. Quem votou e quem apoiou a eleição do Lula esperava muito mais em uma série de áreas. Sem falar na área social e econômica, esperava-se que o governo desse início a uma campanha de busca não só pelos documentos, mas também pela verdade e pelos corpos do Araguaia. Esperava-se outra postura muito mais firme em relação à nossa história recente. A esperança é que o governo não esteja agindo com medo, mas sim com cautela. Porque uma coisa é o medo. Outra é a cautela. Se for cautela, tudo bem, porque no primeiro momento, vamos rever o caso Herzog e todos os outros que estão pela metade. Agora, o que não dá para admitir é o governo aceitar a nota emitida pelo Exército. É uma nota ignorante, violenta. Um assinte. Como pode, nos dias de hoje, um general dizer “fizemos sim, cumprimos um dever cívico e patriótico a pedido do povo”, com o maior autoritarismo. Isso é de uma gravidade monumental! Como pode um general que, 20 anos depois de terminada a ditadura, ainda fala nesse tom. É inconcebível e é inconcebível o governo se calar diante disso. Num primeiro momento, o Presidente Lula peitou a nota, mas aceitou a segunda mensagem do Exército, que não dizia coisa com coisa....

COMO O GOVERNO DEVERIA TER AGIDO, DR. MALHEIROS?
Tinha que ter colocado os responsáveis pela nota na parede. Quem falou uma bobagem dessa precisa ser punido. Não pode uma instituição como o Exército ser representada por alguém assim. E o presidente Lula precisa se posicionar. Se esse é o intuito dele, precisa avisar a nação que, com prudência e sem revanchismo, com calma, vai abrir sim os arquivos da ditadura.

COMO O SENHOR VÊ A ATUAÇÃO DOS VÁRIOS SETORES ENVOLVIDOS COM A MORTE DE HERZOG? A IMPRENSA, POR EXEMPLO, AGIU CORRETAMENTE?
Eu achei curioso que a “Folha de São Paulo” saiu com uma manchete falando sobre o intuito do Lula em abrir os arquivos e o “Estadão” saiu com o oposto. De qualquer maneira, acho que a mídia é parte integrante dessa história, afinal o Herzog era um jornalista conhecido, importante. Sempre tenho visto a imprensa dando o devido destaque ao caso. Agora, a imprensa tem um papel fundamental também para cobrar a atuação do governo e da sociedade. A mídia persecutória é um horror, mas crítica é o que há de melhor. Jornalistas que cobram, que criticam, que analisam e que aplaudem quando conveniente é o que de melhor se pode esperar. Penso no Clóvis Rossi, que embora esteja com a turma que está hoje no poder, não deixa de criticar, de analisar, de fazer perguntas! E é pela mídia também que circulam as pressões populares sobre o país que queremos construir. Vamos continuar pobres? Vamos continuar com uma educação e uma saúde pública ineficientes? Jornais e TVs devem ser a voz da população, sem anarquia, mas com pressão.

E SOBRE O COMPORTAMENTO DAS FORÇAS ARMADAS?
Ah! Mas é tão fácil garantir a ordem. Basta seguir a Constituição. O general pode discursar, pode manter o papel de general cumprindo a lei. A missão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica é importantíssima. Nossa torcida é para que as Forças Armadas exerçam sua autoridade, sem autoritarismo. E que as novas gerações de generais, comandantes, e etc... cheguem logo às esferas mais altas, para que os resquícios da ditadura sumam de uma vez. Quero ver as gerações novas lá no alto, exercendo seu papel ao lado da Constituição. A postura certa seria dizer algo assim: “Batemos, cometemos erros e excessos, mas nos perdoem, isso não vai acontecer de novo. Doravante, somos os protetores da Constituição”.

E POR QUE O EXÉRCITO AINDA SE IRRITA TANTO COM O CASO HERZOG?
É que esse foi um caso emblemático. Posso afirmar que a derrocada da ditadura começa aí, nesse caso. E, veja, o Herzog não foi preso. Ele foi lá, se apresentou e nunca mais saiu do DOI-CODI. Não só foi assassinado, como laudo que atesta a morte, um suposto suicídio, foi fraudulento. Totalmente fraudulento. A partir daí houve um movimento muito forte e bonito liderado por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel. O culto ecumênico que aconteceu na praça da Sé reuniu centenas de pessoas. Sobel impediu também que Herzog fosse enterrado como suicida, e a própria atuação da Comissão de Justiça e Paz, forçando o olhar do Brasil e do mundo para os Direitos do Homem, foram passos importantes naquele momento. Numa ação da Justiça, corajosa e importantíssima, um marco mesmo, os advogados Samuel Macdowel e Marco Antônio Rodrigues Barbosa e outros, conseguiram que a União pagasse a indenização à família Herzog, já que a morte havia acontecido nas dependências e sob custódia do Estado. Também o juiz que proferiu a sentença foi extremamente corajoso. Eram tempos muito difíceis, decisões como a dele eram um perigo. Aí, com tudo isso, tem início o desmantelamento do aparelho repressivo. É o começo do fim. E, para quem nunca engoliu largar o osso, nunca admitiu o fim da ditadura... fica difícil de aceitar, né?

FALANDO EM TEMPOS DIFÍCEIS, O SENHOR PODE FALAR UM POUCO SOBRE A ATUAÇÃO E A HISTÓRIA DA COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ?
A Comissão de Justiça e Paz foi a primeira comissão de Direitos Humanos do Brasil. Foi fundada por Dom Paulo Evaristo Arns, em 1972, e foi uma atitude preciosa para aquela época. Eram heróis os membros da Comissão. Todos tinham suas atividades profissionais, sua vida particular, seus afazeres, mas todos estavam ali dispostos a gastar uma parte de seu tempo em nome da defesa de seres humanos, da democracia, das liberdades. Estou falando de Fábio Konder Comparato, Dalmo Dallari – que foi o primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz – Margarida Genevois, José Carlos Dias, Mário Simas, Hélio Bicudo e muitos outros. Eram heróis porque colocavam diariamente seus pescoços a prêmio.

AÍ O PERÍODO DE CHUMBO FOI ACABANDO...
Bem, aí a repressão vai terminando, graças a Deus, mas as lutas da Comissão de Justiça e Paz continuaram, no combate às violências contra jornalistas, na educação para os Direitos Humanos e por aí vai. Além disso, atuamos no “Brasil Nunca Mais”, livro organizado por Dom Paulo, que é o documento mais importante contra a tortura no Brasil. Um marco na história. Fomos caminhando, fazendo vídeos, falando do passado.

É VERDADE QUE A COMISSÃO QUASE FECHOU?
É verdade. Os membros da Comissão foram tendo outros interesses, outros projetos e a CJP foi esmorecendo. Quase entregamos a chave. Mas Dom Cláudio Hummes não permitiu que isso acontecesse. Deu uma bronca geral em todos nós e resolvemos prosseguir com nossos ideais e lutas. Nossa forte atuação hoje é nos núcleos de cidadania que implantamos nas periferias.

E O SENHOR ACABA DE SER ELEITO PRESIDENTE DA COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ, MAS TAMBÉM JÁ TEM UMA LONGA TRAJETÓRIA LIGADA AOS DIREITOS HUMANOS, NÃO É?
Atuo na área de Direitos Humanos desde os anos 70, seja no poder judiciário, seja no terceiro setor. Fui eleito há um mês presidente da CPJ, mas além disso, já fui presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil/São Paulo, além de ser membro dos Juízes para a Democracia.

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