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O livro que carrega uma pessoa

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, mas, dezoito anos antes, desde a publicação do livro Levantado do Chão, em 1980, o escritor português José Saramago já despontava como um dos grandes nomes da literatura contemporânea. As explicações para o autor de cerca de 30 obras (entre diários, romances, contos, teatro, poesia e até literatura infantil) ocupar um lugar especial na lista dos mais admirados escritores do planeta, apesar de escrever em Língua Portuguesa, não são poucas, e vão desde sua gramática nada convencional até a insistência em algumas temáticas extremamente atuais. Desvendar a magia de Saramago certamente não é tarefa das mais fáceis – mas o desafio pode ser bastante prazeroso.

“Ele é um escritor em vários graus, suas obras têm vários graus”, explica a professora de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) e do Mackenzie, Marlise Vaz Bridi, referindo-se às dificuldades de entrar no mundo Saramaguiano. A primeira barreira é a linguagem. Saramago encontrou uma maneira própria de escrever, sem respeitar muito a norma culta. A pontuação é completamente diferente das regras ortodoxas. Os parágrafos são longos, e as letras maiúsculas, por exemplo, servem para alertar e avisar que aquela frase que se inicia parte da boca de algum personagem, e não do narrador, embora as linhas não se diferenciem. Contudo, os especialistas discordam que a gramática diferente seja um empecilho para ler as obras do autor português. “É fácil sim. É apenas aparentemente difícil entender”, afirma Marlise. Segundo a professora, basta o leitor insistir que, depois da primeira ou segunda página, acostuma-se ao estilo e passa a compreender perfeitamente e sem dificuldade alguma o que a história conta.

A também professora de literatura da USP, Rosemary Conceição dos Santos, coAncorda: “As falas se misturam com digressões. Mas, ao ler Saramago em voz alta, descobrimos que tudo se encaixa, os diálogos se conectam, as personagens se revelam”. “Nesse ponto, o que saltará aos olhos é uma história muitíssimo bem contada”, completa Marlise.

Poesia por trás da prosa
Enfrentar a gramática saramaguiana é, na verdade, descobrir um mundo de poesia por trás da prosa. Rosemary, que acaba de lançar um livro sobre as obras do autor português, admite que sim – o modo como ele escreve num primeiro momento nos atordoa. Mas, ela continua, também de imediato essa estratégia narrativa permite entender o poético que elas ocultam. “Aí, no meio das frases longas, descobrimos ditos populares, reflexões de um narrador que tem ‘experiência de vida’, um texto recheado de metáforas”.

E assim, o que o leitor de Saramago sente, num primeiro momento, como obstáculo, torna-se a chave para desvendar o que há de melhor em livros como Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis. E o que há de tão fascinante? “Imediatamente, o que o leitor comum percebe é que Saramago conta uma história. Conta muito bem uma boa história”, explica Marlise, referindo-se ao fato de que outros grandes escritores contemporâneos às vezes, segundo ela, deixam de fazê-lo. Portanto, a literatura de Saramago dá prazer e, percebendo isso, o leitor segue em frente e descobre outra característica saramaguiana. “Ele é um escritor engajado em discutir o que pensava (ou poderia pensar) o homem de outro século, assim como o homem deste século. Trata-se de um autor atuante no pensamento ocidental contemporâneo”, conta Rosemary. Em outras palavras, a temática contemporânea está presente em todas as suas obras. Mesmo quando ele fala do passado, como em Memorial do Convento, o faz com os olhos do presente. “Seu olhar é contemporâneo, passado e presente andam juntos”, reforça Marlise.

Temáticas interessantes
Além da contemporaneidade, há duas outras temáticas interessantes ao leitor. À medida que vai se debruçando nas frases longas e caudalosas do escritor, pode-se viajar para Portugal, atual ou antigo, e viver um pouco seus problemas, suas belezas, sua História, seu futuro. Jangada de Pedra, para não citar outros, oferece essa experiência. E de Portugal para o mundo. Também os temas que pertencem a todo o planeta figuram nos livros de Saramago. “O Evangelho segundo Jesus Cristo trata de uma história conhecida há mais de dois mil anos, de domínio público mesmo, mas existe uma maneira de contar isso, nas palavras de Saramago, que impedem o leitor de fechar o livro”, diz, encantada, Marlise. Não foi à toa que O Evangelho causou polêmica na época de seu lançamento. O mundo recebeu com estranheza que viesse de Portugal, um país conhecido por sua arraigada religiosidade católica, uma obra no mínimo pouco habitual sobre a vida de Jesus Cristo. Só não se espantou quem já conhecia a obra de Saramago. “Todo cidadão tem sua postura crítica e ideológica. Uma vez escritor, essa postura fica mais evidente, em virtude de suas predileções temáticas e posicionamento dos narradores e personagens nas ficções que constrói. Lendo suas obras, é possível entender que Saramago questiona e discute temas que são aceitos como verdades universais”, argumenta Rosemary.

Por fim, as duas professoras destacam o grande valor de uma característica recorrente nos romances do Nobel de Literatura: a alegoria. “A técnica da escrita alegórica consiste em sugerir vocabulários e situações que gerem mistérios. O uso de provérbios bíblicos, por exemplo, cria no texto um clima de vamos decifrar o que é isto?”, ensina Rosemary. E aí volta à tona a questão dos vários graus de entendimento. Em Ensaio sobre a Cegueira, Saramago escreve sobre uma cidade em que os habitantes sofrem de uma estranha cegueira branca. “Essa cidade poderia ser Lisboa, ou qualquer outra do mundo”, conta Marlise. Caberá ao repertório de cada leitor fazer os paralelos. A alegoria ainda permite uma certa crítica social, eAlemento sempre presente na obra saramaguiana. Por isso também ficará decepcionado com Saramago o leitor que pretenda encontrar, por exemplo, personagens que não questionem seu mundo. Nas obras do autor português, a personagem sempre tem uma contribuição a dar para quem gosta de refletir sobre si e sobre a humanidade. É como se existisse alguém dentro de cada livro com quem gostamos de dialogar. Como dizem as professoras Rosemary e Marlise, há um outro sujeito dentro da obra de Saramago. Ele é, em parte, obra do autor e, em parte, sua soma com o leitor. Por isso, é preciso tomar cuidado com os livros, porque, nas palavras do próprio Saramago, eles “carregam consigo uma pessoa”. E a única forma de desvendar essa pessoa e seus mistérios “é ler os livros de Saramago, seja de que gênero for”, conclui a professora Rosemary.

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