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Reeleito, presidente norte-americano assume prometendo “combater a tirania”. O planeta, preocupado, deve se preparar para mais 4 anos de intolerância

Por Francisco Bicudo e Elisa Marconi

O chamado “eixo do mal” – países que os Estados Unidos relacionam como não democráticos e/ou apoiadores do terrorismo internacional – recebeu uma nova denominação, mais moderna, e passou a ser classificado de “vanguarda da tirania”. Mas a disposição do presidente George W. Bush de atuar como polícia do mundo para derrotar aqueles que considera os grandes inimigos da pátria norte-americana não apenas não recuou um só milímetro como conquistou ainda mais respaldo e apoio da sociedade. Foi ela quem decidiu, na última disputa eleitoral, e desta feita de maneira incontestável, reconduzir Bush ao poder, legitimando o uso da força, uma política externa que nega as alianças e organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), e respaldando uma realidade interna cada vez mais conservadora e policialesca. “Sim, os próximos anos ainda serão de instabilidade e de muito tumulto”, admite, em entrevista ao SINPRO-SP, o professor Robson Barbosa, pesquisador do Núcleo de Políticas e Estratégias (NAIPPE) da Universidade de São Paulo (USP). Afinal, o recado que as urnas parecem ter traduzido é o seguinte: “custe o que custar, Mr. Bush, continue seu projeto de domínio do mundo. Estamos com você, incondicionalmente”.

Reeleito em novembro do ano passado, e atento aos movimentos pragmáticos e ansiedades ideológicas da sociedade que representa, Bush assumiu seu segundo mandato, em cerimônia realizada no último dia 20 de janeiro, prometendo apoiar todos os “povos que decidirem ignorar a opressão e se erguer pela liberdade”. Em seu discurso de posse, afirmou que “a sobrevivência da liberdade em nossa terra depende cada vez mais do sucesso da liberdade em outras terras”. Tradução: em sua cruzada contra os “inimigos da democracia”, os Estados Unidos não medirão esforços nem respeitarão limites para atuar da maneira que melhor lhes convier. Também não hesitarão em mobilizar instrumentos e estratégias militares sempre que julgarem que seus interesses “correm algum risco”. As palavras têm endereço certo: os movimentos e valores conservadores, para não dizer reacionários, que ocupam espaços cada vez mais significativos na sociedade norte-americana, e que foram os responsáveis diretos pela reeleição de Bush.

Grupos conservadores
“Os principais grupos conservadores sustentaram a vitória do presidente”, define o jornalista Fernando Canzian, em artigo publicado pela Folha de S.Paulo de 04 de novembro do ano passado, logo após a conclusão da apuração dos votos. “Grupos religiosos radicais, homens, pessoas brancas e residentes em áreas rurais conservadoras formaram a base do eleitorado de Bush”, completa o articulista. São esses grupos que acreditam em uma espécie de missão da pátria americana – levar a visão de democracia contemplada pelos EUA a todos os povos considerados incultos bárbaros e infiéis. Trata-se de uma reprodução da idéia de “povo escolhido”.

São também esses segmentos sociais, sob forte influência de valores religiosos fundamentalistas e fanáticos, muitas vezes obscurantistas e intolerantes, que se colocam radicalmente contra o casamento entre homossexuais, o aborto, as pesquisas com células-tronco e defendem abertamente o uso de armas de fogo e as teses criacionistas, que rechaçam a ciência evolutiva de Charles Darwin e entendem deus como o centro da vida. “Os neoconservadores são intelectuais internacionalistas que reinterpretam a herança missionária da política externa americana num sentido unilateraista e imperial. (...) A direita cristã, instintivamente isolacionista, é a guardiã fanática dos valores morais tradicionais”, analisa Demetrio Magnoli, especialista em Relações Internacionais, na Folha de S.Paulo de 04 de novembro. “Essa religiosidade, que remonta à chegada dos puritanos ao Novo Mundo, associada ao senso de destino, individualismo e populismo exacerbados, é a raiz do chamado ‘excepcionalismo americano’”, completa o jornalista Gianni Carta, citando o livro The Right Nation: Why América is Different, em matéria publicada pela revista Carta Capital de 10 de novembro. A guinada em direção à direita radical, com forte componente de intransigência religiosa, assusta – e é um movimento que precisa urgentemente ser melhor estudado e compreendido.

Situação diferente de 2000
A situação que se anuncia neste segundo mandato de George W. Bush é portanto bastante diferente do que ocorreu há quatro anos. Em 2000, disputando com o então vice-presidente, o democrata Al Gore, Bush perdeu nas urnas por uma diferença de mais de 500 mil votos, e venceu no colégio eleitoral por apenas um voto, depois de uma confusa, polêmica e suspeita recontagem de votos feita na Flórida, e chancelada pela conservadora Suprema Corte do país. Enfraquecido e desacreditado, Bush atravessou os primeiros meses de mandato quase no ostracismo, e ficou mais conhecido por suas gafes, ações folclóricas e vazias de conteúdo político, além de pouco indicadas para o presidente da principal potência do planeta. Nesse sentido, os atentados de 11 de setembro de 2001 caíram-lhe como uma luva, pois permitiram que assumisse a ofensiva do processo internacional, dando a ele norte definido, e transformando em projeto concreto, pragmático e abertamente agressivo um sentimento até então difuso e desorganizado, e que passou a ser sustentado pelo discurso de defesa incondicional da segurança interna e do combate irrestrito ao terrorismo.

Com base nessa estratégia, Bush conseguiu articular em torno de suas pretensões os setores mais conservadores da sociedade, que, em 2004, lhe concederam uma vitória inquestionável contra o senador democrata John Kerry. Bush obteve 34 votos de vantagem no colégio eleitoral; na disputa popular, a diferença chegou a quatro milhões de votos. Os republicanos conquistaram onze governos de estado, e ampliaram as maiorias de que já dispunham, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados. Conseguiram ainda proibir o casamento entre homossexuais, nos onze estados que realizaram plebiscito sobre o tema. “A força do presidente é hoje muito maior. Ele teve sua política chancelada pela sociedade. Foi uma vitória inquestionável”, afirma o professor Barbosa. O articulista Fernando Canzian, no mesmo artigo já citado e publicado pela Folha, reforça essa análise. “O resultado das urnas respaldou tanto a guinada conservadora e religiosa que orienta o país quanto a política internacional conduzida de forma unilateral”.

A “Doutrina Bush”
Apesar de John Kerry ter conquistado 48% dos votos populares – o que revela também uma nação profundamente dividida, situação que ainda carece de análises mais aprofundadas –, fato é que o presidente reeleito dos EUA parece agora encontrar caminho aberto para levar adiante os princípios de sua “Doutrina Bush”. É ela que garante que os EUA ocupam uma posição planetária central, definindo seus interesses como prioritários e reforçando a idéia de que o país tem o legítimo direito de ditar os rumos das ações internacionais. “Com Clinton, havia, a priore, o reconhecimento de um sistema internacional multilateral, que deveria ser ouvido e respeitado. Bush inverte essa lógica, e passa a definir as alianças a partir das ações que os EUA pretendem desenvolver. Os interesses norte-americanos, portanto, são colocados em primeiríssimo plano”, explica Barbosa.

Uma terceira característica da doutrina diz respeito ao uso da força, que legitima e justifica, por exemplo, as invasões do Afeganistão e do Iraque, e que pode inclusive ser utilizada de maneira “preventiva”, sem a necessidade de um ataque concreto a alvos americanos. Bastaria a suspeita de uma possível ação para que os EUA tivessem o direito de agir. A “guerra contra o terror” (que, depois da queda do comunismo, passa a ser o novo inimigo da pátria americana, sem que se defina muito bem do que estamos falando) e a perspectiva de que os EUA não permitirão que nenhuma outra nação se iguale a ele em termos de poder internacional são outros princípios da ideologia desenvolvida e difundida pelos chamados “falcões” – os assessores mais próximos do presidente Bush. A doutrina abriga ainda a visão maniqueísta do “bem contra o mal” – e, se você está do lado de lá, é meu inimigo. Por fim, devem ser incluídos nessa lista os valores religiosos conservadores, incluindo aí os católicos, protestantes e até mesmo a comunidade judaica, que, apesar das divergências históricas e seculares, se reúnem numa espécie de aliança tática contra os “infiéis”. Juntos, propagam a visão de que “deus está com os EUA, e que esse deus é melhor do que o dos outros”.

“Estamos assistindo à consolidação de um novo império global, que inclusive já se auto-intitula o ‘império da liberdade’”, define o pesquisador da USP. Ele lembra, no entanto, que essa visão não é consensual, e há divergências entre os especialistas que estudam o assunto. Para uma corrente de pensadores, estaríamos acompanhando a crise, a decadência e os últimos suspiros desse império. Para a outra vertente, os EUA estão apenas se fortalecendo e atravessarão o século XXI como verdadeiro império global. “Qual das duas está correta? É uma das respostas atuais mais difíceis”, admite Barbosa. Sutil e cuidadosamente, no entanto, ele concorda com a segunda perspectiva, principalmente por não vislumbrar um pólo de poder internacional realmente capaz de competir e de representar contrapeso aos interesses norte-americanos. Para Barbosa, a União Européia enfrenta sérios problemas em sua estrutura produtiva. Já na China, outro potencial rival, questões como a desigualdade social, direitos humanos, fome e uma economia deficitária, fortemente sustentada e financiada pelo Estado, representam o calcanhar de Aquiles do dragão. “Os EUA parecem ser o grande jogador deste século”, reforça.

Guerras e intolerância
As conseqüências são claras e imediatas: o mundo deve se preparar para mais quatro anos de guerras e de intolerância. Segundo o especialista do NAIPP, a única saída para tentar evitar a expansão desse poder imperial seria o fortalecimento das alianças, do multilateralismo e dos organismos internacionais, como a ONU. A julgar pelos recentes acontecimentos e declarações, essa não parece ser a disposição dos EUA de George W. Bush. No plano internacional, ataques a outros alvos, como o Irã e a Síria, já começam a ser preparados e justificados, o que afastaria ainda mais os EUA de antigos aliados como a França e a Alemanha, gerando mais instabilidade no sistema internacional, já que tais iniciativas não contariam também com a simpatia da Rússia e da China. No Iraque, avalia Barbosa, é possível que as tropas norte-americanas tenham de permanecer por pelo menos mais quatro anos, tempo considerado pelo pesquisador como necessário para que o Congresso recém-eleito pudesse mostrar à sociedade que as diversas etnias e grupos religiosos teriam voz ativa na definição das políticas de Estado, além de permitir a reconstrução das cidades e da infra-estrutura e a reorganização das instituições. Problema imediato: a população, no entanto, rejeita essa situação, e considera a ocupação norte-americana inaceitável. A resistência armada pode não ser contida, e a guerra civil é um dos cenários considerados pelos especialistas.

Dentro dos Estados Unidos, estamos assistindo à expansão de políticas explícitas de cerceamento das liberdades individuais e o recrudescimento de uma sociedade marcada pelo medo e pelo pânico, que não apenas aceita como justifica as perseguições, prisões, invasões de propriedade e de privacidade, vigilância 24 horas por dia, delações e até mesmo a tortura como os únicos argumentos e práticas que seriam capazes de garantir a segurança de seus cidadãos. “Quem é contra essa política não encontra espaço para o debate, é imediatamente desqualificado e tratado como um pária, acusado de se colocar contra a pátria”, lamenta Barbosa.

O cenário que se anuncia preocupa e provoca profunda agonia. Afinal, como analisa Quentin Peel em artigo publicado originalmente pelo Financial Times e reproduzido pela Folha de S. Paulo, sempre em 4 de novembro de 2004, “existe uma opinião que começa a ganhar credibilidade em meio à comunidade internacional, cada vez menos esperançosa: a de que só depois de mais quatro anos de vacilações e de erros cometidos por um governo ideologicamente motivado, número suficiente de pessoas compreenderá que nem mesmo a única superpotência que resta no mundo pode se manter permanentemente surda a seus aliados. Só então a lição será aprendida”.

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