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Eutanásia: temos o direito de desligar os aparelhos?

A decisão da justiça norte-americana, que autorizou o desligamento dos aparelhos que mantinham viva a vendedora de seguros Terry Schiavo, morta no dia 31 de março, trouxe novamente à tona o polêmico debate sobre a eutanásia.

Em 1990, a jovem Terri, então com 26 anos, sofreu uma parada cardíaca, provavelmente provocada por deficiência de alimentação e baixo nível de potássio no organismo. A prolongada falta de oxigenação no cérebro gerou um quadro médico considerado irreversível. Desde então, ela era mantida viva, em estado vegetativo e inconsciente, graças aos tubos de alimentação e hidratação.

No último dia 19 de março, o marido de Terri, Michael Schiavo, conseguiu na justiça a permissão para o desligamento dos aparelhos, alegando que era essa a vontade da esposa, que sempre havia rejeitado a idéia de viver sem suas funções cognitivas. Os pais de Terry tentaram, por diversas vezes e em diferentes instâncias, reverter a decisão judicial, garantindo que a filha ainda era capaz de reagir a estímulos, e a morte cerebral não estaria, portanto, caracterizada.

A complexa pergunta que se coloca é: será que, em situações como a de Terri, quando o diagnóstico médico é definitivo e já não mais existe possibilidade de reversão, a eutanásia é uma prática aceitável? Ou deve ser sempre rejeitada?

Para participar do debate e chamar a categoria à reflexão, o SINPRO-SP reproduz dois artigos que tratam do assunto. O primeiro, escrito por Nise Hitomi Yamaguchi, presidente da Sociedade Paulista de Oncologia Clínica, defende a ortotanásia (que ela chama de boa morte), destacando que “independentemente da diversidade de visões sobre a existência e também das novas e eficientes técnicas de tratamento, há instantes em que se perde a batalha contra as doenças”. No segundo texto, Francesco Scavolini, especialista em Direito Canônico, condena a prática e afirma que “a ação ou a omissão com que se entrega à morte um ser humano inocente com o objetivo de eliminar o sofrimento é sempre gravemente imoral e condenável”. Os dois textos foram originalmente publicados pelo jornal “Folha de S. Paulo”, na seção Tendências e Debates do último dia 26 de março.

Ortotanásia

Nise Yamaguchi*

O que é a vida, afinal? É meramente um conjunto de reações bioquímicas até o momento não replicáveis simultaneamente? Ou algo com uma abrangência maior, sagrada e eterna? Advém das incertezas que cercam o sentido da existência humana a nossa perplexidade diante desse tema tão polêmico que é a eutanásia.
Sou oncologista e imunologista. Faz 28 anos que busco mais vida com qualidade para os pacientes com câncer e portadores de Aids com câncer. Crendo em novas estratégias terapêuticas, fiz imunologia de tumores quando não se acreditava que medicação inteligente, vacinas e anticorpos monoclonais funcionariam, e a genética aplicada ainda era insipiente. A cura e o bem-estar do próximo são minha obsessão: faço pesquisa clínica em câncer com novas moléculas até hoje no Instituto do Câncer Dr. Arnaldo e no Hospital das Clínicas.

Os pacientes que já na primeira consulta me dizem que querem morrer antes de tentar os tratamentos são exceções. Mas existem. Um elemento comum a eles é a falta de esperança, depressão e medo do sofrimento. Sempre os ouço, sinto a sua dor e converso sobre o quanto as estatísticas não levam em consideração a força do indivíduo. Caminhamos juntos no tratamento. Na prática diária de medicina, fica claro que a atitude do paciente depende de crenças ou posturas filosóficas. Depende se acredita que a vida continua após a morte ou que as atitudes tomadas aqui têm ou não conseqüências futuras, por exemplo.

Independentemente da diversidade de visões sobre a existência e também das novas e eficientes técnicas de tratamento, há instantes em que se perde a batalha contra as doenças. É então que uma pergunta se faz necessária: até quando é lícito prolongar com medidas artificiais a manutenção da vida vegetativa? Com o advento do transplante de órgãos, veio a necessidade de definir o momento do óbito como sendo o da morte cerebral, pois nessa hora seria lícito e viável a doação de órgãos, que precisariam ainda estar vivos, independentemente do cérebro. Contudo, na situação pungente da americana Terri Schiavo, esse é um critério não preenchido: ela interage com o mundo, sorri docemente, respira espontaneamente e não sabemos o que pensa e se pensa.

Existe grande confusão entre os diversos tipos de eutanásia -ou boa morte. Uma é a eutanásia ativa, na qual o médico ou alguém causa ativamente a morte do indivíduo e que é proibida por lei no Brasil. Anda de mãos dadas com o chamado suicídio assistido, mas é prática regulamentada em alguns outros países, como Holanda e Dinamarca.

Em um outro extremo há a distanásia ou obstinação terapêutica, que, segundo o especialista em bioética padre Leo Pessini, "é uma ação, intervenção ou um procedimento médico que não atinge o objetivo de beneficiar a pessoa em fase terminal e que prolonga inútil e sofridamente o processo de morrer, procurando distanciar a morte". Sou contra a distanásia -aqui vale um debate ético, afinal, a distanásia é diferente daquela situação em que um paciente com câncer ou Aids controlados, por exemplo, tem uma infecção e vai para a UTI ou para uma intervenção cirúrgica, e tais procedimentos podem até melhorar sua qualidade de vida e aumentar o tempo de existência.

E como seria a verdadeira boa morte? Creio que é aquela denominada morte assistida e que, para não trazer o cunho negativo da terminologia eutanásia passiva, prefiro denominar de ortotanásia. É cuidar dos sintomas sem recorrer a medidas intervencionistas de suporte em quadros irreversíveis. É respeitar o descanso merecido do corpo, o momento da limpeza da caixa preta de mágoas e rancores; é a hora de dizer coisas boas, os agradecimentos que não fizemos antes. É a hora da despedida e da partida.

Quem já compartilhou essa situação com dignidade, com diminuição da dor, com paliação dos sintomas desconfortantes sabe o quão especial pode ser. Nesses momentos, a vida bem vivida valeu a pena, a missão cumprida, as inter-relações que criamos se mostram essenciais, a grande interdependência dos seres vivos fica mais evidente. Então, talvez possamos acreditar no escritor Jorge Luis Borges: "Morrer é como uma curva na estrada, é não ser visto".

Costumo dizer a meus pacientes e familiares que, para o amor, não existe tempo nem espaço. Vivendo bem o momento presente, diminuindo as buscas desnecessárias por poder, posses e prestígio, podemos alavancar o melhor de nós mesmos, inclusive superando as doenças que já temos. Com bom cuidado, mais exercícios, dieta saudável, não fumando e não bebendo, com mais amizade e solidariedade talvez possamos ficar menos doentes e a nossa morte vir na hora certa. Portanto me parece razoável que sejam dadas as condições legais para buscarmos o equilíbrio, não tentando retardar ou adiantar algo que é inerente à vida.

*Nise Hitomi Yamaguchi, 45, doutora pela Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Sociedade Paulista de Oncologia Clínica e diretora do Instituto Avanços em Medicina.

A lição de Terri

Francesco Scavolini*

Nestes últimos dias, o caso de Terri Schiavo, a americana que há 15 anos vive em estado vegetativo permanente, despertou o interesse da opinião pública mundial e trouxe de volta o debate sobre a eutanásia. Pessoalmente, estou profundamente convicto de que a dignidade de todo e qualquer ser humano seja o fundamento da verdadeira civilização e deva permanecer sempre intangível, por si só, independentemente do seu "nível" ou "padrão" cultural ou de sua "atividade" psicofísica.

De fato, o ser humano é uma unidade de espírito, alma e corpo que o torna incomparavelmente superior aos seres simplesmente vegetais ou animais; ele possui em si mesmo não somente a "fonte", o fim e a forma de sua atividade, mas também a unidade das funções do organismo pela qual as várias partes são unificadas, num mesmo ato existencial. Na verdade, o ser humano se caracteriza pela sua própria capacidade congênita e estrutural de expressão nas atividades espirituais e superiores. No indivíduo homem, a atividade "vegetativa" (capacidade de nutrição, crescimento, autopreservação), a atividade sensorial e a atividade espiritual têm uma única origem e um único ato existencial. Em outras palavras, não há, no indivíduo humano, três "almas" (princípios vitais): uma vegetativa, uma sensorial e uma espiritual; mas a "alma" espiritual, que vivifica o organismo todo e o unifica, pois ela é a fonte da própria existência do ser humano.

A própria vida física e sensorial do ser humano é totalmente preenchida pelo ato unificador da alma espiritual, como afirma São Tomás de Aquino: "Anima hominis una est substantia in vegetabili et sensibili et rationali" (A alma do homem consiste em uma única essência, que se revela na forma vegetativa, naquela sensorial e naquela racional).

Esta convicção da antropologia de São Tomás nos permite enfocar corretamente a questão do valor e da dignidade da vida humana, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento (por exemplo, o embrião) ou o grau de sua "perfeição" (por exemplo, deficiências, doenças etc.), pois, da fecundação ao momento em que num indivíduo humano se verifica uma atividade autônoma e coordenada, orgânica e unificada, existe também um "eu", uma fonte vivificante que anima a corporalidade. O corpo não tem uma existência própria; tem, sim, uma existência comunicada pelo ato existencial do espírito que o unifica e o vivifica.
Essas considerações, embora necessariamente sintéticas, permitem afirmar que uma visão funcionalista e neurológica acerca do ser humano pressupõe e acarreta definitivamente a negação do espírito e revela uma visão materialista do homem. A história moderna e a contemporânea nos mostram as terríveis tragédias que atingiram a humanidade toda vez que algumas filosofias ou ideologias materialistas -com o apoio até de Parlamentos democráticos- erigiram-se a donas absolutas do conceito de humanidade e de seu destino, vide o nazismo.

Sim, como católico e como cidadão, acredito que a eutanásia, isto é, a ação ou a omissão com que se entrega à morte um ser humano inocente com o objetivo de eliminar o sofrimento, é sempre gravemente imoral e condenável. Esta opção contra a vida nasce, às vezes, de situações difíceis, ou mesmo dramáticas, de profundo sofrimento, de solidão, de depressão e de angústia pelo futuro. Portanto essas circunstâncias podem atenuar, até mesmo notavelmente, a responsabilidade subjetiva e, conseqüentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tal opção em si mesma criminosa. Contudo o sacrossanto direito a uma morte digna não pode significar o direito de dispor total e absolutamente da vida humana, até porque esse arbítrio contribuiria para difundir na sociedade uma "cultura de morte".
Na medicina atual, têm adquirido particular importância os denominados "cuidados paliativos", destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao paciente um adequado acompanhamento humano. Em algumas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência "renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes" (Vaticano, Declaração sobre a eutanásia "Iura et bona", 5/5/1980). A vida humana é tão preciosa que "todo cuidado é pouco".
Tenho certeza de que muitos no Brasil e no mundo inteiro estão torcendo e rezando para que Terri Schiavo volte a ser alimentada e possa continuar a viver. O exemplo de dedicação à vida que senadores e deputados dos EUA têm dado no caso Terri Schiavo, reunindo-se num domingo para votar uma lei que a salvasse, deveria fazer com que todos nós (especialmente os políticos) meditássemos mais sobre a dignidade sagrada da vida humana, dignidade que infelizmente tem sido objeto de ataques vergonhosos, inclusive com a recente aprovação de uma lei que permitirá a destruição de embriões humanos congelados e com a norma técnica do Ministério da Saúde que facilitará o aborto.

Francesco Scavolini, 49, professor de língua e cultura italiana, é doutor em jurisprudência pela Universidade de Urbino, Itália, e especialista em direito canônico.

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