Por Francisco Bicudo
Ela nasceu em dezembro de 1973, como Fundação Paulista de Promoção Social do Menor. Três anos mais tarde, em abril de 1976, passaria a se chamar Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – Febem. Com mais de 60 complexos espalhados pelo estado de São Paulo, a instituição transformou-se em sinônimo de incapacidade para lidar com a recuperação e a ressocialização de menores infratores. Conhecida internacionalmente pela prática de torturas, pelas rebeliões, por espancamentos e unidades superlotadas, em detrimento dos projetos pedagógicos e educacionais, é muitas vezes comparada a uma escola do crime – e até mesmo com os campos de concentração nazistas. “A Febem não funciona, precisa ser extinta”, defende a psicanalista Maria de Lourdes Trassi Teixeira, supervisora da Área de Criança e Adolescente da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). “Deve ser urgentemente substituída por uma proposta que esteja em consonância com os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, que acredite no resgate e no futuro dos adolescentes”, completa a especialista, que é também conselheira da Fundação Abrinq e do Instituto São Paulo contra a Violência.
Em entrevista exclusiva ao site do SINPRO-SP, ela analisa a história da instituição e seus princípios fundadores e diz que parcela da sociedade quer mesmo tratar o problema a partir de um viés repressivo e autoritário. “Mas há também setores significativos que fazem uma leitura muito mais complexa da situação”, argumenta. Para ela, somos todos responsáveis pela produção de crianças e adolescentes cada vez mais furiosos e violentos. “Enquanto eles estão trancafiados, ficamos sossegados. O pânico só aparece quando eles resolvem subir no telhado”.
Professora, o fato de a Febem – e está no próprio nome – ainda tratar da questão do “menor” não aponta para um primeiro grande conflito e contradição em relação ao que defende o Estatuto da Criança e do Adolescente?
A história da Febem começa em 1976. Ela nasce ligada à Funabem, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, uma criação do governo Castello Branco e um dos primeiros atos da ditadura militar. Vivíamos ainda sob a referência do primeiro código de menores, que é de 1927, e que depois foi atualizado em 1979. O ECA nasce em 1990. Sim, a partir dele, se evidencia um descompasso entre a nova ordem jurídica, a nova mentalidade e a história do menor, que em geral é encarado como a criança pobre. O Estatuto refere-se a crianças e adolescentes, é muito mais amplo, universal, vale para todas, e trata a questão a partir de direitos e deveres. Então, há de fato um descompasso, que acaba sendo revelador de uma instituição que ficou parada no tempo e não conseguiu se adequar e se atualizar.
Vale lembrar ainda – e também está no nome – que a preocupação da instituição deveria ser com o bem-estar...
Perfeito. O que significaria garantir vida digna, bons educadores, modelos para a recuperação da cidadania e da identidade. Infelizmente, e não há qualquer alegria ou satisfação nessa afirmação, essa instituição demonstra atualmente, com muito mais visibilidade e intensidade, o mal-estar que existe nela desde tempos muito remotos. Esse mal-estar passa pelos adolescentes, pelos trabalhadores... Nesse momento, podemos inclusive dizer que ele cede espaço para uma sensação de perplexidade, de desconforto. Quando aqueles meninos sobem no telhado, se agridem, agridem trabalhadores, acabam revelando uma história deles, da qual a instituição faz parte. Eles acabam devolvendo hostilidade, agressividade, fúria, pois é justamente dessa maneira que eles vêm sendo tratados.
O padre Julio Lancellotti compara as unidades da Febem a campos de concentração nazistas.
Um psicanalista amigo meu, o David Levinski, diz sempre que, antes daquela enorme rebelião que aconteceu em 1999 no complexo Imigrantes, havia visitado o campo de concentração de Treblinka. Depois, quando esteve na Imigrantes para uma visita, foi inevitável não estabelecer a comparação com o campo. E ele dizia também que não era difícil entender a explosão da rebelião. Pode ser uma imagem forte, mas é reveladora e fiel à forma como aqueles meninos são tratados e como eles vão sendo destruídos, como vão anulando suas identidades. E o que de fato nós estamos propondo como alternativa de vida para esses jovens? O historiador inglês Eric Hobsbawm diz que “os homens do século XX aprenderam a viver em condições intoleráveis e brutais”. Acho que a omissão é de todos nós, dos poderes públicos, da sociedade. Nós deixamos aqueles garotos trancados naqueles complexos e, enquanto o barulho deles não vem à tona, poucos são os que se importam. O pânico só aparece quando eles sobem no telhado. Para mim, esse silêncio militante é muito mais perigoso.
Esse modelo de Febem, truculento e autoritário, é o desejado pela maior parte da sociedade? É um reflexo dos nossos medos, do nosso descaso, do nosso individualismo?
Grande parcela da sociedade quer esses meninos na Febem. Enquanto estão lá, ficamos sossegados. Esse setor talvez seja mesmo majoritário. Tem medo da violência, da insegurança, dos índices de criminalidade. Mas tem também uma manipulação midiática na formação dessa opinião pública. Existe uma dramatização da criminalidade. Por outro lado, não adianta negar. A violência tem se transformado em um fenômeno cada vez mais grave e preocupante. O problema é que a única forma de resolver essa situação que é apontada e percebida diz respeito à segurança. Claro que é um aspecto relevante. Mas tem um setor da sociedade que é levada apenas a pensar nas ações policiais e repressivas como as mais eficientes. Por outro lado, vale lembrar que há outros segmentos da sociedade que vão estabelecer o contraponto e tentar localizar as razões mais profundas dessa situação. São setores que fazem uma leitura mais complexa e apurada do cenário e que estão encarando o desafio de buscar outras formas de lidar com a questão do jovem infrator. Elas pensam em creches para os bebês, em escolas de qualidade e em professores bem formados e bem pagos para as crianças, em oportunidades efetivas para os jovens, em medidas sócio-educativas e em regime aberto para os casos possíveis, evitando assim o trancamento, o internamento. Com base nesses princípios, vistos em conjunto, ganharemos os adolescentes para uma vida criativa. Portanto, na mesma sociedade, coexistem essas duas mentalidades.
Em recente entrevista à “Folha de S. Paulo”, a senhora defendeu a extinção da Febem.
Não basta substituir o modelo. Já foram tentados e testados diversos modelos pedagógicos, educacionais, arquitetônicos. Quando a gente analisa a história da instituição, percebe que ela carrega um peso, uma mentalidade que está entranhada, que é a da ordem, a da repressão. Para superar esses vícios de nascença, não basta um outro modelo. É preciso viabilizar uma nova instituição. Claro que isso não se faz de uma hora para outra. Precisaríamos de um plano estratégico de transição.
E como funcionaria na prática essa nova instituição? Quais seriam seus princípios filosóficos fundadores?
Seria muito presunçoso estabelecer aqui um outro modelo acabado, definido. É preciso construí-lo coletivamente. Mas eu penso que uma referência interessante é a gente começar a perceber o que está sendo feito de diferente e de interessante nessa área, em outros estados do Brasil e em outros países. É preciso identificar e estudar iniciativas criativas, ousadas, que estejam de acordo com os princípios do ECA, que acreditem no futuro dos adolescentes. Que acreditem principalmente que o futuro se constrói no presente. Há uma série de projetos e de iniciativas que caminham nesse sentido. É muito mais uma questão de vontade política.
Qual o espaço e as tarefas que cabem aos trabalhadores da Febem, pensando tanto no atual modelo de instituição quanto em uma possível nova estrutura?
Eu sempre digo que não adianta ter planos e projetos fantásticos, no papel, se não houver recursos humanos capacitados e qualificados para executar esse projeto. O cotidiano é realizado pelos trabalhadores que estão ali, em contato direto com os jovens. O que vemos hoje? Parte dos trabalhadores tem boa intenção, disposição e até qualificação, mas fica muito difícil colocar tudo isso em prática, pois há um clima de desorganização institucional. Agora, infelizmente, existe uma parcela dos trabalhadores que está de fato comprometida com práticas violentas, repressivas. Mesmo depois da demissão dos mais de 1.700 funcionários, essas situações continuam, o que indica que uma parcela destes permanece na instituição. Muitas vezes se procura explicar esse cenário com a afirmação de que as condições de trabalho são péssimas. Em uma reunião recentemente realizada na CUT, quando analisávamos justamente a questão do Sindicato da área e dos trabalhadores, o padre Julio Lancellotti pediu a palavra e disse que não há condição de trabalho que justifique a prática da tortura. Ela deveria conduzir à reivindicação organizada por melhorias, mas jamais à tortura. Justificar humilhação e espancamento por conta de condições de trabalho é inadmissível.
A situação não se torna ainda mais explosiva quando adolescentes que cometeram pequenos delitos são colocados, em unidades superlotadas, em contato direto com os jovens mais violentos e ligados aos crimes mais graves?
O ECA diz que essa divisão deve obedecer a três critérios: idade, desenvolvimento físico e tipo de delito. E, em tempos normais, não de colapso, a Febem até que considera esses critérios. Agora, se a gente pensar em projetos mais específicos, mais eficientes, claro que vamos ter de sofisticar essa distribuição e pensar em estudar o caso de cada adolescente, compreender a trajetória de cada um deles, o que faziam antes de entrar na prática infracional. Sem dúvidas, esse detalhamento permitiria a formação de grupos mais homogêneos, e poderíamos começar a ter ações mais pontuais. Se o tratamento fosse individualizado, a eficiência e a recuperação certamente se ampliariam.
O governo do Estado chegou a apresentar, por meio da imprensa, a idéia de oferecer à família do jovem que não participasse de rebeliões a garantia de inclusão no programa “Bolsa Escola”. O que a senhora acha da proposta?
Vou tentar ser bem ponderada, pois fico realmente indignada com esse tipo de proposta. Minha primeira pergunta é: será que esse adolescente é sensível a esse tipo de proposta? Ele quer essa ajuda? Eu não tenho certeza. Lá dentro, temos jovens envolvidos com furtos, roubos, tráfico de drogas, práticas ilegais que muitas vezes vão garantir ganhos muito maiores do que os oferecidos pelos programas assistencialistas. Além disso, o adolescente é muito orgulhoso, e com eles essa prática assistencialista nunca deu muito resultado. Acho lamentável ainda essa perspectiva da barganha. “Se você for bonitinho, eu te recompenso”. E insisto: tenho sérias dúvidas se seria de fato um bom controlador de conduta.
Professora, não é triste ver uma sociedade que tem medo da sua juventude?
É terrível. Nós produzimos crianças e jovens que se tornam cada vez mais violentos, mais perigosos. É verdade – eles estão cada vez mais violentos. Mas nós é que produzimos essa adolescência furiosa. O que podemos esperar quando, na hora em que são transferidos para o interior de São Paulo, esses adolescentes enfrentam dez horas de viagem, amontoados em um caminhão, sem nenhuma parada para se alimentar, para ir ao banheiro? É humilhante. E a única resposta possível passa a ser a fúria. Nós não os tratamos de um jeito humano. Quando você coloca adolescentes em quase campos de concentração, como imagina que eles vão sair de lá? Como?
Para se aprofundar
Fundação Abrinq
Site disponibiliza informações sobre a atuação da entidade e diversos documentos como a Declaração Universal dos Direitos da Crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente. É possível fazer o download do livro “Histórias de Ana e Ivan – boas experiências em liberdade assitida”, de Maria de Lourdes Trassi Teixeira, além de outras publicações.
Rede Amiga da Criança
Reúne diversas entidades nacionais e internacionais que atuam pelo cumprimento dos direitos das crianças e desenvolvem ações em prol da infância. No site é possível acompanhar o monitoramento das metas estabelecidas pelo país, checar indicadores sociais e educacionais.