Por Francisco Bicudo
Hans Christian Andersen. O nome não é dos mais conhecidos, mas sua obra certamente faz parte do cotidiano de muitas escolas. Esse escritor dinamarquês é o autor de clássicos da literatura infanto-juvenil, como A Pequena Sereia, O Soldadinho de Chumbo e da versão mais conhecida de O Patinho Feio. São histórias que correram o mundo e se imortalizaram. Mesmo tendo sido escritas em outras épocas, completamente distintas da atual, continuam encantando crianças e, por que não, adultos de diversos países do mundo, tendo sido traduzidas para mais de cem idiomas diferentes. Se fosse vivo, Andersen, que foi o tema do enredo da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense no carnaval carioca de 2005, teria completado 200 anos no último dia 02 de abril.
A primeira pergunta que surge quando falamos sobre o autor dinamarquês é: como é possível que suas histórias permaneçam vivas por tanto tempo? A professora de Literatura da Universidade de São Paulo (USP), Lúcia Pimentel Góes, escritora de mais de 200 obras, tanto de literatura adulta quanto de infanto-juvenil, explica que os contos de fadas são baseados em arquétipos, que são modelos pré-existentes de papéis e de comportamentos presentes na alma humana e, portanto, na humanidade. “Andersen escreveu baseado nesses arquétipos, o que faz que seus temas se transformem em referências universais e atemporais”, completa. Os contos de Andersen são, portanto, os chamados clássicos. “A literatura clássica é aquela que, por tratar de temas universais e seguir algumas regras básicas, resiste ao tempo”, reforça a também professora de literatura da USP e especialista em literatura infanto-juvenil, Nelly Novaes Coelho.
Carências do ser humano
A mais importante dessas regras é que, já no primeiro parágrafo, o autor normalmente indica o nó da história, a intriga da trama, o caminho que ela deve seguir. E isso é facilmente percebido na literatura do dinamarquês. “As frases que se seguem ao ‘Era uma Vez’ já trazem os indícios das aventuras e desventuras que o personagem principal vai passar”, continua Nelly, que ainda afirma que isso vale tanto para obras infantis como para adultos também. Dante Alighieri, Willian Shakespeare, Fiodor Dostoievsky e tantos outros autores consagrados também seguem essa cartilha, espelhando-se nas falhas e nas carências do ser humano.
Outro fator recorrente nas obras de Andersen e que devem ter ajudado na longa permanência delas, de acordo com as duas professoras, é a estrutura narrativa, que quase sempre se repete. Um ser sai do seu lar, ou é tirado de sua segurança, e é jogado num mundo desconhecido. Ele se sente ameaçado, torna-se indefeso, necessita de amparo e precisa superar os obstáculos. Pode surgir também “alguém de fora” para ajudá-lo, até que se consiga retornar à situação de conforto e segurança. É exatamente por essa seqüência que passam a Pequena Sereia, A Menina dos Sapatinhos Vermelhos e o Soldadinho de Chumbo. A grande diferença de Hans Christian Andersen para os outros autores infantis, como os irmãos Grimm, é que o primeiro não era adepto dos finais felizes. “Ele sempre prefere o trágico, o triste ao feliz”, destaca Nelly.
Aliás, dos temas tratados pelo escritor, os mais recorrentes certamente são a tristeza, a tragicidade e a morte. “É o que pode ser observado nas histórias mais conhecidas, como em O Patinho Feio. Ele é rejeitado, tem que ir embora, só depois desabrocha e encontra seus iguais. A mesma coisa vale para a Menina dos Fósforos, que morre congelada na noite de Natal, porque não foi agasalhada”, lembra a professora e escritora Lúcia Pimentel Góes. Sua colega, Nelly, completa esse raciocínio lembrando que Andersen traz o ideário cristão e romântico nas entrelinhas de suas obras. Ou seja, para ele, o mundo estava dividido entre os bons e os maus e, mesmo quem era bom, se não andasse na linha, acabava tendo de pagar pelos seus atos. Era punido, ou morria no final. “Na Menina dos Sapatos Vermelhos, cortam os pés dela porque não parava de dançar”, conta Nelly. E continua: “o vermelho do sapato é a cor do sexo e do diabo e era preciso cortar o mal pela raiz. Nesse caso, isso aconteceu literalmente”. Quando o personagem não morre, sofre um bocado. O Patinho Feio vive uma dor depois da outra até se encontrar, o que reforça a idéia romântica de Andersen de que o sofrimento purifica, de que penar expurga os males.
Mas, apesar da tristeza e da presença da morte, as crianças adoram as histórias de Andersen. Não deveria ser o contrário? Segundo Lúcia Pimentel Góes, não. “A criança se identifica, percebe que outras pessoas passam pelas mesmas emoções que ela. Às vezes não foi a perda de ninguém, foi o nascimento de um irmão que mexeu profundamente com os sentimentos dela”. A criança se projeta naquele ser que está indefeso, precisando de ajuda. Também se reconhece quando esse mesmo ser dá a volta por cima e supera a má sorte – e ainda consegue se enxergar como o herói de fora que ajuda a salvar o personagem ameaçado. “O leitor mirim experimenta os mesmos sentimentos universais, vivencia as mesmas dores e as mesmas buscas do leitor adulto, porque são todos humanos”, diz Nelly. Por isso, de imediato, a criança percebe os mistérios que mexem com ela e se identifica com as peripécias do personagem principal, todos pautados nos elementos da natureza humana. E essa dinâmica vale para crianças brasileiras, japonesas, dinamarqueses, russas, bolivianas...
Infância sofrida
A outra razão que motivou a preferência pelos temas tristonhos foi a infância sofrida de Hans Christian Andersen, vivida na cidade de Odense, na Dinamarca, e a sua adolescência cheia de labutas.
Filho de um sapateiro e de uma lavadeira que, ao que consta, o rejeitou desde o nascimento, Andersen cresceu com as dificuldades de recursos e a ausência de oportunidades provocada pela extrema pobreza. A falta de brinquedos o empurrava a brincar nos campos no verão e para as sessões de leitura de As Mil e Uma Noites, comandadas pelo pai, no inverno. Mas logo o pai adoeceu e, com a rejeição da mãe, o pequeno Hans Christian se viu perdido no mundo e com a obrigação de sustentar a família. Aos 14 anos, o então adolescente decidiu que ia para Copenhague, capital do seu país, fazer a vida. Juntou alguns trocados e foi a pé, em uma parte do trajeto, e de carona numa charrete em outro trecho da viagem, até chegar a seu destino.
Sem dinheiro, foi pedir emprego a pessoas importantes> mas foi recusado, por não ter estudos. A recusa pela ignorância ficou muito marcada na vida de Hans Christian. Por isso é que “nas biografias dele aparece uma frase célebre atribuída a Andersen: ‘vou para a capital me sentar à mesa junto aos grandes’”, destaca Lúcia Pimentel Góes. E foi o que ele fez. Depois de penar um pouco, estudar e trabalhar, Hans Christian Andersen tornou-se escritor. Com uma obra vasta e rica, ficou importante ainda jovem. Sua morte prematura, aos 50 anos, não impediu a publicação de 168 contos, 800 poemas, 40 peças de teatro, seis romances e cinco diários de viagem.
E, de fato, acabou sentando-se com os grandes Vitor Hugo, Charles Dickens, Frans Listz, entre outros. De livros, as obras viraram filmes, já no século XX. A Pequena Sereia foi um sucesso dos estúdios Disney, lançado em 1989, e O Patinho Feio pode até ser encontrado na forma de CD-Roms para crianças. Lúcia Pimentel Góes, embora concorde que esses recursos ajudam a eternizar a obra de Andersen, diz também que eles “prejudicam a rica possibilidade da imaginação infantil. Se a criança lê o livro, imagens tão ou mais belas que as do cinema vão surgir em suas cabecinhas e isso tem um valor enorme”, defende. Segundo Nely Novaes Coelho, a imagem e o cinema são artes completamente diferentes da literatura. Para ela, “enquanto o cinema te tira de dentro de você, chamando sua atenção para algo no mundo exterior, a leitura interioriza, faz a criança se concentrar nela mesma, nos seus sentimentos”. E isso não significa que os pequenos devem ser privados do contato com a sétima arte, mas que a leitura não deve ser substituída por isso. A professora Nelly faz ainda uma provocação, dizendo que acha a vida dos jovens de hoje muito pobre e, em grande parte, isso acontece por falta da satisfação que só um bom livro é capaz de trazer. E, para completar, Lúcia garante que ler as obras do autor dinamarquês coloca os pequenos em contato com o que há de melhor na literatura mundial. “A linguagem dele é de poeta, própria para crianças, sofisticada sem ser hermética, tratando de temas universais e cheia de possibilidades de fantasiar”. A sorte dos brasileirinhos é que “as traduções sempre foram muito apropriadas aqui”, conta Nelly. “Sempre se fixaram na versão para o português sem alterar o original de Andersen”.
Um clássico
Mas será que para os brasileirinhos, como a professora Nelly gosta de chamar, não seria melhor a leitura de obras nacionais? O Brasil conta com a genialidade de Monteiro Lobato, a atualidade de Maria Clara Machado, a irreverência de Silvia Orthof. Por que então recorrer a um autor das geladas terras de Hamlet? A resposta é imediata para Lúcia: “porque ele é um clássico, seus temas falam direto à alma humana, seu jeito de escrever, cheio de qualidades, encanta as crianças há mais de um século e meio”. Mas Lobato também tem obras primorosas e personagens geniais como Emília, ou o Saci. “Mas a gente não deve comparar, a literatura brasileira é outra coisa e a genialidade de Lobato está em escrever sobre temas tão libertários em personagens inusitados, como uma boneca de pano, ou num boneco de sabugo, o Visconde”, reforça a especialista. Bom seria que os pequenos lessem os dois. “Andersen, para entender dos valores universais, e também Lobato, para tomar contato com o que é próprio do Brasil mesmo”, defende Nelly.
Contudo, o ideal é que o professor, esse sim, conheça a literatura e incentive seus alunos a lerem. “Não me venha falar em metodologia ou didática. O professor precisa é se esbaldar, se deliciar com as obras e entender em profundidade seus conteúdos”, provoca Nelly. “O resto, a estrutura de trabalho bem sucedida vem a reboque, vem quase naturalmente, se o professor for um conhecedor, um apreciador da leitura”, conclui.