Irlemar Chiampi*
Certa vez García Márquez disse que para escrever as suas ficções precisava sentir o cheiro de goiaba podre do Caribe. Ao ganhar o Nobel de Literatura, em 1982, confessou que preferia receber o prêmio vestindo uma guayabera em vez de gravata e paletó.
Essas frases não são meras boutades do escritor colombiano. Nascido em Aracataca, na faixa de terra firme que pertence à grande elipse formada pela Bacia do Caribe, García Márquez é um típico escritor caribenho. Sua obra – tão celebrada por ser “representativa da vida e dos conflitos da América Latina” – manifesta as peculiaridades do discurso caribenho, pela escolha dos temas e motivos, tics expressivos, modo narrativo e inflexão ideológica. A menos que se queira reduzir toda a América Latina (designação inadequada pela emergência das culturas de línguas não latinas) ao Caribe, os textos de García Márquez se inscrevem no mesmo quadro de figuração de identidade regional, que encontramos nos de Alejo Carpentier, Nicolas Guillén, Aimé Césaire, Miguel Barnet, Luis Rafael Sánchez ou René Depestre.
Desde La hojarasca (1952) até Crônica de uma morte anunciada (1981), as histórias de García Márquez transcorrem, invariavelmente, nalgum pueblo tropical (marítimo ou interior), de inconfundível meteorologia: calor bochornoso, ar poeirento, dilúvios e furacões. Os personagens são retirados de um meio social típico, de incipiente classe média, e polarizado entre a classe aristocrática criolla dos coronéis fundadores e a popular, heteróclita, dos peões da Companhia Bananeira e comerciantes “turcos”, dos índios e vendedores ambulantes, de prostitutas, ladrões e vagabundos. Indispensáveis são também os forasteiros, imigrantes e ciganos, evocando o papel geográfico que o Caribe desempenhou na ocupação do território americano como mundo de fronteira, terra de passagem onde transitam ou se fixam temporariamente as gentes adventícias. O pano de fundo dos relatos recorta sempre os fatos históricos exemplares da região: guerras civis de motivações obscuras, nas quais pugnam liberais e conservadores sempre, mas com sub-ideologias entreveradas; a “febre da banana” e a penetração econômica ianque, com greve dos trabalhadores e repressão do exército. Outra invariante é o organismo familiar, de funcionamento matrifocal, com padrão edípico nas relações de parentesco, que a antropóloga Mercedes López-Baralt analisou como tipicamente caribenho.
Seria redundante prosseguir alinhavando os motivos da cultura regional que García Márquez retoma obsessivamente. Muitos deles têm equivalentes no resto da América, mas o que diferencia aquela zona cultural é a acumulação, a persistência e a hipertrofia dos traços apontados. Por outro lado, García Márquez não trabalha mimeticamente tais aspectos, à maneira folclórica de tantos escritores regionalistas, mas investe neles uma ideologia de identidade caribenha, subsidiária do discurso americanista, do qual tanto se beneficiou a produção romanesca do “boom” hispano-americano. O êxito de García Márquez, a legibilidade e difusão de seus textos não podem ser explicadas fora desse vínculo ideológico, que satisfez uma expectativa de recepção dentro e fora da América Latina.
A reivindicação da identidade do Caribe é fato recente no terreno das idéias. Seja por razões políticas ou projeções culturalistas menos interessadas, têm proliferado (com maior insistência desde a Revolução Cubana) os ensaios que tratam de delinear os seus traços específicos e diferenciá-los dos da América do Sul e do Norte. É interessante repassar alguns deles, para observar como García Márquez antecipa ou ratifica certos ideologemas. Manuel Moreno Fraginals, historiador cubano, vê a unidade do Caribe no conflito dialético entre a cultura do colonizador branco e a cultura de resistência do negro, gerada pelo modelo econômico característico da plantação escravagista, desenvolvido pelo colonialismo inglês, espanhol e francês.
Para René Depestre, haitiano, o Caribe entra para a história sob o signo do mascaramento ontológico, que anulou a especificidade étnica dos povos ali enfrentados, com as designações genéricas e racistas de “branco”, “índio” e “negro”. E acrescenta que só o fenômeno da crioulização pôde superar essas falsas identidades, fazendo o Caribe de hoje o território mais mestiçado de toda a América, e dando ao seu povo uma “sensibilidade dionisíaca, onírica e solar”. A antropóloga trinidadiana Marion Patrick Jones avalia a forte presença e importância histórica da cultura popular (sobretudo a dança e a música) como fundamento do universo caribenho, ao qual até as elites se subsumiram. Roberto Fernández Retamar, cubano, aponta os caribenhos como os herdeiros legítimos de Caliban (personagem de A Tempestade, de Shakespeare, explorado pelo seu amo Próspero), o canibal bárbaro, o “mau selvagem”, que se rebelou contra a autoridade do colonizador. Numa versão descomprometida com os mitos da democracia cultural e da resistência, o martinicano Edouard Glissant considera o Caribe como o espaço da “poética relação”. No seu monumental ensaio, Le discours antillais (1981), analisa o plurilingüismo e a mestiçagem como fatores que relativizam os modelos culturais e tecem profundas conexões entre eles.
O discurso sobre a identidade do Caribe é, certamente, mais uma visão do que uma teoria. Mas nele atuam fortes determinantes naturais (uniformidade ecológica-geográfica) e históricos, que encontramos inscritos poeticamente nos textos de García Márquez. Na história da América, foi o Caribe o porto de chegada das caravelas de Colombo, a porta de entrada do Império Espanhol, a encruzilhada natural dos caminhos marítimos. Foi o primeiro Novo Mundo, que ofereceu a sua paisagem para a visão edênica dos conquistadores, o primeiro locus da utopia sonhada pela imaginação européia. Ali também iniciou-se a revisão do eurocentrismo, que haveria de marcar o espírito moderno. Dali eram os indígenas que proporcionaram as imagens contrastantes, que durante séculos alimentaram a fantasia fetichista do europeu: os arahuacos e os caraíbas,, inspiradores da tópica do “nobre selvagem” e do “antropófago bestial”. Tanto um quanto outro sucumbiram às formas de extermínio, que marcaram tragicamente o primeiro contato entre os primitivos e os “civilizados”. Foi do Caribe também que partiu a primeira denúncia do sistema colonial com o humanismo do padre Bartolomé de Las Casas, que haveria de provocar na Europa o debate sobre os direitos do índio. No Caribe surgiu o conceito moderno de colonização (como extensão planejada do organismo político e jurídico espanhol), bem como a exploração sistemática do trabalho escravo do negro. O Caribe foi o cenário das primeiras rebeliões quilombolas e do triunfo da primeira revolução de independência, que em toda a América chegou a alterar a estrutura social da colônia, quando, em 1794, os negros de Santo Domingo (hoje Haiti) aboliram a escravidão, antes de levar, em 1802, as tropas napoleônicas à sua primeira derrota em todo mundo.
No século XIX, o Caribe esteve sujeito a uma exploração sem paralelo no resto da América Latina, com o processo de neo-colonização e suas novas formas de exploração econômica com a ajuda da maquinaria da Revolução Industrial. E hoje continua sendo um lugar de intensa experimentação política (Revolução Cubana, processos recentes de descolonização); antropológica (miscigenação, transculturação, sincretismo religioso acentuado); lingüística (papiamento, crioulização das línguas dos colonizadores, multilingüismo, diglossia) e social (mobilidade e instabilidade das classes sociais).
A história do Caribe tem um ritmo acelerado, de traumas contínuos e permanente recrudescimento de conflitos e rebeldias; seu processo avança a golpes e rupturas brutais (“Nossa história” – diz Glissant – “nos golpeia com uma rapidez estarrecedora”). Sua condição de Primeira Idade da América, de lugar da Origem, do eterno re-começo da história e de melting pot que metamorfoseia os componentes culturais, explicam por quê tem sido o “mediterrâneo americano” o objeto preferido das projeções americanas. Foi Alejo Carpentier quem traçou o primeiro perfil convincente das singularidades caribenhas no contexto latino-americano. No difundido Prólogo a El reino de este mundo (1949), o escritor cubano condensou na metáfora do “real maravilhoso” a identidade do Caribe como universo primigênio e mítico, de história vertiginosa e formação sincrética. É em torno desta metáfora que García Márquez constrói seu mundo ficcional. É surpreendente que a crítica de sua obra passe por alto essa conexão ideológica, para prodigar em influências que vão de Rebelais ao romance de cavalaria, as Mil e uma noites, a Odisséia ou Conrad, quando não se limita simplesmente a taxá-lo de “Faulkner latino”.
Os relatos de García Márquez retraduzem poeticamente, no ritmo narrativo, o ritmo da história do Caribe. Seu método de fabulação – que tanto fascina os seus milhões de leitores – evidencia tal homologia na sucessão delirante dos episódios, na peripécia caudalosa, no horror vacui da ação romanesca; do mesmo modo funcionam a economia das descrições, a linguagem incisiva dos diálogos e as imagens breves, fortemente impregnadas da fantasia verbal popular.
Mas é certamente na construção da história de Macondo, em Cem anos de solidão (1967) – iniciada em La hojarasca e continuada em três contos de Os funerais da mamãe grande (1962) – que García Márquez se esmera em parodiar a sôfrega progressão histórica do Caribe: a fundação por homens (hispânicos) vindos de fora, a formação de uma comunidade agrária com traços de mundo utópico, legislado e modelizado pelo patriarca José Arcádio; a chegada dos imigrantes, e o rápido desenvolvimento do comércio, o advento das instituições e da tecnologia; a prosperidade com a implantação da Companhia Bananeira, marcando o período da neo-colonização; a decadência com a saída da hojarasca de forasteiros, o empobrecimento e a desertificação, até a eliminação final do mapa por um furacão. García Márquez não poupa estratégias para promover a rápida legibilidade no consumo da matéria ficcional. Assim funciona, por exemplo, o motivo da transformação. Macondo não cessa de mudar suas casas, as feições urbanas, os costumes e o ritmo de vida do seu povo, seu modo de produção e a sua composição social. Pestes, guerras, conflitos sociais, dilúvios e tragédias amorosas – e sobretudo a chegada ininterrupta de forasteiros, que expressa a disponibilidade caribenha para a recepção de influências – garantem o continuum narrativo, sem deixar brecha para o repouso do relato.
A tematização da metamorfose multiplica-se em outros níveis do texto. Na descrição de objetos, eventos e seres reproduzem-se as fórmulas de encantamento para converter o maravilhoso em real e vice-versa: o gelo, o brinquedo, uma dentadura são significados como objetos sobrenaturais, enquanto a ascensão ao céu, a levitação, a comunicação com fantasmas são fatos banais.
Paralelos aos motivos da metamorfose, avançam os da repetição e do simulacro. A história cíclica das sete gerações da estirpe dos Bundía (com a repetição dos nomes, traços e destino de Aurelianos e Arcadios) inscreve metaforicamente o significado do eterno re-começo, que encontramos na História do Caribe. Este dilema da volta ao princípio, do re-volver às origens – ao qual Carpentier deu um tratamento magistral em El siglo de las luces (1962) – García Márquez submete ao paradigma do mito de Édipo. O motivo da relação incestuosa perfaz em Cem anos a fábula do enigma da identidade e tem, no meu ponto de vista, a função meta-textual específica de significar o trabalho do próprio narrador na busca das origens míticas do mundo americano. A identidade perdida, esquecida e arruinada pela solidão só é recuperada pelo último Aureliano, quando lê os manuscritos de Melquíades, que vêm a ser o texto do romance que lemos.
Numa cena memorável de O outono do patriarca, o ditador decrépito de uma ilha do Caribe recorda o dia em que assistiu a chegada das três caravelas de Colombo, do terraço de seu palácio. Citando o texto do Diário do Almirante, García Márquez, num admirável tour de force de intertextualidade, atualiza a legendária sexta-feira de outubro. É, provavelmente, essa obsessão pela Origem que faz de García Márquez um escritor “representativo” da literatura latino-americana. “Nós, hispano-americanos” – observou Octavio Paz – “estamos condenados à busca da origem ou, o que é também igual, a imaginá-la”. Macondo não é Buenos Aires, nem Lima, nem a Cidade do México, e muito menos São Paulo. Se a identificação foi possível, é talvez porque nós, os outros latino-americanos, também estamos condenados a imaginar a Origem.
*Irlemar Chiampi é professora-titular de literatura hispano-americana na USP e autora de “O realismo maravilhoso. Forma e ideologia no romance hispano-americano” (Perspectiva, 1980) e “Barroco e modernidade” (Perspectiva/Fapesp, 1998).