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O cavaleiro da triste figura faz aniversário

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Durante uma semana foi quase impossível encontrar professores de literatura espanhola, em São Paulo, que tivessem tempo disponível para qualquer tipo de “atividade extra” – uma entrevista, por exemplo. A razão era justa. Eles estavam todos reunidos no Instituto Cervantes que, de 14 a 16 de setembro último, sediou o “Seminário Internacional de Dom Quixote”. O evento reuniu especialistas brasileiros, da América Latina, de Portugal e da Espanha para tentar, mais um vez, descobrir o que faz de Dom Quixote uma obra apaixonante e imortal.

Depois de várias tentativas e de muita insistência – ela, claro, também estava participando dos debates e conferências da semana passada – conseguimos conversar com a doutoranda em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de cursos de extensão de Literatura Espanhola da mesma universidade, Rosângela Schardong, especialista na obra de Miguel de Cervantes. A especialização nessa área, aliás, é fruto de uma trajetória quixotesca, como ela mesma explica: “Eu fiz uma disciplina de graduação na Universidade Federal de Santa Catarina. Foi um semestre inteiro lendo, discutindo e, claro, me apaixonando por Dom Quixote”. E esse foi só o começo. “Quando o semestre acabou, já tinha decidido que estudaria o Quixote a vida inteira. Aliás, todo mundo que lê, se apaixona. E todo mundo que se apaixona, acaba empreendendo um caminho quixotesco. Eu não fugi à regra”, brinca. Depois de terminar a faculdade, Rosângela faz as malas e mergulha em uma aventura bem ao gosto do fidalgo espanhol: migra para São Paulo, para fazer mestrado e doutorado sobre o livro de Cervantes.

Encantos de um clássico
Mas que mistério será esse que leva um livro de 400 anos, escrito em tempos que já se vão, a continuar encantando seus leitores, a ponto de muitos deles dedicarem a carreira acadêmica ao estudo da obra? “Essa é a pergunta que estamos nos fazendo há séculos e ainda não conseguimos responder definitivamente”, conta Rosângela. Também segundo a especialista, é por isso que tanta gente se reúne ainda hoje e discute incansavelmente sobre os mais variados aspectos da obra, às vezes divergindo, às vezes concordando. Mas há consenso e algumas pistas. A primeira explicação, certamente, diz respeito aos temas tratados por Miguel de Cervantes. “O que faz de uma obra um clássico são os elementos atemporais nela presentes”, explica. Em Dom Quixote, esses elementos referem-se aos sentimentos e às relações humanas que, tratados com tamanha profundidade e complexidade, não perdem a atualidade. Segundo Rosângela, “ingredientes profundos como sonho, frustração, paixão e medo, são sempre atuais e sempre próprios do ser humano”. Ou seja, esses mesmos temas já faziam parte do passado, continuam existindo no presente e continuarão fortes no futuro. Dom Quixote, por tratar deles, não perde a atualidade. Por isso é um clássico.

A professora da USP lembra que, diante de todas as experiências quixotescas que já viveu por conta de seus estudos sobre o Cavaleiro da Triste Figura – como é também conhecido Quixote –, a que até agora não se manifestou foi curiosamente encontrar alguém que perguntasse qual é a história que o livro conta. “Todo mundo, de um jeito ou de outro, tendo lido ou não a obra, tem em mente a figura do cavalheiro e sabe que se trata da história de um fidalgo espanhol que, ao lado de seu fiel escudeiro Sancho Pança, parte em busca de aventuras pela Espanha”, relembra. A história é, de acordo com o próprio autor, uma crítica às novelas de cavalaria, um gênero oriundo da Idade Média e que inspirou os valores do Romantismo, como a honra, o amor cortês e outros. Mas essa, segundo os especialistas, é apenas uma leitura possível, porque a obra de Cervantes, na verdade, traz críticas bem mais profundas que ajudam a derrubar barreiras.

Modernidade na narrativa do romance
A primeira razão que justifica essa transposição de barreiras é que Dom Quixote inaugura a modernidade na narrativa do romance. Cervantes, ao escrever o livro, estava muito atento aos gêneros da época, como o teatro, a poesia e as novelas pastoris. Todos esses gêneros aparecem na obra. Tem mais. A história narra episódios mais sérios, sempre ligados a um gênero mais elevado de literatura, e episódios mais cômicos, relacionados a um gênero considerado inferior pela literatura. Ou seja, “Cervantes convida os mais variados públicos a desfrutar da obra, das classes mais populares às elites”, revela Rosângela. E essa mescla entre as classes sociais aparece em outro aspecto relevante: a bonita relação entre o fidalgo Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro, o camponês Sancho Pança.

A amizade dos dois mostra uma possível convivência entre as diferentes classes sociais, destaca a superação de papéis sociais por meio do aprendizado. E, convivendo com o fidalgo, Sancho deixa de ser um simples escudeiro, para tornar-se um participante ativo das aventuras. Vai aprendendo lições sobre os bons modos, o bom falar e a honra. Em troca, Sancho contribui com sua objetividade e sua grande sabedoria popular. Num tempo em que os papéis sociais eram extremamente delimitados, “a humanidade das relações e a troca entre os dois públicos reforçam a complexidade da obra”, explica a especialista.

Outra barreira que Cervantes ajuda a colocar por terra é o tratamento dispensado às mulheres. Personagens, aliás, que são foco dos estudos de Rosângela. A professora conta que o autor retrata seis mulheres ao longo da história que, em linguagem da época, eram chamadas de mulheres varonis. São elas: Dorotéia, que era a musa de Quixote; Doña Rodrigues; Marcela; Cláudia e Ana Félix, além da filha de Diego Llana. Mas o que essas mulheres tinham de especial e por que essa classificação como varonis? Rosângela diz que, no século 16, tempo em que foi escrito o livro, a educação feminina era controlada pela Igreja. Elas não passavam pela educação formal e seu papel social era o casamento e a procriação. Mas isso era a norma. Algumas famílias mais esclarecidas procuravam educar suas filhas e formavam mulheres cultas, de papel social destacado, que existiram mesmo nas cortes. Cervantes, ao que tudo indica, nutria uma grande admiração por essas figuras. Na obra do espanhol, elas falam em primeira pessoa, nunca é o narrador quem fala por elas. Têm grande honra pessoal, personalidade marcante e coragem. E, normalmente, estão envolvidas em questões de justiça. “Elas rompem com as limitações da época, empreendem coisas e revertem a injustiça das situações. Também são dotadas de compaixão pelos homens e sempre ganham um final feliz”, entusiasma-se a especialista. Rosângela acredita que Cervantes, ao retratar essas figuras, deve ter querido passar uma mensagem favorável sobre as capacidades e a sensibilidade feminina. Mais uma vez com o intuito de falar a todos os públicos. Era um feminista? Depois de rir um pouco, Rosângela admite: “Não, acho que não. Mas era, com certeza, um humanista”.

Se existisse um manual dos apaixonados por Dom Quixote, seu artigo primeiro seria a obrigação de divulgar o livro e suas idéias. Deve ser por isso que, para concluir, Rosângela sugere que “todo mundo, devia, pelo menos uma vez na vida, ler Dom Quixote”. O que ela não revela é que essa atividade pode trazer uma conseqüência para toda a vida: o leitor pode começar a desenvolver idéias quixotescas e talvez decida perseguir seus sonhos, como aconteceu com a própria especialista.

Para se aprofundar
» Portal dedicado a Dom Quixote e Cervantes
» Especial do IV Centenário de Dom Quixote
» Site sobre Miguel de Cervantes
» Dom Quixote em quadrinhos

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