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Entrevista com Paulo Nogueira

A visão hegemônica da história nos apresenta as religiões CRISTÃ e judaica em constante conflito. Os trabalhos desenvolvidos pelo seu grupo oferecem um outro enfoque e revelam que, ao menos no início, havia um diálogo entre as duas tradições. Como se dava esse intercâmbio?
Em primeiro lugar, é preciso desfazer um nó conceitual. Nossos estudos não tratam da Igreja Católica institucionalizada e com influências gregas e romanas. Nós estamos falando daquilo que chamo de cristãos primitivos, do período que vai até o século II. É partindo dessa premissa que se pode afirmar que há testemunhos e relatos claros de que boa parte desses primeiros cristãos ainda mantinha certas práticas ligadas ao que a gente chama de misticismo judaico. A própria forma de um Jesus divino e celestial, intermediário entre deus e os homens, é cada vez mais reconhecida como derivada dos anjos judaicos, de Miguel, Melquisedeque ou Gabriel, por exemplo, que são venerados pelos judeus por serem espécies de intermediários e interlocutores entre deus e o mundo terreno. Mas é bom lembrar que não trabalhamos com o princípio da concordância absoluta entre as duas religiões, mas com quadros e cenários comuns.

Os trabalhos apresentados pelo grupo estão basicamente centrados na temática da apocalíptica judaica, que também teria se manifestado entre os cristãos primitivos. Como pode ser definida essa visão apocalíptica?
A apocalíptica é documentada na literatura judaica que se estende do século II antes de Cristo até o século II da era cristã. Ela está presente inclusive nos Manuscritos do Mar Morto. E consagra duas idéias principais. Em primeiro lugar, a perspectiva do cataclismo, das pragas escatológicas, a visão de que o mundo está em crise e acabando, mas que depois virá a libertação, o reino de deus. Em segundo lugar, há a inda a perspectiva da ascensão ao mundo celestial, onde deus habita cercado por anjos. Trata-se de um mundo muito hierárquico. É praticamente impossível acessar ou conversar com deus como fazemos hoje. Havia vários níveis intermediários, diversas estruturas de poderes angelicais, até que se chegasse a ele. Os próprios anjos acabam por constituir-se em exércitos, guardando deus no mais alto dos céus, onde ele está sentado em um trono. Aqui, estamos sempre trabalhando com os relatos e revelações que os visionários em êxtase faziam de suas viagens ao céu. Veja, essas são tradições que, naquele momento, aparecem tanto entre os cristãos quanto entre os judeus. Por isso é que nós falamos em elementos comuns.

A bibliografia sobre o tema é ainda escassa e muitas vezes de difícil acesso. Quais os documentos e obras que são as referências dos trabalhos de vocês?
Temos como fontes primárias os principais escritos judaicos da época, ou seja, a literatura produzida entre os dois Testamentos, que inclui os chamados textos pseudepígrafos. Trabalhamos também com os Manuscritos do Mar Morto e com a literatura cristã primitiva, constituída do Novo Testamento e dos textos apócrifos. Com relação aos documentos secundários, conseguimos, por meio de verbas da Fapesp, um bom número de livros de ponta, internacionais, que são muito caros e que não teriam sido comprados se não fosse dessa maneira.

Como vocês dividem os temas tratados?
Em três sub-eixos principais. O primeiro deles trata das tradições messiânicas e angelicais do judaísmo e das origens da cristologia. Neste eixo, estamos falando, por exemplo, da batalha que Jesus trava com o diabo no deserto, quando é colocado à prova e tentado pelo demônio e vive uma experiência de êxtase. O segundo grupo se preocupa em compreender a experiência religiosa mística e visionária do cristianismo primitivo. É nesse momento que estudamos, dentre outras passagens, a experiência de Paulo, que consegue chegar até o céu, ou de João, autor do Apocalipse, que viaja até os céus para receber a revelação do final dos tempos. Por fim, há pesquisadores analisando como os símbolos da visão apocalíptica são interpretados e recebidos nas regiões do Mediterrâneo, transformando-se em anjos, mágicas, amuletos, talismãs e evocações divinas.

O grupo tem parcerias com outras equipes ou instituições?
Atualmente, somos doze pesquisadores, entre coordenador, mestrandos, doutorandos e colaboradores. Há uma produção muito intensa de artigos e ensaios, muitos deles já publicados. Todo semestre, nós realizamos seminários externos e internos, com objetivo de dialogar e trocar idéias com pesquisadores internacionais que sejam referência no assunto. Em agosto, por exemplo, receberemos pela segunda vez o professor Christopher Rowland, do Queen’s College, em Oxford. Ele já se transformou em uma parceiro constante. Também já nos visitaram os professores John e Adela Collis, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e Martinus de Boer, da Universidade Livre de Amsterdã. Temos amadurecido ainda um diálogo bastante produtivo e estreito com grupos que trabalham com a História Antiga. Não queremos deixar que o caráter caseiro da nossa pesquisa se auto-satisfaça.

Em todo esse percurso, quais foram as principais dificuldades enfrentadas?
Nós vivemos um problema sério, já que nem todos os pesquisadores são bolsistas, o que os obriga a trabalhar como docentes em outras instituições. Eles têm de se desdobrar para conseguir produzir. Outro entrave é a questão da bibliografia. Por mais que a Fapesp nos financie, nossa biblioteca ainda é bastante reduzida. Por fim, há um obstáculo que o Sindicato poderia começar a debater, que é a questão da burocratização da universidade brasileira. O professor se transformou em um pequeno burocrata. Perdemos muito tempo em reuniões improdutivas e preparando relatórios repetidos, e, por isso mesmo, desnecessários. Sobra pouco tempo para a pesquisa propriamente dita.

De que maneira pretendem dividir com a sociedade todo o conhecimento acumulado?
Essa é uma questão primordial, essencial. É importante que o grupo se consolide como núcleo permanente, já que o projeto temático se encerra em fevereiro do próximo ano. Até lá, pretendemos pensar e viabilizar novas formas de atuação, talvez inaugurar uma home page do grupo. Estamos também selecionando textos e artigos que farão parte de um livro que será lançado no próximo ano, para marcar o encerramento dessa primeira fase de atividades.

Num país como o Brasil, marcado pelo sincretismo religioso e, contraditoriamente, pela intolerância entre os diversos cultos, qual a principal contribuição e benefício dos trabalhos feitos?
Acho que nós estamos preenchendo uma lacuna e oferecendo subsídios para a leitura de alguns textos que são fundamentais para a compreensão e formação da cultura ocidental e da própria identidade de grupos religiosos no Brasil. Nós temos aqui em nosso país uma razoável e bem desenvolvida tradição nos estudos das questões religiosas indígenas e africanas, mas não temos uma escola de estudos bíblicos marcada pela preocupação científica e acadêmica. Quando ela aparece, está sempre ligada a igrejas, e, portanto, marcada pelos dogmas. Isso não nos interessa. Na verdade, acho que estamos inaugurando uma nova linha e caminho de pesquisa no país.

Para terminar: se, no início, havia esse diálogo que você descreveu, quando e por que acontece o afastamento entre as duas religiões, a ponto de, em muitos momentos, se tornarem ferozes inimigas?
Essa não é a minha área específica de atuação, mas eu tenho a impressão de que esse afastamento se deu a partir do momento em que a tradição cristã se aproximou do mundo greco-romano. Em Santo Agostinho, o platonismo é a corrente filosófica principal; na era medieval, reaparece Aristotéles. Quando isso acontece, os cristãos passam a manifestar o mesmo anti-semitismo que de certa maneira já marcava o mundo Mediterrâneo. E aí aparecem mitos como “os judeus mataram Jesus”, “eles rejeitaram o Senhor”, que são acompanhados por uma série de narrativas que ajudam a reforçá-los. Quando se consolida a grande e institucionalizada igreja romana, quando a ortodoxia se firma e os dogmas se assentam, o cristianismo curiosamente se afasta das formas e conceitos que lhe deram origem.


Leia também a reportagem “A comunhão de cristãos e judeus”, publicada pela revista “Pesquisa Fapesp” de julho.
www.revistapesquisa.fapesp.br.

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