Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Eu trabalhei com o Vlado. Mais do que isso, era amigo dele. E nunca me conformei com o choque que foi a sua morte”. É assim que o diretor do documentário Vlado – 30 anos depois, João Batista de Andrade, explica as motivações que o levaram a filmar a história do assassinato de Vladimir Herzog, em 1975. Naquela época, Vlado, como era carinhosamente conhecido, trabalhava como diretor de jornalismo da TV Cultura. Embora não fosse comunista, simpatizava com idéias como justiça social e distribuição de renda, historicamente defendidas pelos setores sociais identificados com a esquerda.
Assim como a grande maioria dos profissionais da imprensa naqueles anos de chumbo, brigava pela liberdade e opunha-se à ditadura militar instalada no país em 1964. Apesar de tudo isso, Herzog, embora visado, escapara ileso das cassações e prisões que aconteceram logo após o golpe, e também das torturas e desaparecimentos que sucederam o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. O ato é considerado “o golpe dentro de golpe” e representou o endurecimento do regime de terror. Com a posse do presidente Ernesto Geisel, em 1974, e sua proposta de “abertura democrática lenta, gradual e segura”, Vlado acreditava que os piores momentos tinham ficado para trás.
“Foi por isso que ele se apresentou espontaneamente ao DOI-Codi [Destacamento de Informações e Centro de Operações e Defesa Interna], na noite de 24 de outubro de 1975. Ele foi prestar esclarecimentos sobre sua suposta ligação com o Partido Comunista. Saiu de lá no dia 25, já morto”, conta seu amigo e cineasta João Batista, que atualmente é também Secretário de Cultura do Estado de São Paulo. Para ele, essa seria a razão principal do choque: alguém que escolheu o caminho da legalidade e não o da clandestinidade ou da luta armada ser assassinado daquela forma. Na versão oficial apresentada pelo comando do DOI-Codi, Herzog teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário. No entanto, relatos de outros jornalistas, também presos no mesmo lugar, ajudaram a desmontar essa versão, e investigações posteriores demonstraram que, na verdade, o diretor de jornalismo da TV Cultura havia sido assassinado sob tortura.
Um marco na luta pela democracia
O professor de História da Faculdade Cásper Líbero, Newton Molon, explica que a morte de Vladimir Herzog (nome que batiza o Centro Acadêmico da Faculdade) representou realmente um choque de grandes proporções, com repercussões em várias esferas. Primeiro, familiares e amigos ficaram estarrecidos com o episódio. Em segundo lugar, o assassinato pegou de surpresa a imprensa, que noticiava diariamente os supostos esforços do presidente Geisel para abrir o regime e, no futuro, restaurar a democracia. Por fim, fez sacudir toda a sociedade civil. “Todos os esquemas de oposição ao governo, em 1975, já tinham sido desbaratados, então havia uma falsa calma no ar. Na verdade, havia uma grande letargia”, explica Molon. Segundo ele, quem havia sobrevivido às violências da ditadura e confiava no discurso de abertura política acreditava estar finalmente em segurança. “No entanto, diante do assassinato de Herzog, percebemos que não estávamos em segurança coisa nenhuma. Percebemos que o terror não tinha acabado”, completa.
“Por isso é que se diz que a morte do Vlado foi um marco”, defende João Batista. “E é a partir da notícia do assassinato dele que a sociedade descobre que o discurso do governo estava divorciado dos seus atos, que ainda havia muitas resistências dentro das Forças Armadas à idéia da abertura política”, completa Molon. Ainda segundo o professor, é também a partir do terrível episódio que a sociedade volta a se organizar para se defender e para exigir a volta da democracia. Essa reorganização, ele avalia, não estava mais apenas baseada no movimento estudantil ou nas guerrilhas urbana ou rural, mas passava a se consolidar a partir das religiões, das entidades de classe, dos sindicatos e de movimentos como o de mulheres. “Foi uma reação mais humanista que marxista”, define.
Resgate do passado e a decepção com o atual governo
Toda essa história é resgatada pelo documentário de João Batista. Segundo o cineasta, “datas redondas” sempre são propícias para comemorações e homenagens; além disso, admite, era um projeto antigo fazer o documentário. “Eu sempre me perguntei por que até hoje não tinha feito. Achei que o filme sairia nos 20 anos da morte do Vlado, mas só aconteceu agora”, conta. O professor Molon também acredita que o momento histórico em que o filme é lançado é muito apropriado. “O documentário mostra as raízes dos movimentos sociais que redundaram na volta da democracia, em 1985, e que, em 2002, elegeram o presidente Lula”. Para ele, resgatar o passado recente ajuda também a entender por que o país vive tamanha decepção com o atual governo. “Finalmente imaginávamos que luzes seriam lançadas sobre questões ainda não esclarecidas sobre aquele difícil período, que poderíamos soltar alguns gritos presos nas gargantas desde aquela época... Mas nada disso aconteceu...”.
João Batista reforça, por fim, que Vlado – 30 anos depois revela uma história que até então não tinha sido contada: a dos sentimentos das pessoas que conheceram e viveram aquela história de muito perto. “Não é um filme investigativo, ou policialesco. Eu pedi que as pessoas contassem o que elas viveram, o que sentiram, como foi que passaram por tudo aquilo”, conta o diretor. E o resultado é uma série de depoimentos afetivos e emocionados. “As pessoas se abriram e se expuseram de uma maneira nunca feita antes e então chegamos a uma história que até então não tinha sido contada”. Para o professor da Cásper Líbero, essa maneira singular de contar histórias e de contar a História humaniza o passado e “faz o espectador entender que quem passou por tudo aquilo são pessoas comuns, de carne e osso, exatamente como ele. E isso aproxima o público da narrativa”.
Sem mais demoras, João Batista faz o convite: “Vejam o filme. Enquanto houver público, ele ficará em cartaz, e a história do Vlado, e tudo que ela suscita, poderá ser disseminada”.
Serviço:
Vlado 30 anos depois está sendo exibido, aqui em São Paulo, no Espaço Unibanco de Cinema desde 30 de setembro e ficará em cartaz enquanto houver público. Outras cidades também recebem o documentário, como Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre.
Para se aprofundar:
O Museu da Pessoa organizou um especial em seu site sobre Vladimir Herzog. Leia aqui.