Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
O bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, ganhou a queda de braço – e conquistou uma vitória que os argumentos e as pressões de diversas entidades, acadêmicos e especialistas não tinham sido capazes de obter. Foram dez dias de greve de fome – de 26 de setembro a 6 de outubro –, período marcado por uma intensa troca de correspondências e de envio de emissários que prestavam solidariedade ao bispo, ou que tentavam demovê-lo de sua decisão, considerada demasiadamente “radical”. E, a não ser que o governo federal decida esquecer aquilo que prometeu, rompendo o compromisso assumido, o início das obras de transposição do rio São Francisco está suspenso, pelo menos por enquanto, e até que o projeto possa ser debatido com mais profundidade pela sociedade brasileira.
Dom Luiz não aceita os argumentos apresentados pelo governo federal, que garante, em documento divulgado ainda em 2004, “a transposição terá impacto significativo na vida das cidades beneficiadas, o que permitirá a ampliação do setor de serviços, com destaque para o turismo, bem como para a agricultura, a psicultura e a criação de gado na zona rural, atendendo indistintamente a pequenas e grandes propriedades”. No mesmo documento, o governo admite que o projeto de transposição, que deve custar inicialmente cerca de quatro bilhões de reais, não representa a solução final para os problemas do Nordeste, mas pode ajudar a levar água para uma parcela significativa de populações locais que sofrem com a seca. Para Wilson Lang, engenheiro civil e presidente do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), o projeto é uma aspiração política da nação. “Era uma promessa do então candidato Lula. E, se estava previsto no programa de campanha dele, aprovado por 53 milhões de eleitores, deve ser cumprido”, cobra.
Trocando em miúdos, a tal transposição das águas do São Francisco significa a construção de dois canais, um caminhando para o norte e outro para o leste, e que juntos terão quase 700 quilômetros de extensão. Eles serão responsáveis por abastecer açudes e reservatórios já existentes, nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, beneficiando 12 milhões de pessoas e disponibilizando água tanto para o consumo humano quanto para atividades econômicas. Pelo menos é isso o que dizem o governo e os defensores da proposta. João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e que estuda o São Francisco há mais de dez anos, discorda da tese. “Estão enganados aqueles que acreditam que os problemas das populações carentes serão resolvidos. Nos grotões, onde acontece a seca mais intensa, o abastecimento continuará dependendo dos caminhões-pipa. A água do São Francisco não vai chegar até lá”.
Mais um capítulo da “indústria da seca”
Para o especialista, o projeto tem um objetivo muito claro: beneficiar o grande empresário exportador e o agronegócio. “Esse pessoal vai ver a cor da água do Velho Chico”. Aldo Rebouças, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), também não usa meias palavras para criticar duramente o projeto. “Trata-se de mais um capítulo da história da indústria da seca”, reforça. Lang, do Confea, faz o contraponto e garante que uma boa parcela da população nordestina atingida pelas secas terá finalmente acesso à água. “É um projeto que visa à libertação da região”, sentencia. Sobre a relação com o agronegócio, ele não vê problemas. “Qual a pauta principal das exportações brasileiras? Não é o agronegócio? E qual o problema?”, pergunta.
Suassuna não se preocupa apenas com o destino final das águas, mas com a própria capacidade do rio de fornecê-las. Ele afirma que o São Francisco é hidrologicamente pobre – sua vazão média é de 2.800 m3/segundo. O rio Tocantins, que fica na bacia Amazônica, mas ocupa uma área semelhante à do Velho Chico, tem vazão média de 11.800 m3/segundo – quase quatro vezes mais. “As águas não vão chegar até o final dos canais, não vão encher os reservatórios”, reforça Rebouças, do IEA/USP. O pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco avança no raciocínio e lembra que 60% da bacia do São Francisco sofre com o clima semi- árido, e a maior parte de seus afluentes são temporários. Além disso, o rio é responsável por cerca de 95% da energia elétrica gerada na região Nordeste, e esse potencial já dá sinais de debilidade. “E ainda assim querem tirar água do rio?”, questiona. O temor se justifica: o rio Colorado, nos Estados Unidos, explorado intensamente como fonte de irrigação, já “encolheu” cerca de 100 quilômetros, e não mais chega em sua foz, no México. “O volume final de água a ser captado do São Francisco é pequeno – cerca de 300 m3/segundo – e o impacto será mínimo”, rebate Lang.
Impactos ambientais
Para os especialistas contrários ao projeto, os impactos ambientais também não podem ser esquecidos. Graças à ação destrutiva de indústrias como a do carvão, as matas nativas e ciliares (que ficam à beira dos rios) foram em grande parte devastadas, favorecendo a queda das margens, e fazendo surgir barreiras. As obras de transposição poderão, segundo Suassuna, acelerar esse processo, tornando o rio menos navegável. Outro problema apontado diz respeito à qualidade das águas. Grande parte das 14 milhões de pessoas que vivem na região usam o São Francisco como um enorme esgoto a céu aberto. “Não existe tratamento adequado de esgoto e essa água que o governo quer transportar poderá trazer sérios problemas de saúde pública, como hepatite e verminoses”, afirma Suassuna. Rebouças, do IEA/USP, completa o raciocínio e aponta mais dois problemas ambientais de conseqüências significativas: a invasão da região Nordeste por espécies de peixes não nativas, que geraria uma competição natural de resultados imprevisíveis, e a salinização dos solos. O engenheiro civil Lang tem opinião distinta. Para ele, o comitê gestor das bacias hidrográficas é que deve administrar esses problemas. Um projeto com essa envergadura, afirma, e capaz de gerar emprego e renda, não pode ser suspenso por aquilo que classifica de argumentos genéricos. “A melhor maneira de fazer nada é criar obstáculos tão grandes que a ação acaba por se inviabilizar”, lamenta.
O presidente do Confea rebate a acusação de que o projeto de transposição serviria apenas para contemplar interesses das grandes empreiteiras. Ele afirma que nenhum país desenvolvido alcançou essa condição sem investir em obras públicas. “Para que uma obra desse porte possa sair do papel, é preciso ter empresas organizadas e com competência técnica. E o Brasil as tem. Ainda bem”, insiste. Suassuna, no entanto, identifica falsos argumentos e promessas insustentáveis no discurso do governo, inclusive quando se destaca a capacidade de realizar as obras. Ele lembra que os canais que serão construídos são de dimensões gigantescas: 700 quilômetros de extensão, cinco metros de profundidade e 25 metros de largura. Esses canais terão de passar por uma área que ele chama de “geologicamente complicada” para esse tipo de projeto, já que há rochas espalhadas por toda a superfície, que terão de ser cortadas e explodidas. Suassuna faz as contas: se as obras conseguirem avançar 100 metros por dia – o que ele considera praticamente impossível –, o governo levará aproximadamente 19 anos para concluir os 700 quilômetros de canais. “Mas estão prometendo entregar a primeira etapa da transposição já no ano que vem. Querem enganar quem?”.
Alternativas à transposição? Rebouças fala na necessidade de conscientização da população e na fiscalização do desperdício. “O uso racional da água é a base da sustentabilidade”. Suassuna destaca o exemplo de iniciativas já adotadas pelo Ceará para combater a seca. Naquele estado, um programa de interligação das bacias hidrográficas tem sido capaz de combater a seca de forma eficiente. Quando falta água no norte, uma represa do sul se encarrega de abastecer a região carente, e vice-versa. “O que é mais viável?”, pergunta. “Usar as águas das represas de maneira articulada e coerente ou ir buscar água do São Francisco, há 500 quilômetros de distância?”. Ele coloca o dedo na ferida: “o projeto de transposição tem claro cunho político e pretende alavancar a reeleição do presidente Lula”, dispara.
Como se vê, quando o assunto é a transposição do São Francisco, o consenso, ainda que mínimo, é uma miragem. Vale lembrar que a idéia de captar as águas do Velho Chico para abastecer áreas castigadas pela seca foi levantada pela primeira vez ainda na época do Brasil Império, nos idos de 1847, e, no século XX, foi intensamente debatida pelos governos de Juscelino Kubitschek, pelos presidentes da ditadura militar, pela administração de Fernando Henrique Cardoso e, mais recentemente, também pelo governo Lula. Diante dos impasses e das resistências, a administração petista decidiu colocar o pé no freio e assumiu o compromisso de aprofundar as discussões, para buscar o tão sonhado consenso, antes de iniciar qualquer obra. Dom Luiz Flávio Cappio não está disposto a ser enganado. Se o governo abandonar o acordo feito, o frei promete retomar a greve de fome.
Para saber mais:
» Reportagens da Agência Carta Maior
» Site do Ministério da Integgração
» Divulgação científica dedicada à restauração e conservação dos recursos do São Francisco