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Marginalidade e violência vêm à tona

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Quando o Estado e as políticas públicas se ausentam, exclusão social, marginalidade e violência vêm à tona. A equação é antiga e mais do que conhecida nos chamados países subdesenvolvidos – América Latina e África, principalmente. Mas, dessa vez, não estamos falando da periferia da cidade de São Paulo, dos morros do Rio de Janeiro, dos movimentos indígenas do Peru, Equador ou Bolívia, dos piqueteiros da Argentina, dos conflitos étnicos em Ruanda ou no Sudão. Com um misto de preocupação e espanto, as atenções se voltam para a onda de violência que tomou conta dos subúrbios de Paris e de outras importantes cidades francesas. Sim, estamos falando da pátria das idéias iluministas, um dos berços das revoluções burguesas e terra-mãe do “liberdade, igualdade, fraternidade”, um dos sete países mais ricos do mundo e uma liderança no processo de unificação européia.

Acuada e atordoada, a sociedade francesa viu-se obrigada a enfrentar, nas últimas semanas, um cenário de caos social, traduzido pelo slogan “nós odiamos a França, e a França nos odeia”. As respostas do governo aos gestos desesperados de imigrantes árabes e africanos não apenas não solucionaram o problema como ajudaram a alimentá-lo: logo após o início dos motins, o ministro do Interior, Nicolas Sarkosy, chamou os manifestantes de “escória” e resgatou uma lei de 1955, usada na época para reprimir os adversários durante a guerra de independência da Argélia. Essa velha-nova legislação permite a adoção do toque de recolher, proíbe reuniões públicas, garante a deportação de imigrantes “indesejáveis” e prevê a adoção de “medidas de exceção”. Resumo: continua tratando uma grave crise social como caso de polícia. O resultado final: duas semanas de verdadeiras batalhas campais, mais de oito mil carros incendiados em cerca de 300 cidades e a convicção de que a outrora toda-poderosa República francesa não está sabendo lidar com seus excluídos e diferentes. Fica também um alerta que passa a incomodar outros países, vizinhos ou não: a globalização neoliberal, que endeusa o capital e condena o ser humano, somada à ausência de projetos políticos alternativos, pode fazer surgir, muito em breve, várias outras Franças, em escalas talvez ainda mais ampliadas...

”Nós também existimos”
É verdade que, de certa forma, fomos pegos de surpresa. Mas vale a pena parar e pensar: poderia ser diferente? Pense em jovens imigrantes africanos e árabes, sofrendo com o preconceito e o racismo e vivendo nas periferias e em bairros miseráveis, onde faltam escolas, postos de saúde e áreas de lazer, e onde a taxa de desemprego atinge quase 40%. Como não votam, pois não são “cidadãos franceses”, acabam abandonados à própria sorte, e a criminalidade e o tráfico de drogas surgem como possibilidades de sobrevivência. Esses jovens não sonham, não têm esperanças ou perspectivas de vida. A única instância do Estado que por ali dá as caras é a polícia – e, em geral, chega até a periferia apenas para reprimir. E foi exatamente uma dessas situações que representou o estopim para a explosão social. Depois do anúncio da morte de dois adolescentes árabes, eletrocutados em uma estação de energia quando fugiam da polícia, jovens imigrantes saíram às ruas para protestar e começaram a incendiar carros – um dos símbolos da prosperidade e do capitalismo francês –, numa desesperada e desordenada tentativa de gritar: “vejam, nós também existimos, não aceitamos a atual ordem das coisas e queremos ser cidadãos da República francesa”. Faz sentido: se vocês insistem em não nos enxergar, arrumamos nossa maneira de fazer com que parem de nos ignorar. Essa é a mensagem que chega dos guetos de Paris.

“Os protestos conferiram visibilidade à situação de alienação econômica e social de grande parte da população muçulmana (...), que vive em precárias condições de moradia, educação e transporte, ao que se soma o elevado desemprego, compondo um grave quadro de exclusão social”, escreve a professora da PUC-SP, Flávia Piovesan, em artigo publicado pela “Agência Carta Maior”. O sociólogo Cristóvão Feil, também na “Carta Maior”, vai além e diz que o Estado liberal definha a olhos vistos, sendo incapaz de apresentar respostas para as demandas sociais da maioria das populações, que passam a desacreditar das atividades políticas, pois estas não são mais capazes de contemplar os temas cotidianos dos indivíduos, como o emprego, por exemplo. Essa situação coloca em risco o próprio conceito de democracia, bem como seu funcionamento. “Trata-se de um caldo de cultura para aquilo que Turgueniev, Dostoievski, Nietzche e Hannah Arendt chamaram de ‘niilismo’ – a descrença absoluta, onde não há verdade moral nem hierarquia de valores. É uma sintaxe onde não há mais sujeito, e o termo absoluto é o dinheiro”. Segundo Feil, o “impulso niilista é o promotor das jornadas incendiárias contra automóveis da França”. Douglas Ireland, colaborador da revista “The Nation”, avalia, em texto reproduzido pela “Folha de S. Paulo”, que os protestos não deveriam causar surpresa, pois representam o resultado de 30 anos de negligência governamental, a incapacidade das lideranças políticas francesas, tanto de esquerda quanto de direita, para promover qualquer esforço sério de integração da população muçulmana e negra à economia e à cultura da França.

Choque de civilizações?
As reflexões feitas pelos especialistas são importantes para afastar uma interpretação apressada e instrumentalizada sobre a realidade francesa, que tentou vincular os protestos dos jovens imigrantes a movimentos religiosos e fundamentalistas, como se representassem mais uma etapa do avanço do “choque de civilizações” ou dos “movimentos terroristas internacionais”. As práticas de Osama bin Laden teriam chegado à França? Puro e falso discurso. É mais cômodo isentar-se de responsabilidades e atirar o problema no colo de terceiros. O fato é que o alvo principal dos manifestantes é o Estado francês – ou a ausência dele. Trata-se de um movimento político – difuso, disperso, confuso, quase caótico, é verdade, mas essencialmente político –, que questiona, com as armas de que dispõe, a exclusão social e rejeita o neoliberalismo intolerante. Sabem o que não querem, embora ainda não sejam capazes de dizer com clareza o que desejam. “Os jovens amotinados não protestam contra a ‘lei do véu’ nem portam a bandeira da jihad. (...) Os jovens que incendeiam carros não querem ser o ‘outro’, a colônia incrustrada na metrópole, o gueto cultural tolerado nos confins da cidade, as sombras perigosas nas estações da periferia. Exigem emprego e a visão de um futuro. O contrato republicano. A cidadania inteira”, afirma o geógrafo Demetrio Magnoli, em artigo publicado pela “Folha”.

Frank Furedi, autor do livro “A política do medo: além da esquerda e da direita”, em artigo originalmente publicado pela revista britânica “Spiked” e reproduzido também pela “Folha”, chama a atenção para um aspecto ainda mais preocupante. Para ele, o mais significativo nos acontecimentos recentes na França é a reação da classe política e das autoridades locais, capazes apenas de vislumbrar mais truculência e repressão. Segundo o autor, essas supostas respostas aos problemas dos imigrantes são sintomas de uma situação extremamente grave. “Falta às elites francesas um senso de objetivo, e elas estão politicamente exauridas. Faltam à vida pública um senso de meta, perspectiva e sentido. Pela primeira vez na era moderna, as elites políticas européias estão destituídas de projeto. Elas não têm mais uma missão a cumprir. Não têm uma visão definida que possa moldar sua política e suas ações no cotidiano”, escreve. E ele completa, enfático: “Confusa e sem eixo, a França perdeu sua identidade”.

É possível resgatar essa identidade? Se as respostas ao caos social se resumirem à truculência, a deportações, prisões e mais intolerância, se os imigrantes africanos e árabes continuarem sendo considerados como a “escória”, a resposta certamente é não. Mais cidadania, escolas, solidariedade, emprego, sonhos e perspectivas de futuro; menos consumo, delegacias de polícia, individualismo, preconceitos e ausência de projetos coletivos – esse parece ser o caminho para o resgate do contrato social francês. “Romper esse ciclo vicioso demanda a adoção não apenas de medidas repressivas-punitivas, mas também de medidas afirmativas e promocionais. Isto é, não basta apenas proibir a discriminação, já que a negativa de exclusão não traduz automaticamente a inclusão das populações mais vulneráveis. (...) É a vertente promocional, e não a vertente punitiva, que é capaz de criar o sentimento de pertença e um senso de identidade social”, conclui Flavia Piovesan. E, aviso aos navegantes: esse é um raciocínio que deve ser compreendido não apenas pela sociedade francesa. Antes que outros carros sejam incendiados e que outras periferias decidam gritar.

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