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Entrevista com Francisco Alembert, professor de história contemporânea da USP

Qual deve ser o olhar que devemos lançar sobre o governo de Juscelino, 50 anos depois?
Na verdade, é um problema olhar com os olhos de hoje. Porque é só o que a gente tem. Se estivéssemos nos anos 50, a gente teria outras formas de olhar. Mas pensando e analisando a partir de hoje, de 2006, o que temos é um retorno ao mito.

E por que esse retorno?
Vamos pensar no momento atual. Estamos no último ano do governo Lula, depois de sucessivos governos democráticos no país. E, sempre que nos aproximamos dos momentos de eleição, em que as forças políticas vão se agrupar, ou se romper, é hora de lembrar dos grandes mitos políticos de um país. Juscelino é com certeza um desses mitos. Outra boa razão para acontecer o retorno ao mito é, claro, a mini-série da Rede Globo. Aí as escolas passam a discutir o assunto, a imprensa também passa a discutir. Livros são lançados com o mesmo tema. Enfim, cria-se um ambiente propício para se falar no assunto.

Mas por que se recorre ao mito nos momentos de intenso debate preparação para o jogo político-eleitoral?
Pela mesma razão que os povos recorrem aos mitos quando querem exemplificar algo. O mito ajuda a explicar algumas coisas. No nosso caso, recorremos ao mito JK desde o final da ditadura militar, mas mais fortemente depois da redemocratização, principalmente do governo Sarney para cá. Veja que curioso: todos os governos, de Sarney para cá, utilizaram-se das marcas do governo JK. Ou tiveram um discurso parecido, ou citaram Juscelino, ou quiseram se igualar de alguma maneira.

Mas tivermos governos de orientações políticas e ideológicas bem diferentes desde 1985.
É verdade e isso é que é curioso e é também o que faz de JK um mito. Um mito serve a todos, pode ser suporte para qualquer corrente, qualquer escola de pensamento. Ele tem, por natureza, essa universalidade. Os governos Collor e Fernando Henrique, que seguiram a orientação neoliberal, utilizaram-se da imagem de um governo bom e progressista, para embasar o discurso do liberalismo social. De fato, Juscelino foi o primeiro a pregar a abertura da economia, sua internacionalização. Todas as indústrias que vieram para cá no surto de desenvolvimento dos anos 1950 e 1960 eram multinacionais. Além disso, o discurso de JK era oposto ao de Getúlio Vargas. Ele foi o precursor do liberalismo no Brasil sob esse ponto de vista. Defendia uma economia mais livre e mais aberta. Os neoliberais se aproveitam desse discurso e dessa prática em sua retórica, 40 anos mais tarde.

E no governo Lula? Como o mito JK é utilizado?
Se de um lado os neoliberais se serviram do discurso da abertura da economia, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva – que tem uma orientação dita mais à esquerda, embora a gente possa discordar disso – usa a ideologia do desenvolvimentismo. Essa é, claro, uma marca muito forte – e talvez a mais lembrada – dos anos JK. Perceba que é um discurso contrário ao dos neoliberais, mas que também está presente no mesmo mito JK. Ou seja, os governos vêm sucessivamente utilizando a retórica, a imagem e o mito do governo de Juscelino, por isso ele continua tão forte e tão presente. Mas há também algo em comum na utilização de JK por esses governos. De uma forma ou de outra, eles procuram justificar o crescimento econômico dentro da democracia. Ele agradava a burguesia, por que se mostrava um governo modernizador, e também agradava a esquerda, mesmo não tendo uma política de esquerda. Mas alcançou um crescimento realmente fantástico, nunca visto antes. O grande problema é que isso não foi dividido por toda a sociedade.

Aí o senhor chega a um ponto polêmico. Atualmente, quando se fala de JK, raramente são abordados os problemas de seu governo e suas heranças indesejadas. A não-distribuição de renda, por exemplo.
É verdade. Um dos problemas de ser um mito é que a história ou passa a servir ao bem, ou passa a servir ao mal. O caso de JK é o primeiro, passou a ser um bom exemplo. Mas seu governo teve sim, claro, problemas. A questão da divisão de renda é clara. O país crescia assustadoramente: 12% ao ano. Mas esse crescimento não beneficiou a todos. Ou seja, ao fim dos anos JK, a divisão de renda no Brasil havia piorado, e a dívida para bancar esse crescimento também tinha aumentado enormemente. Isso sem falar nos casos de corrupção e na questão dos candangos, que foram praticamente forçados a ir trabalhar num lugar sem nenhuma estrutura de trabalho e de vida.

E a gente achando que a corrupção era problema recente...
A gente sempre acha que está inventando coisas novas, ou então descobrindo algo inédito. Mas a corrupção era tão descarada que Juscelino não consegue fazer seu sucessor. Nas eleições para presidente, em 1960, ganham Jânio e João Goulart, que podemos entender como candidatos mais à esquerda de JK.

Usar o mito serve para mostrar algo de bom e tentar esconder algo de ruim. É isso?
Exatamente isso. No Brasil, o mito JK é recorrente porque mostra a nossa verdadeira cara, nossa verdadeira vontade, que é crescer e mudar sem mudar nada, sem tocar nas estruturas. E isso é um pensamento e uma prática comum desde sempre por aqui, desde o Império, com as políticas modernizantes de Dom Pedro II.

Esse comportamento se manifesta nas eleições? As pessoas vão sempre atrás de um candidato que modernize e faça crescer, sem tocar nas sagradas estruturas?
Isso mesmo. Quase todas as eleições comprovam que o brasileiro prefere uma política boa, mas conservadora, que nos leve ao primeiro mundo – como dizia Fernando Collor –, mas sem tocar na divisão de renda, na miséria, na educação deficitária, no vergonhoso sistema de saúde, etc.

Seguindo esse raciocínio, é possível acontecer um novo JK?
A minha opinião, e faço questão de dizer que esse é o meu ponto de vista, é que as circunstâncias do governo JK não se repetirão e o governo de Juscelino é totalmente colado no circunstancial. Na década de 1950, tínhamos a Guerra Fria e toda a política de reconstrução da Europa e do Japão. E tínhamos o Plano Marshall dos Estados Unidos, para bloquear o avanço soviético. Havia, portanto, uma quantidade muito grande de capital circulando no mundo e uma boa parcela desse dinheiro veio parar aqui no Brasil, com a indústria automobilística e todos aqueles incentivos. Era um contexto mundial viável para aquele crescimento. E como todos os setores acreditavam nesse crescimento, foi um período de estabilidade política. O que ajuda a reforçar ainda mais a idéia de desenvolvimento com democracia. Agora, hoje, isso não seria possível, porque todos os capitais estão aplicados no sistema financeiro e não no sistema produtivo. Os altos lucros gerados assim vão para as mãos de poucos, o que cria legiões de pessoas dependentes dos governos, salários baixos e um alto grau de desemprego. Ou seja, dificilmente a situação de 50 anos vai se repetir. Ou melhor, ela se repete, mas em ideologia.

Gostaríamos de insistir na questão relacionada aos governos neoliberais e aos desenvolvimentistas. Não parece um paradoxo que duas correntes ideológicas opostas utilizem o mesmo exemplo e referência?
Juscelino era um político como poucos e jogava muito bem para os dois lados. Intervinha na economia e bancava o desenvolvimento econômico de um lado e, de outro, abria a economia ao capital estrangeiro. É por isso que as correntes políticas que você citou podem ainda recorrer à memória do governo JK. Elas utilizam a parte que melhor convém. A esquerda, por exemplo, gosta muito da questão do Estado forte, das políticas nacionalistas, do investimento em educação, que fortaleceu as universidades federais e estaduais. A USP cresce e se afirma como a maior universidade do país nesse período. E esse seria um caminho excepcional para dar um choque naquelas estruturas a que nos referimos e reorganizar o país. Porque, além da política e da economia, a cultura e a educação iam muito bem, ou seja, estávamos muito perto de alcançar uma outra situação no país.

E o que acontece? Por que isso não se realiza?
Porque aí vem o golpe militar de 1964. Para barrar o progresso que o país estava experimentando e estabelecer o que chamo, sem receio de errar, de retorno à mediocridade. Para explicar isso, eu peço a meus alunos que esqueçam que a gente está em 2006 e que já passamos por tudo aquilo que vem acontecendo desde 1964. Pense que, nos anos 50, a ilusão, o sentimento entre todas as parcelas da população é que estávamos a um passo de virar primeiro mundo. As pessoas realmente acreditavam nisso. Já falamos da política organizada e estável. Falamos da economia em franca expansão...

Faltou falar da cultura e do que diz respeito ao social...
Exatamente. Foi nos anos 1950 que se organizou o que a gente chama de Cultura Nacional Autônoma. Ou seja, foi um segundo surto modernista, que fundou para sempre aquilo que a gente chama até hoje – e do que morremos de orgulho – de uma Cultura Nacional. A Bossa Nova é desse tempo, a arquitetura modernista e o Cinema Novo também. Então, cria-se um caldo cultural cheio de grandes figuras, de grandes pensadores que, mesmo inspirados em tendências internacionais, procuram – e conseguem – criar algo genuinamente brasileiro e que influencia o mundo e a gente mesmo. Até hoje. Ou seja, era um tempo de esclarecimento e radicalização das consciências. E ainda nesse campo da Cultura, a esquerda era hegemônica. Para se ter uma idéia, no campo da Educação, o que florescia era a teoria de Paulo Freire. Nada mais revolucionário. E, embora JK, muito habilmente, joga-se para todas as correntes políticas, ele se aproxima estrategicamente da esquerda ao se mostrar e se dizer um presidente Bossa Nova. Era um orgulho para o país a sua cultura, por isso JK não podia deixar escapar a oportunidade de colar sua imagem à dessa conscientização geral.

Setores mais à direita certamente não gostaram nem dessa expansão cultural, nem da aproximação do presidente com esse movimento...
E aí armam o Golpe. Que não foi em cima de Juscelino, mas de seus sucessores que – de alguma maneira – seguem a política e a economia de JK e aprofundam questões sociais. O que só foi possível porque herdaram o país depois de JK.

E ele acaba virando o herói que tem o sonho destruído pelo vilão.
Isso mesmo. Ele não era um inimigo das camadas que apoiavam a ditadura. Pelo contrário, era um conciliador. Mas seu governo levou a aprofundamentos sociais que desagradaram muita gente. Aí vem a ditadura e rompe com a possibilidade de continuidade do modelo JK. Por isso é que, já no fim da ditadura, ele é lembrado e requisitado quando se procura um bom modelo democrático de gestão.

Biografia de Juscelino Kubitscheck

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