João Batista Araujo e Oliveira*
Quando o MEC apresentava seus parâmetros curriculares para a alfabetização (PCNs), em 1997, a maioria dos países desenvolvidos mudava suas políticas de alfabetização. A diferença: no resto do mundo, as orientações vão numa direção, no Brasil, noutra. O que aqui se considera como a última palavra em alfabetização, lá é tido como equivocado e ultrapassado. Portanto, é claro que o assunto deve ser discutido. Mas não se trata só de discutir o processo de alfabetização. O que deve ser discutido?
Cabe descartar o que não deve ser discutido. Não se deve transformar a alfabetização num problema ideológico ou de fé. Nem se deve reduzir a discussão a um confronto entre métodos ou processos. Nem se deve deixar a discussão de lado porque há outros problemas no país, como a fome, a miséria, o salário dos professores ou a sua formação. Nem argumentar que só isso não resolve. É claro que só isso não resolve, mas, sem isso, pior ainda.
Um relatório apresentado ao país em setembro de 2003 pela Câmara dos Deputados ("Alfabetização Infantil: Novos Caminhos"), assinado por alguns cientistas reconhecidos por suas contribuições ao avanço da ciência cognitiva da leitura, aponta caminhos da discussão.
Primeiro, cabe dispor com clareza o tema: o que é alfabetizar. Alfabetizar é como aprender a usar uma interface, dominar um código. O que o indivíduo fará com isso é outra história. No Brasil, confunde-se alfabetizar com a outra história, que é o letramento. Não há nada de errado com o letramento. O erro é confundi-lo com alfabetização e complicar o que deveria ser descomplicado.
Em outras palavras, confunde-se o processo de alfabetização (dominar o código alfabético) com o objetivo (que é compreender textos, ler o mundo). Essa confusão é um erro lógico. Pode ser entendido na forma de um silogismo: "Ler é compreender. João leu e não compreendeu. Logo, João não leu". A premissa é falsa. O raciocínio confunde o processo e o objetivo da alfabetização.
Ler e compreender envolvem competências cognitivas diferentes, são conceitos logicamente independentes e requerem materiais e métodos de ensino específicos aos seus objetivos.
Portanto, o primeiro passo é limpar a clareira e definir o objeto da discussão. Alfabetização e letramento se referem a distintos universos do discurso e não podem nem devem ser confundidos. Não há nenhuma evidência de que saber ler com fluência prejudica a compreensão. Mas há evidência inequívoca do contrário -sem fluência, não há possibilidade de compreensão, de letramento. Ajudaria muito verificar como os demais países do mundo abordam essas questões, de forma simples, objetiva e operacionalmente separada.
Em segundo lugar, vem a questão de métodos. Essa discussão só se torna pertinente a partir da definição correta do objeto: se é letrar, a questão de métodos é irrelevante. Se é alfabetizar, o método se torna uma questão fundamental, e a pergunta, simples: qual método funciona melhor? E a resposta se torna ainda mais simples dado o acúmulo de evidências sobre a questão.
Há métodos que funcionam comprovadamente melhor que outros. Os métodos fônicos, por exemplo, não funcionam melhor apenas em geral. Funcionam muito melhor para crianças com dificuldade de aprender a ler. Hoje, não só sabemos que eles são mais eficazes mas por que o são. O que justificaria não adotar o que é mais eficaz para promover a aprendizagem e a eqüidade?
Em terceiro lugar, vem a questão dos materiais. De novo, ela só se torna relevante se estivermos falando de alfabetização e de métodos adequados. Três décadas de estudo sobre como o cérebro aprende a ler nos dão informações preciosas sobre como devem ser os textos para alfabetizar. As discussões sobre cartilhas e textos para alfabetizar decorrem da definição equivocada de alfabetizar. Ler é confundido com aprender a ler. Aprender a ler é confundido com compreender textos e extrair significados. Não se trata do viúvo que viu a ave, mas do viúvo que vê o óbvio. Há certos tipos de textos que tornam o processo de alfabetização mais eficaz do que outros. Quando voltarmos a entender o que é alfabetizar, será mais fácil acertarmos na escolha de métodos e materiais.
Estamos, pois, diante de uma possibilidade de avanço. O relatório da Câmara dos Deputados, acessível via internet, pode constituir um importante balizamento para fazer a discussão avançar. O objetivo do debate não é o de gerar vencedores e vencidos, mas políticas públicas que promovam a eqüidade. O MEC abriu o debate. Vamos ler, compreender e debater o relatório?
*João Batista Araujo e Oliveira, 59, é psicólogo, Ph.D. em educação. É autor de, entre outros livros, "ABC do Alfabetizador".