Telma Weisz *
Em primeiro lugar, seria preciso saber de que processo de alfabetização estamos falando: do processo através do qual a criança aprende a ler e a escrever ou dos procedimentos através dos quais o professor ensina?
Sei que essa diferenciação soa estranha para o público leigo, mas ela é essencial. As pesquisas em psicolingüística que produziram grandes avanços nos últimos 25 anos foram exatamente as que conseguiram deixar de confundir o "como se ensina" com o "como se aprende". Essa confusão está na origem da chamada "guerra dos métodos", batalha entre método global e método fônico encerrada na primeira metade do século passado. Os que tentam reviver o método fônico acusam seus opositores de usar o método global, mas isso não é verdade.
Seria conveniente relembrar alguns dos atualmente famosos números do fracasso escolar brasileiro. Desde que dispomos de estatísticas confiáveis, os números da reprovação escolar ao final da primeira série se repetem com uma continuidade de arrepiar. Em 1956, por exemplo, foram reprovados 56,6% do conjunto de todos os alunos ao final dessa série. Em 1987, 30 anos depois, foram reprovados 51%, e em 1996, um ano antes da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), foram reprovados apenas (sic) 41%.
Como sabemos, a reprovação na primeira série acontece porque o professor avaliou que o aluno não estava alfabetizado. Atribuir ao construtivismo -teoria do conhecimento que é um dos suportes teóricos dos PCNs, e não um método de alfabetização- a nossa histórica dificuldade para alfabetizar só pode ser ignorância ou má-fé.
Como venho bradando nestes meus 40 anos de militância profissional centrada na melhoria da qualidade da educação pública no país, a escola que não consegue alfabetizar adequadamente seus alunos é um poderoso instrumento de exclusão social, e índices de fracasso dessa dimensão representam um genocídio intelectual. E o que os professores usavam para conseguir esses assombrosos resultados? As cartilhas que todos conhecemos e que têm como único foco o ensino de quais letras representam quais sons. O construtivismo nunca teve nada com isso.
O que a ciência nos ensinou nas últimas décadas é que o processo pelo qual se aprende a ler e a escrever tem características peculiares. Apesar de ser considerada como o mais escolar dos conteúdos escolares, a alfabetização não acontece apenas dentro da sala de aula e as crianças não chegam à escola vazias de conhecimento sobre a língua escrita, como imaginávamos antes.
As de classe média, filhas de leitores de jornais como nós, iniciam oficialmente a alfabetização sabendo muita coisa sobre a escrita. Sabem que a escrita representa o que se fala. Que, para escrever, é preciso representar cada "pedaço" do falado com a letra que lhe corresponde. Nesse momento, já construíram a consciência fonológica no nível da sílaba e, nessas condições, toda informação sobre as letras e seu valor sonoro convencional, apesar de ainda não completamente entendida, faz sentido. Mas essas são as crianças de classe média.
As outras crianças -as que não conseguem se alfabetizar no tempo que a escola espera- são as que vivem em famílias nas quais o jornal serve, por exemplo, para embrulhar, não para informar. Para elas, que têm muito pouco contato com a escrita e ainda não descobriram que é preciso representar cada "pedaço" do falado com os elementos gráficos correspondentes, de nada adianta começar informando diretamente sobre as letras e os sons, pois isso ainda não faz nenhum sentido.
Por isso, o trabalho mais importante da escola com essas crianças, assim que chegam, é levá-las a mergulhar no mundo da cultura escrita para que elas possam começar a pensar sobre o assunto. Quando conseguimos criar as condições adequadas, essas crianças percorrem rapidamente a distância que as separa das outras e aprendem a ler. Mas, se a escola não é capaz de ajudá-las a transpor esse fosso, elas vão engrossar as estatísticas do fracasso escolar.
Para ensinar a ler e a escrever, é preciso que a metodologia possa dialogar com as reais necessidades de aprendizagem dos alunos em cada momento do seu processo. Para conseguir esse diálogo, é preciso investir continuamente na qualificação profissional dos professores. Mas não só. Também no desmonte da burocracia, do corporativismo e da descontinuidade das políticas públicas que atrapalham todos os profissionais que lutam, de dentro da escola, por uma educação de qualidade para todos os brasileiros.
*Telma Weisz é doutora em psicologia da aprendizagem pela USP. Foi consultora do MEC para a concepção e produção do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores e é autora do livro "O Diálogo entre o Ensino e a Aprendizagem" (Ática).