Entrevista com o Prof. Luiz Dario Ribeiro
Os jornais informam diariamente que as manifestações lideradas por estudantes vêm ganhando cada vez mais força e repercussão em paris. Não raro, observamos também comparações com o movimento de maio de 1968.o que está acontecendo de fato na França?
Em linhas gerais, o que os jornais contam é verdade. Essa gente toda foi para as ruas por conta de uma grande crise no sistema francês. Eles estão se colocando contra a tentativa – por parte do governo – de eliminar os restos do sistema de Bem-Estar Social. E, para isso, o governo procura atingir os mais jovens. Em nome da suposta luta por empregos para os filhos de imigrantes – que não têm a mesma qualificação dos parisienses do centro da cidade –, a mudança está atingindo a juventude altamente qualificada. Seria impossível não haver uma reação. Os franceses sabem o que está acontecendo, percebem esse desmonte gradual e homeopático do seu Estado. O Contrato do Primeiro Emprego foi só o estopim. E sabem também que o governo já percebeu que essa política da precarização do emprego não será suficiente para resolver todos os problemas e por isso já prevêem que outras medidas similares virão, todas para combater os benefícios já conquistados.
Essa medida é uma resposta à revolta dos jovens da periferia que, no final do ano, queimaram carros e enfrentaram a polícia, como o governo tenta argumentar?
Não, não é uma resposta. O governo Chirac, de direita, não é muito conhecido por atender à demanda de seu povo, ele é um tanto indiferente a essas necessidades. Na verdade, o que o governo fez foi usar os protestos como pretexto. Usa os protesto para legitimar suas medidas, para legitimar o neoliberalismo no país.
Mas por que só agora? por que a frança só está passando por esse aprofundamento agora, se o resto da europa e outros países do mundo já enfrentam essa realidade de avanço e consolidação do neoliberalismo há algum tempo?
Não é que a França está atrasada no processo de implantar o neoliberalismo. Mas é preciso entender a realidade daquele país. A geração que subiu ao poder graças ao Maio de 1968 é a responsável pelas investidas liberais terem demorado mais para acontecer no país. Pela ordem cronológica: Valéry Giscard, François Mitterand e Leonel Jospin todos foram da geração de 1968, mais à esquerda e progressistas, portanto. A derrota da direita no Maio de 68 foi fundamental para fazer essa geração subir ao poder e isso neutralizou a força neoliberal por mais de dez anos. Com a vitória de Jacques Chirac, essa geração chega ao fim, e a abertura ao liberalismo fica gritante. Junte-se a isso a competição com a China e a própria estagnação da União Européia. Tudo isso leva a França a uma crise importante e, para ficar mais competitivo e seguir as regras da Organização Mundial do Comércio, o país vai lentamente se abrindo para o neoliberalismo. Houve uma tentativa de implantar essas medidas no passado, mas a reação foi forte e o governo da época recuou. Hoje, Chirac só está reimplantando essas idéias.
Era possível imaginar que as reações seriam tão intensas?
Os franceses há muito perceberam que medidas para minar o bem-estar social já vinham sendo tomadas, inclusive por governos anteriores, mesmo que gradualmente. O problema é que essas iniciativas não estão resolvendo os problemas. Elas não apresentam resultados positivos e a população já percebeu isso. Os intelectuais franceses também. O recém-falecido Pierre Bourdier e Vanessa Forrester são bons exemplos de franceses que já estavam avisando que a situação no país estava chegando perto de um conflito importante. Temos no horizonte a concorrência do leste europeu, que despeja no mercado da União Européia milhares de trabalhadores qualificados e dispostos a trabalhar por salários menores e sem nenhum benefício. Claro que os capitais vão buscar esses trabalhadores, deixando os franceses de lado. Assim a União Européia está nivelando os salários por baixo, deixando os franceses muito insatisfeitos. O que a França tem feito é mostrar ao mundo essa tendência e esse descontentamento, que é geral na Europa. Na Espanha, algo muito parecido está acontecendo, mesmo sob o governo de Zapatero, que é socialista. Na Itália também, só que lá o máximo da exploração se dá no terceiro setor.
Mas então o movimento de hoje, embora tenha raízes e lembre em alguns aspectos o maio de 68, é fundamentalmente diferente do levante liderado por Daniel Bendit.
O que já se pode dizer é que o movimento de hoje é defensivo, enquanto que o de 68 era ofensivo. Os estudantes e os outros manifestantes de hoje querem defender o que sobrou de um sistema. Coincidentemente, esse sistema nasce na década de 1970, influenciado pelo Maio de 68. Mas é contra mudanças. O levante de 68, ao contrário, queria era ir além da sociedade existente. Os slogans “É proibido proibir” e “A imaginação no poder” mostram bem isso. A geração de 1968 era revolucionária, enquanto essa é conservadora. Mas a gente consegue encontrar semelhanças também.
Quais são as semelhanças, professor?
Primeiro, temos que relembrar que o movimento de hoje tem sua raiz no de 68, como já dissemos. Depois, o elemento fundamental dos dois momentos: uma crise política que não se restringe à França. Ou seja, naquele tempo foi o Vietnã, hoje temos a questão mal resolvida do Iraque, mesmo que a França tenha se colocado contra, os franceses sentem a incapacidade de seus governantes de resolverem a situação. Outra semelhança é a autonomia do movimento. Quer dizer, ambos surgem das bases e partidos e demais instituições vão se agregando espontaneamente, não houve um dirigente juntando todos os setores. Eles foram se juntando sozinhos, ao perceberem a força da motivação dos estudantes. Por fim, os dois movimentos refletem a situação histórica do momento. O Maio de 68 não foi só francês. Foi mundial. No mundo todo as pessoas estavam se colocando contra a situação política, social, ou econômica de seus países. É o caso da Primavera de Praga, das revoltas anti-racismo, pelo feminismo, pelo movimento gay e contra o Vietnã, nos EUA, e etc...
Então a França é hoje, novamente, um espelho do mundo?
Isso mesmo. A França apenas está sinalizando melhor e mais visivelmente as contradições do sistema neoliberal. Essa situação é mundial. Outros exemplos já estão acontecendo. Talvez menos violentos, mas tão importantes quanto. É o caso dos Fóruns Sociais Mundiais e dos Fóruns Sociais Regionais. Essa mentalidade de que esse sistema é contraditório já está aparecendo. E, o que já podemos perceber também, é que os conflitos não terminarão se não houver uma mudança sistêmica.
Alguma evidência mais concreta sobre essa mudança, professor? já dá para dizer se e quando ela vai acontecer?
Ainda não. Quer dizer, já se pode dizer que uma resposta a tudo isso está sendo gestada. Como eu falei, os fóruns de pluralidade têm tentado construir uma nova alternativa. Mas ela ainda não existe de fato. Mas à medida que a grande contradição interna do neoliberalismo vai se mostrando, também a resposta vai sendo gerada. Temos de acompanhar.