Para começar, uma curiosidade: por que biografar Paulo Freire agora?
Bem, primeiro não é de agora. Esse projeto já se arrasta há sete anos. Desde 1999 eu venho escrevendo, resgatando histórias e documentos e organizando as obras de Paulo para escrever esse livro. A primeira razão, claro, é porque eu fui mulher dele durante 10 anos, os últimos 10 anos de Paulo. Segundo porque sou conhecedora de sua vida e de sua obra e, em se tratando de Paulo Freire, não era justo que tudo isso ficasse só comigo. É, portanto, uma obra amorosa acima de tudo. A partir disso é que fui atrás da pesquisa. Aliás é uma pesquisa bem vigorosa, toda pautada em documentos históricos. Tudo que está escrito é subsidiado por decretos, documentos.
Vocês se conheceram muito antes de se casarem, não é? Você pode contar um pouco como foi a sua história com Paulo Freire antes da união de vocês?
A gente se conheceu quando eu tinha apenas três anos de idade. Ele foi estudar na escola do meu pai, isso com uns 16 anos. E, a partir daí, passou a ser um freqüentador assíduo da casa da minha família. Minha lembrança é que ele sempre esteve por perto. De aluno, passou a professor do colégio. E sempre me lembro que ele dizia que, nessa situação, ele não conseguia saber ao certo o que era sonho e o que era realidade.
Por quê?
Porque ele dizia que ele sonhava tanto em ser professor, desejava tanto isso que, quando finalmente aconteceu, ele não conseguia acreditar.
Então o magistério e a educação eram desejos antigos?
Ah sim, sempre foi o que ele quis. Ele era um ótimo professor. Era um grande conhecedor da gramática e da língua portuguesa. E lá ficou ele durante alguns anos lecionando no colégio do meu pai. De lá ele foi para o Sesi e lá é que podemos dizer que começa a verdadeira caminhada de Paulo pela libertação dos oprimidos, dos mais fracos, pela educação.
O que acontece no Sesi [Serviço Social da Indústria] que possa ser considerado o marco fundador da toada pela educação?
Lá no Sesi de Pernambuco, que era uma instituição recém-criada pela Confederação Nacional da Indústria, ele toma contato mais de perto com os trabalhadores e com o analfabetismo desses trabalhadores e isso o faz refletir sobre a liberdade e a humanidade que estavam sendo roubadas daqueles operários por eles não terem acesso à leitura e à escrita.
Mas ele já tinha tido contato com pessoas mais pobres e menos escolarizadas, não é?
Ah sim. No Nordeste isso é muito mais forte e mais comum que aqui no Sudeste, ou lá no Sul. No Nordeste, a convivência com pessoas extremamente pobres e iletradas é muito comum. Paulo, por exemplo, gostava muito de olhar as lavadeiras lavando e batendo as roupas – suas e de outras famílias – no rio. Ele sempre teve um olhar para os oprimidos e isso vem, certamente, do fato de ele ser nordestino e conviver nesse contexto.
Então o fato de ele ser nordestino influencia sua obra e sua trajetória? É possível ver isso em seu método de educar?
Com certeza ser do Nordeste influenciou muito. Eu digo sempre que, se Paulo tivesse nascido no Norte gelado, lá no hemisfério norte, ele não seria o Paulo Freire.
E o que é que o Nordeste tem?
Lá a miséria está mais espalhada. Mesmo as pessoas de classes sociais mais elevadas têm contato mais de perto com os pobres, os miseráveis. Assim, a miséria é mais vista e mais sentida do que aqui. Mas não é só isso. A verdade é que, para vencer essa situação adversa, os nordestinos são criativos. Eles enfrentam a situação interpretando e modificando a realidade. Isso, por exemplo, é a essência de A importância do ato de ler. Paulo, olhando a transformação da realidade, consegue construir a base para o entendimento da palavra e, depois, da palavra-mundo – aquela que explica, interpreta e transforma os contextos em que estamos. A gente brincava falando da recifencidade de Paulo Freire, da pernambucanidade de Paulo Freire que, por fim, daria na grande brasilidade dele. Tudo isso permitiu que ele olhasse o mundo de outro jeito. De um jeito novo. O Sesi, portanto, o colocou em contato com um grande número de analfabetos e ele se perguntava o porquê dessa situação. E, com ajuda da sua grande capacidade de escutar, da inédita idéia de ouvir o que os ignorantes tinham a dizer e de aprender o que eles tinham para ensinar é que nasce seu método.
E isso era impensável até então.
Não sei se era impensável, ou se era pensável, mas ninguém tinha coragem. Porque esse pensamento e esse método de Paulo Freire de fazer falar os oprimidos incomodava. E incomodava demais às autoridades. Incomodava porque elas sabiam que isso não ia ser bom.
Voltando lá para a casa dos seus pais. Você sempre gostou de Paulo Freire?
Sempre o admirei. Ele não tinha um vozeirão, mas tinha um falar seguro. Coisa que foi conquistando aos poucos. Primeiro era inseguro por achar fantástica demais a possibilidade de ser professor, o que ele sempre desejara. Mas, à medida que foi conhecendo as coisas, foi ficando mais seguro e isso vazava para a sua voz. Já adulto ele tinha aquele jeito de falar de quem sabe o que quer dizer. Um enorme conhecimento, mas cheio de doçura, de meninice.
E vocês sempre se viam?
Ah sim. Não era todo dia, mas sempre. Primeiro ele e a primeira esposa, Elza, e eu e meu marido nos encontrávamos sempre na casa de meus pais. Depois eu vim para São Paulo. Aí só nos víamos no final do ano, Natal e Ano Novo. Depois ele foi para o exílio, morou na Bolívia, no Chile, nos Estados Unidos e na Suíça. Ficou sete, oito anos fora e, com a o processo de reabertura, ele volta para o Brasil em 1980. Nesse período do exílio nos encontramos umas duas vezes. Uma aqui em São Paulo, outra em Genebra, onde jantamos eu e meu marido, ele e a mulher. Foram apenas poucas horas.
E o que ele trouxe desse tempo no exílio? Quer dizer, o que na obra dele é resultado dessa estadia forçada fora do país que ele amava tanto?
Todos nós somos seres históricos e isso significa que nosso entorno, o contexto em que estamos certamente influencia toda a nossa vida e a nossa obra. Não posso dizer que ele não teria a grande obra que tem se não tivesse sido exilado. Mas, com certeza, morar fora o afetou. Ele sempre o olhar muito ligado ao cotidiano...
E essa, aliás, é a base para seu método de educação e alfabetização, não é?
Exatamente. Então, no Chile, por exemplo, ele fica muito atento à diferença das culturas e disso brota toda a percepção sobre a necessidade de aceitar e acolher a cultura do diferente. Ele ficou muito chocado com algumas coisas e percebeu profundamente que não há um jeito único de exercitar a cultura. Existem vários. Coisas que aqui são normais, ou absurdas, lá são o contrário e isso mexe na sua leitura do mundo. Coisas bem suaves já interferiam no pensar dele, porque o contexto não era mais o mesmo de sua origem. Nos Estados Unidos, no início dos anos 1970, Paulo Freire já se chocava com o preconceito, a intolerância dos norte-americanos com os negros e as mulheres. Era uma sociedade cheia de coisas boas, mas também muito dividida. E isso hoje só aumenta. Mas o olhar dele, lá naquela época, já era para isso e já ali começava, nos trabalhos de Paulo, a introdução da questão da diversidade na educação, do aprendizado com o diferente, com o conflito, com a contradição.
E tudo isso leva ao método que conhecemos, que aceita e aproveita o conhecimento do outro para educar.
Paulo sempre defendeu a troca e o aproveitamento dos saberes na educação. Ele dizia que se devia partir do senso comum para se alcançar a ciência e isso só se faz quando não se nega o outro, o saber do outro e essa era com certeza sua grande arma.
O mundo mudou tanto desde o início da obra de Paulo Freire. O Muro de Berlim caiu, o socialismo é considerado arcaico, mesmo a luta de classes é um conceito quase maldito. Como então essa obra se mantém tão atual?
O fato de não se falar em luta de classes, ou não poder se falar em luta de classes, não se deve ao fato de ela não existir mais. Se deve ao neoliberalismo, que finge que o mundo é um só e que tudo é igual e global no planeta todo. Agora, a gente sabe que isso não é verdade. O neoliberalismo e a globalização, na verdade, só espalharam e dividiram as misérias. O mundo hoje é um mundo muito mais pobre e irascível do que o mundo em que Paulo Freire desenvolveu seus métodos. Acontece que para toda essa situação existe uma reação. As pessoas não aceitam impunemente o que o mundo globalizado está impondo. Essa reação pode ser anti-ética, como essas guerras todas que estamos vendo hoje, mas também pode ser uma reação ética. E é isso que Paulo Freire propõe. Ele, com sua forma de educar, propõe um aperfeiçoamento do ser humano, uma humanização do ser humano. E essa é uma reação totalmente desejável. Portanto, enquanto o mundo for assim, pornográfico, uma das formas de reagir e não aceitar essa brutalidade é formar seres humanos melhores. E parece que o mundo percebe isso, não é só o Brasil. Veja que os livros de Paulo são traduzidos na China, na Coréia, no Paquistão, na Indonésia... e mesmo o coração da racionalidade, a Alemanha, voltou a publicar livros dele depois de mais de 30 anos. Paulo Freire vem se mostrando um antídoto para os retrocessos da humanidade ao longo desses anos todos. E isso certamente vai continuar assim.
Ana Maria, mas se a obra de Paulo Freire é tão conhecida e comentada entre professores e estudiosos da Educação, por que essas pessoas devem ler o livro?
(risos) porque eu enxugando bem – deixando muita coisa de fora – consegui reduzir o livro a pouco mais de 650 páginas. Agora, então, imagine quanta coisa e quantas histórias não estão lá... esse é o maior convite à leitura!