Entrevista com a Profa. Mônica Brincalepe Campo
Sentimos que nos últimos anos houve um aumento na quantidade de filmes brasileiros, entre ficção e documentário, que têm como tema a ditadura militar e o período até 1985. Existe mesmo uma nova geração de filmes com essa temática?
O tema da ditadura nunca passou despercebido. Durante a ditadura, você tem filmes que falam sobre o período de forma direta ou indireta. Logo depois do regime militar, você também tem filmes que falam do período. E hoje, novamente, tem um debruçar-se sobre isso. Então não é uma coisa que foi interrompida em algum momento. O que pode aparentar agora é que tem uma incidência maior, mas aí a gente teria que fazer um levantamento sobre todos os filmes que estão sendo lançados, porque uma coisa é o que está em produção, outra coisa é o que chega – de fato – ao mercado. O que a gente pode dizer é que, só de olhar, aparenta uma preocupação com a reconstituição de memória desse período.
E você tem algum palpite sobre por que estaríamos tão interessados nesse momento histórico?
Acho que há várias discussões que podem ser levantadas. Sobre 1964 e sobre os vários períodos entre 1964 e 1985 e os fatos que estão ali. Quem está discutindo? Como está discutindo? E que tipo de memória está em disputa? A chegada do Lula ao poder e o grupo que o cerca deve ser considerada, e até mesmo a chegada do Fernando Henrique ao poder e do grupo que o cercava. Na época do Fernando Henrique, eu lembro, tinha uma brincadeira que dizia que era o grupo da AP [Ação Popular] que havia chegado ao poder e que agora, com o Lula, era a Libelu [Liberdade e Luta, uma corrente do movimento estudantil da década de 1970] e a CUT. Mas esses grupos estariam produzindo, ou incentivando a produção pelas leis de incentivo? Para termos uma resposta, isso precisaria ser olhado, analisado com mais profundidade.
Mas sem essa pesquisa profunda, mesmo assim a gente pode dizer que existe essa preocupação, esse olhar do cinema para a história recente?
O que eu percebo é que a gente tem uma tônica, nesses filmes mais recentes, que a gente chama de cinema da retomada. O cinema da retomada é um cinema que não tem nenhum arroubo de linguagem, não tem nenhuma grande proposta de diferencial em termos de linguagem. Está dentro das características do melodrama, que dialoga muito com a encenação televisiva, por isso a presença de atores de TV e da Globo em especial.
De maneira que as pessoas que assistem ao filme reconhecem essa linguagem, se identificam com ela?
Existe esse diálogo das narrativas do cinema e da televisão. E, a partir desse encontro privilegiado, manifesta-se o tipo de memória que vai ser construída. No melodrama aparece bem a luta do bem contra o mal, os vilões, o mocinho, os casos de amor... temas recorrentes que vão norteando uma apropriação sobre a história do país.
E a gente pode dizer que a ditadura e todas as suas histórias são um tema que continua instigando as pessoas?
Existem momentos-chave na história do país. Antes do regime militar era o Estado Novo. O governo de Getúlio Vargas e o Estado Novo. Agora temos a ditadura, que é mais recente, embora já tenha 40 anos. E você tem uma geração na casa dos 20 anos que está olhando agora para esse regime que terminou 20 anos antes deles nascerem. A geração que realmente freqüenta cinema – existem dados sobre isso, é essa faixa etária a maioria do público dos filmes – está atenta ao regime militar. Então há uma sedução de público, de faixa etária. Há um re-olhar sobre o regime. E acho que se junta a isso uma crise de perspectivas, uma ausência de respostas. Como é que a gente vai responder aos dilemas do tempo presente? Aí, o jovem hoje fica sabendo de uma geração que achava que tinha as respostas, que acreditava que sabia de um fim. Então você tem lá as propostas socialistas, as propostas de esquerda e as propostas conservadoras e a gente vive uma realidade hoje em relação à qual nenhuma delas dá conta. Voltar-se para esse período é olhar para as respostas que foram feitas, desconstruí-las e pensar respostas atuais.
Encontrar as respostas que foram dadas no passado ajuda a refletir sobre o presente?
Sim. É o tempo presente refletindo sobre o tempo presente. Eu não vou me apropriar daquela resposta, dada no passado, porque ela não cabe mais. Mas eu tenho que saber que ela existia. O problema aqui é outro, é você perceber, dentro de um modelo de melodrama, quem é herói e quem é vilão. E nessa chave ficar trabalhando uma história rasa. Eu não posso trabalhar o passado assim, como uma tábula rasa. Ele é mais sutil, mais complexo. Não tinha só mocinhos e bandidos.
E quando a gente fala de adaptações? Às vezes existem livros por trás dos filmes.
“O que é isso, companheiro”, de Bruno Barreto, foi um dos filmes que mais sofreu críticas a esse respeito. É o filme mais polêmico dos que retrataram o regime. O problema é que o filme distorce fatos. Aí qual é a questão? Em história você pode discutir pontos de vista conflitantes. Eu tenho posturas ideológicas diversas, histórias com perspectivas diferenciadas. Mas ali você tinha fatos que eram deturpados e, na construção dos personagens, uma composição que acabava vilanizando alguns e transformando outros em heróis e isentando tantos outros. Que história está sendo escrita ali? É uma história que tenta se construir tentando apaziguar problemas. E aí, entre as duas personagens femininas do filme, por exemplo, sendo a bobinha ou sendo a machona, o personagem é alguém que tem uma postura política. Eu não tenho ali as perspectivas políticas que estão sendo debatidas. O que elas estavam querendo defender? O que o público entende é que são pessoas de boa vontade e inocentes. Mas não, na verdade eram jovens que tinham um projeto de Estado. Um projeto bem autoritário e que entrava em confronto com o governo. Na verdade, o livro do Gabeira é uma auto-crítica. Ele é, na origem, ambivalente, que também tem problemas. O problema é que cada filme constitui uma memória e, como ele é construído dentro de uma narrativa melodramática, eu fico achando que estou diante de uma janela que me dá a visão da história tal qual ela ocorreu. Esse é o maior problema da história.
O filme parece uma representação...
Exatamente. O problema é que quando eu estou diante de um filme de melodrama, eu acho que estou diante do fato ocorrido. Estou assistindo o fato mesmo. E não é isso.
E o que você diria que estamos assistindo?
Uma produção construída cinematograficamente, que tem ali um viés daquela produção, que vai ser colocado no filme. É uma história dirigida. Então qual é o principal problema para as novas gerações, para os professores e para a sociedade em geral? É como ela recebe isso, como ela vai retrabalhar as questões que vêm dali.
Mas e aí, diante dessa leva toda de filmes sobre a ditadura militar, tendo em vista que boa parte dos jovens assiste sem se dar conta de que aquilo é um melodrama, o que é que vai ficar de memória?
Acho que uma tônica geral que apareceu em quase todos os filmes – mas que também aparece na televisão, nas minisséries Anos Dourados e Anos Rebeldes – é que você tem uma idealização do jovem, como se ele não tivesse capacidade ou possibilidade de posicionamentos políticos. E, mais que isso, como se não houvesse embates entre os vários posicionamentos e no interior de cada um deles também. Disputas ideológicas entre os grupos e internas ao grupo. E aí, a visão que fica é de que os jovens são pessoas autênticas, que se envolvem, que são puras, são apaixonadas. Permaneço trabalhando com personagens idealizados. E o público se projeta neles. Mas essa projeção não significa que eu vá fazer algum movimento, porque eles são inocentes e idealizados. A política se esvazia como campo de atuação da sociedade.
A memória do regime militar pode então estar sendo falsamente constrtuída?
O mais nefasto de “O que é isso, companheiro?” é você construir um movimento de jovens idealistas que não estavam pleiteando nada, estavam apenas lutando contra o mal. Um mal que – de certa maneira – era até um mal necessário, porque aqueles jovens inocentes estavam sendo corrompidos por pessoas ruins. Como se não houvesse ali disputas em campo, propostas de Brasis que estavam sendo construídas. Então o discurso conservador que diz ‘Demos o golpe, porque teria uma revolução socialista no país’ passa a parecer de fato real. Hoje vejo alguns alunos contando a história como se de fato fosse acontecer a tal revolução socialista. E isso é um absurdo. Foi um golpe de direita! Basta olhar os fatos. João Goulart era um dos grandes latifundiários do país, jamais apoiaria a reforma agrária. O que se tem que perguntar é: que sociedade era aquela que apoiou o golpe e que sociedade é essa hoje que conta a história dessa maneira? Se a gente não repensa a política e o espaço de atuação e deixa de idealizar o bem e o mal, eu nunca vou atuar politicamente. Isso é o pior que pode ficar.
O problema é que você despolitiza ainda mais uma geração que já é despolitizada.
Por pura falta de atuação política. E aí o espaço público vai se perdendo.