Para começar desfazendo confusões: o que é a classificação indicativa e por que ela causa tantas críticas e acaloradas discussões?
Essa discussão sobre a classificação indicativa aconteceu em várias nações do mundo. Não é uma exclusividade brasileira. Mas nos lugares que passaram por uma ditadura mais recente, onde a censura de Estado era um mecanismo de repressão, a questão ganha novos coloridos, ganha dimensões mais contundentes. Mas vamos ao início da história. Em 1988, durante a Assembléia Nacional Constituinte, todos os deputados sem exceção decidiram abolir os instrumentos jurídicos brasileiros que determinavam a censura governamental ao livre pensar e ao conteúdo artístico e de entretenimento.
Também para evitar leituras desencontradas, o senhor poderia conceituar o que entende exatamente por liberdade de pensamento e de expressão?
Olha, uma coisa é a liberdade de imprensa, que é defendida no mundo inteiro e é bom que seja assim, a liberdade de a imprensa se expressar é bem protegida por lei. Outra coisa é a liberdade de expressão, que aí diz respeito a conteúdos artísticos e àquilo que chamamos de entretenimento. Em linhas bem gerais, podemos dizer que a liberdade de imprensa garante a expressão do jornalismo. Já a liberdade de expressão é voltada para a concretização do entretenimento.
Quando os congressistas constituintes decidiram acabar com a censura estavam portanto garantindo as liberdades jornalísticas e de expressão com a mesma força?
Quando os deputados sabiamente decidem acabar com a censura governamental, ficou a dúvida a respeito de uma possível manifestação de uma espécie de “agora vale-tudo”, ou se seria efetivamente estabelecido algum outro parâmetro de regulação democrática dos conteúdos veiculados pelas emissoras de rádio e TV. Optaram pela segunda vertente. Ou seja, definiram uma regulação dos conteúdos, mas tiveram o cuidado de propor uma medida que garantisse a liberdade total para o jornalismo. Claro que há alguns dispositivos, como o direito de resposta, por exemplo, que dá chance para que os citados nas reportagens se defendam, caso julguem necessário. O que é legítimo e democrático. Agora, para a liberdade de expressão, foi criado um instrumento regulatório mais claro, com o intuito de evitar problemas com o conteúdo que vai ao ar. E esse instrumento regulatório é o que chamamos de classificação indicativa.
Ou seja, nessa seara específica a censura é substituída pela classificação indicativa.
Exatamente, a classificação é um instrumento do governo federal, regulado por lei federal específica. Mas não é censura.
Por quê?
Porque hoje o governo não tem mais o direito de impedir que um programa vá ao ar. Não pode censurar sequer um trecho desse programa. A censura fazia isso, tinha poder sobre os conteúdos. A classificação indicativa não dá esse poder ao governo. Para deixar ainda mais claro: durante as discussões para se fazer a nova Constituição e, paralelamente a esse processo, discutia-se como deveria ser essa lei que regularia a programação de rádio e TV de forma a garantir a proteção das crianças e dos adolescentes. Então a Carta Magna é promulgada, ratificando que a criança e o adolescente eram e deveriam ser prioridade das famílias e do Estado e que o Estado tinha obrigação de fazer valer os direitos desses meninos e meninas, fornecendo as condições para que eles se desenvolvam integralmente. Essa discussão toda acabou redundando no ano seguinte na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que é a lei federal que regula a programação de TV.
E como o ECA se propõe a fazer isso?
Basicamente regulando horários. Dizendo em que horários determinados conteúdos podem ou não ser exibidos.
E baseado em que o ECA estabelece esses horários? Afinal as rotinas das famílias são muito diversas.
O cinema surgiu no final do século XIX, logo depois veio o rádio e, mais adiante, a TV, então desde o início do século XX, pesquisas realizadas no mundo todo estudam a influência desses conteúdos audiovisuais nas crianças. Especificamente no caso da TV, são 50 anos de estudos sobre essa influência que vêm demonstrando os impactos positivos e negativos dessas cenas e desses conteúdos nas crianças. E há aí um grande destaque para os impactos negativos que a violência e o sexo sem nenhum tipo de informação ou cuidado causam nos menores. Um exemplo disso é uma pesquisa da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que acompanhou crianças durante 30 anos. Quando essas crianças cresceram, aqueles que tinham tido acesso livremente a conteúdos violentos, sem nenhum controle, tinham duas vezes mais chances de se tornar adultos violentos que aqueles que tinham o controle familiar e não tinham podido ter acesso livre a conteúdos violentos. Então, diante de pesquisas como essas, fica claro que o Estado Nacional tem obrigação de agir. E agir como? Criando políticas públicas efetivas e, entre elas, a classificação indicativa.
No caso do Brasil, como funciona isso?
O Estado traduziu essa obrigação criando faixas de horários. Ou melhor, criando um horário de proteção à criança. Portanto, naquele horário, das 18h às 20h, os pais podem ter a certeza de que não vai haver conteúdo nocivo às crianças. Portanto, naquela faixa, os pais não precisam impedir o acesso dos filhos à TV. E mais, ao criar os horários noturnos e fazer com que a programação inadequada para crianças seja empurrada para mais tarde da noite, a gente vai também alimentando um processo de informação dos pais. Porque o Estado brasileiro entende que, estando bem informada, cabe à família decidir o que suas crianças podem ou não assistir. E com essas informações também se pretende subsidiar as famílias a refletir mais sobre o assunto, sobre os conteúdos apropriados para seus filhos.
Portanto aqui ficam claros os dois grandes pilares de sustentação dessa política de regulação.
Exatamente. O primeiro é a questão da saúde pública mesmo, aliás é assim que os outros países encaram a questão, como saúde pública. Saúde porque o Estado tem que garantir o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. E o segundo pilar é esse diálogo pedagógico com as famílias. Porque os Estado entende o direito de decidir das famílias, mas para isso precisa garantir as condições para que essa decisão seja consciente. Outro ponto aqui diz respeito à percepção do Estado sobre a mudança nos tempos. Se antes as mulheres ficavam em casa o dia todo e os homens chegavam às 18h, hoje isso não é bem assim. As mulheres trabalham e, nas cidades grandes, as pessoas acabam chegando em casa mais tarde. Então o Estado precisa proteger as crianças quando os pais não estiverem em casa. Ou seja precisa ser igual a proteção quando os pais estiverem e quando os pais não estiverem em casa.
Voltando então a questão da censura e da classificação. Por que a classificação indicativa não é censura?
O governo brasileiro não pode hoje proibir a exibição de nenhum conteúdo. Nenhum mesmo. Se a emissora quiser transmitir cenas de sexo com animais, pode transmitir. O Estado não pode impedir, nem tirar do ar. O que a classificação faz? Obriga a emissora a empurrar essa transmissão para depois das 23h. Só isso. Ou seja, quando muito o governo pode pedir que aquele programa seja exibido mais tarde, mas nunca poderá impedir que ele seja exibido, ou que seja tirado do ar, ou cortado.
A grande preocupação é com sexo e violência. Mas quem vai dizer o que é sexo e o que é violência? E por que os pais devem confiar nessa classificação?
Olha, quando o governo decide enviar o conteúdo inadequado para mais tarde, não faz isso por moralismo, ou porque alguém lá dentro do governo acha que isso é o mais adequado. O governo faz isso baseado em pesquisas que, há anos, vêm mostrando que cenas de sexo e de violência geram impacto nas crianças. Um impacto que não soma em nada para o desenvolvimento dessas crianças. É tudo baseado em pesquisas.
Mas é difícil convencer uma emissora do que é violento e do que não é tão violento assim...
Em vários países e inclusive no Brasil, a decisão é da empresa, ou seja, a emissora se auto-classifica. É a emissora quem diz se o programa tem cenas de sexo ou de violência. O governo só monitora e, caso a empresa infrinja a lei, é notificada pelo governo. Notificada apenas. Nada sai do ar, nada é cortado. E se a emissora for reincidente e for advertida, ainda pode recorrer à Justiça. Todas as ferramentas legais estão à disposição das emissoras. E convenhamos que dizer se um programa tem cenas de violência ou de sexo não é uma tarefa tão subjetiva assim. Sexo é sexo e violência é violência e não é preciso ser nenhum doutor ou expert para dizer isso. Um cidadão comum, minimamente bem informado, sabe dizer isso. Então essa conversa de que os critérios são subjetivos é para confundir a cabeça das pessoas. E esse discurso precisa ser desconstruído.
Agora, se tudo é tão simples e as punições tão brandas e fáceis de cumprir, qual é a eficácia da classificação indicativa? Como as emissoras vão se sentir no dever de cumprir a lei e respeitar as crianças e os adolescentes?
Olha, as emissoras vão sofrer um desgaste muito grande por parte da sociedade se começarem a descumprir sistematicamente a lei da classificação indicativa. Por duas razões. Primeiro porque os símbolos de exibição – aqueles que dizem se o programa é livre, ou é recomendado para crianças, ou é recomendado para maiores de determinada idade – já estão ficando muito conhecidos da população, que vai passar a se apoiar nisso, de um jeito ou de outro. Portanto, se a emissora descumprir, a população vai saber. E a outra razão é que as emissoras já vêm há algum tempo adotando um discurso de responsabilidade social empresarial, o que toda a sociedade acha bom. Então, se começarem a descumprir a classificação, esse discurso do social acaba caindo por terra e acho que as emissoras não desejam isso. Agora, há ainda uma grande incógnita que a gente não sabe ainda aonde pode dar, que é a atuação da Justiça. O Ministério Público Federal vai começar a acionar as emissoras que descumprirem a lei e a punição, de acordo com o ECA, começa com uma coisa pequena de pagar uns poucos salários mínimos, mas pode ir até a suspensão da programação por alguns dias. Então vamos ficar de olho para ver o que acontece nesse setor.
Quando o senhor fala em confundir, em discurso, o senhor está falando da estratégia das emissoras para se defender da classificação indicativa? E isso inclui dizer que a classificação é censura, que jornalismo e publicidade também serão regulados, é isso?
Olha, num país que viveu há muito pouco tempo a violência de uma ditadura e da censura, toda vez que alguém fala ‘é censura!’ é como se tivesse um rato nessa sala. Todo mundo grita e sai correndo. E para que serve esse grito? É uma cortina de fumaça. Serve para encobrir os pontos mais importantes de um debate.
Mas é bom que as pessoas se arrepiem quando suspeitam de censura, não?
É ótimo. Ficar de olho nisso é fundamental para o bom andamento da democracia. Os meios de comunicação podem e devem ser regulados. E aí se há suspeita, se investiga com lupa. E se não há censura, deve-se seguir adiante. Mas aqui o que acontece é que não há censura, mas a discussão também não avança. Esse discurso da censura e de confundir o que está sob a mira da classificação indicativa e o que não está emperra uma discussão importante, que pode trazer muitos avanços para a democracia brasileira.
Para continuar desfazendo a cortina de fumaça: quais os programas que estão livres de classificação indicativa?
Os programas jornalísticos e os programas ao vivo. Quer dizer, os ao vivo se auto-classificam e são monitorados pelo governo. Mas os jornalísticos são totalmente livres. E a publicidade também é livre, desde que seguindo as regras da regulamentação da área, que impede por exemplo a propaganda de cigarros, ou remédios.
Voltando então aos avanços. O senhor disse que a discussão poderia avançar. Mas para onde?
Se você reparar, a discussão sobre a política de controle, ou mesmo de concessão dos meios de comunicação é muito incipiente do ponto de vista do de debate público. E por quê? Porque a discussão não está na agenda da mídia, da imprensa, porque o assunto fere a ela mesma, a corta na própria carne. Por isso o debate não prospera. Agora veja, a nossa lei de telecomunicações é de 1962, está fazendo 45 anos. Nenhum país democrático tem uma lei de telecomunicações com 40 anos. Nos Estados Unidos ela é de 1996 e com revisões a cada dois anos. Na Inglaterra, a lei é de 2001. Ou seja, esse debate da classificação indicativa é muito importante, claro. Mas ele é só a ponta do iceberg. Nosso instrumento legal que regula o setor é obsoleto. As telecomunicações evoluem a cada ano e sem nenhum juízo de valor sobre como deveria ser essa lei, uma lei de 45 anos nessa área está obsoleta, ninguém consegue mais defendê-la, nenhuma parte envolvida sustenta que esteja bom assim.
E quanto ao aprofundamento da discussão sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e a mídia?
Do ponto de vista da educação existe um problema grave. No Brasil, salvo honrosas exceções, a escola ignora solenemente a televisão. Fica lá ensinando quais são os afluentes da margem esquerda do Amazonas – informação que pode ser encontrada em qualquer atlas, ou na internet e que nem sei para que serve – e não alfabetiza seus alunos para a relação e o consumo da mídia. O estudante precisa conhecer como é o processo de construção daquilo que ele vê na TV, porque aqueles conteúdos influenciam muito a vida dele, causam impactos. Às vezes o que ele apreende da TV é sua maior bagagem e isso precisa ser respeitado. Ele não precisa achar que cada notícia é uma conspiração, mas deve ser informado sobre por exemplo como é construída a pauta, como a questão do tempo é cruel e como a escolha da fonte condiciona a versão que vai ser noticiada.
E aí o senhor vê um papel específico para as TV públicas, uma espécie de contraponto?
O modelo de TV pública e TV comercial deveria ser de complementaridade. Ou seja, o que uma não oferecesse, a outra deveria apresentar e assim o cidadão estaria contemplado de qualquer maneira. A TV pública por excelência, que é a BBC da Inglaterra, existe para garantir a maior independência possível em relação ao governo e aos anunciantes, por exemplo. Ou seja, uma TV pública deveria ter compromisso com o cidadão. Agora é importante diferenciar cidadão de telespectador. Nem sempre o telespectador quer ver e assistir aquilo que é melhor para o cidadão. São conceitos diferentes. E a TV pública deve ser feita para o cidadão. Em outras palavras: a TV comercial, embora seja obrigada a respeitar algumas regras, normalmente funciona sob a lógica comercial, o que garante o mínimo de cumprimento da regulação prevista em lei. A TV pública deve oferecer mais que o mínimo, deve dar um salto para além do mínimo e assim atender o cidadão no sentido integral da palavra. Acontece que essa discussão é antiga e o Brasil está chegando a ela com 50 anos de atraso. A boa notícia é que quem está à frente da questão no país, o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, é uma pessoa consciente. Vamos ver como ele vai conduzir o assunto. Uma questão importante é que para respeitar o cidadão, a TV pública deve ser plural. Quanto mais plural, mais respeitosa com a cidadania. Ou seja, não é porque é uma TV pública que os jornalistas da emissora só devem ouvir a sociedade civil organizada. Devem ouvir os artistas, os radiodifusores e todas as partes envolvidas, para ampliar o nível de pluralidade e de profundidade nas discussões.