Como a senhora avalia e define o filme?
Impactante. Tropa de Elite é um filme impactante e que se torna ainda mais dramático quando lembramos que ele retrata a realidade do Rio de Janeiro. É isso que a gente vive aqui diariamente. E é evidente que a gente convive e sabe dessa realidade. Mas ver isso transportando para a tela do cinema de uma maneira assim tão dramática e tão viva, causa um impacto grande. E o filme só causou assim tanta discussão, tanta repercussão porque não é uma obra de ficção, é um retrato da realidade.
A repercussão se dá também por conta dos sentimentos que o filme desperta?
É, ele provoca os sentimentos mais diversos e pode ser visto e entendido de muitas maneiras, depende do espectador. Se a pessoa se identifica com uma visão política e ideológica mais à direita, então ela aplaude e entende Tropa de Elite como uma glamurização da tortura e da violência como forma de combater o tráfico de droga. Já se o espectador é afinado com um olhar político e ideológico mais à esquerda, então ele entende que é salutar dar voz à polícia, deixá-la mostrar suas armas e seus métodos e, a partir daí, discutir. Portanto, o debate seria salutar.
Mas as pessoas mais progressistas e mais ligadas aos direitos humanos estão acusando o filme de ser fascista, justamente por legitimar os métodos ilegais da polícia, a tortura e a violência.
Primeiro, o filme é uma obra de arte. Ou seja, livre para tratar de seus assuntos. Mas as obras de arte também têm como missão retratar a realidade que a cerca. E esse filme, à medida que expõe essa realidade, levanta o debate, provoca discussão. Os olhares são múltiplos. Agora, como a pessoa vai interpretar tudo isso, depende fundamentalmente da formação de cada um. Há quem aplauda, há quem critique. Na pré-estréia, no Cine Odeon aqui no Rio, as cenas de tortura chegaram a ser aplaudidas de pé. Certamente quem aplaudiu essas cenas entende que a tortura é um método eficaz de combater a criminalidade. Claro que nós não concordamos com isso, mas há quem concorde.
O que é pior, uma polícia que lança mão desses métodos, como a agressão e a tortura, ou uma população que aplaude essa postura?
Olha, ambos. Mas o problema real passa mais pela de que quem vê uma cena dessa e aplaude não conhecer nada sobre segurança pública, sobre como pode se dar o policiamento e sobre as variadas formas de se combater a criminalidade de uma maneira mais eficaz e dentro da lei.
O que a senhora está dizendo é que as pessoas apóiam esse tratamento dado pelos policiais porque não sabem que existem outras maneiras de combater a criminalidade?
Para um morador comum do Rio de Janeiro, a sensação é de que a situação chegou a um nível tão grave, tão sério que eles passam a acreditar que aquelas ações dos policiais do Bope são a única forma de controle do crime. Agora, como eu já disse isso depende da formação de cada espectador. Para quem está no limite do medo, o filme surge como uma mensagem de que há solução. E isso é perigoso. Esse olhar é o mais perigoso, o que legitima que os fins justificam os meios. Isso é preocupante.
É preocupante porque faz do Bope o herói da situação...
Sendo que o Bope é aquela instituição que a gente já conhece. Na abertura do filme, o capitão Nascimento afirma que se não fosse pelo Bope, o Rio de Janeiro estaria dominado pelo crime. Quem é leigo e está naquela posição que falei, ouve isso e se apóia nessa ponta de confiança. Mas nós, que estudamos a segurança pública, precisamos olhar para essa afirmação com o maior rigor crítico, porque a gente conhece como funcionam as ações policiais, inclusive as do Bope, no Rio de Janeiro. Elas são ações pontuais, em que os policiais prendem integrantes dos grupos que trabalham para o tráfico de drogas, mas, no fim de tudo, a situação continua igual.
A mais recente delas aconteceu em 27 de junho último.
Exatamente, deixe eu relembrar, porque às vezes as pessoas esquecem e eu escrevi um artigo sobre isso. No dia 27 de junho, os policiais subiram o morro e invadiram a Favela do Alemão. Eles entraram, mataram 19 supostos integrantes de grupos de traficantes e nos muitos dias que se seguiram foram mais 11 pessoas, até totalizar 40 mortos. E entre elas, uma criança que estava no colo da mãe. A gente já sabe que 24 horas depois da invasão, os traficantes, digamos assim, desfilavam nos mesmos pontos de sempre com suas armas em mãos. Ou seja, essa ação é uma prova do tratamento desrespeitoso com a comunidade, os policiais entram, mostram sua cara e sua força, matam, apreendem algumas armas para, no dia seguinte continuar tudo igual. Ações sem sustentação nenhuma.
Mas o filme não fala disso...
Não, o filme não levanta essas questões, porque legitima o policial falando de seu trabalho. É importante dar voz à polícia, é legítimo, claro, porque tudo isso suscita o debate público sobre a questão. E é a hora de aproveitar essa grande oportunidade para discutir a eficácia dessas ações, que causam uma dor enorme, provocam a morte de muitas pessoas sem nenhum envolvimento com o tráfico e, pior, não resolvem a situação.
Outros filmes recentes, como Cidade de Deus e Notícias de uma guerra particular, também tratam da relação da polícia com o tráfico. É possível fazer uma comparação entre os filmes?
Cidade de Deus mostra os jovens envolvidos com o tráfico, é o tráfico quem fala. Notícias e Tropa trazem a opinião do mesmo personagem, o capitão Pimentel, autor do livro Elite da Tropa e consultor do roteiro de Tropa de Elite. É o mesmo personagem retratado na vida real e na ficção. A grande diferença é que Notícias dá voz aos vários atores, aos líderes, aos policiais e aos traficantes, enquanto que Tropa não, só dá a versão da polícia. E há um problema sério no filme, que precisa ser relembrado o tempo todo. O livro foi escrito e o filme retrata o Rio de Janeiro de dez anos atrás, quando o fenômeno da corrupção era realmente bem mais incomum do que é hoje. E esses dez anos fazem toda a diferença. Se naquela época o Bope era tido como uma instância quase incorruptível, imune à corrupção, hoje não é mais assim. Nos últimos 10 anos houve um casamento perverso entre as drogas, as armas e corrupção da polícia. E a corrupção no Bope certamente agravou o quadro que se instalou no Rio de Janeiro na década de 1990. Como o filme fala de 10 anos atrás, mostra um Bope incorruptível. Mostra uma PM corrupta e o Bope como uma instância imune à corrupção, o que está longe de ser verdade.
O Capitão Pimentel comentou em uma entrevista recente que as pessoas, depois de verem o filme, o cobravam muito em relação à corrupção. Achavam inadmissível a polícia aceitar suborno. O que chamou a atenção dele é que ninguém o recriminava pela tortura praticada por sua equipe. Isso não é chocante?
É chocante sim, e é curioso lembrar que na ditadura militar, que acabou há pouco mais de 20 anos, a tortura incomodava tanto porque eram os filhos da classe média que estavam sofrendo as agressões. Hoje o assunto caiu no esquecimento porque são os pobres quem sofrem a tortura. E mesmo depois da gritaria da ditadura e da legislação específica para a tortura o método continua sendo empregado. Certamente os policiais acreditam que ele seja um método eficaz, em que os fins justificam os meios. Pior é que não são só os policiais, setores da população acreditam que a tortura é realmente uma maneira de combater a criminalidade. A população do Rio vê que essa é uma polícia que não soluciona crimes. Dados do final do ano passado mostram que a polícia fluminense esclareceu menos de 1% dos homicídios ocorridos no estado. Quando se olha para esse quadro de ineficiência e esse nível de impunidade, setores chegam a aceitar a tortura como ferramenta para esclarecer crimes, por exemplo. Já que pelos meios técnicos, científicos e pela investigação competente não se soluciona nada, talvez pela tortura vá.
Mas a condenação da tortura não deveria ser algo contundente na ação das pessoas, justamente por conta da ditadura?
Ah sim, mas falta aos brasileiros conhecer a história recente e ter a consciência de que é preciso tratar com respeito todos os seres humanos, mas aqui temos uma sociedade muito hierarquizada, com cidadãos de primeira, segunda e terceira classes e até os não-cidadãos. E pior, isso é aceito por nós. A gente aceita que existam pessoas que não têm direitos. Não têm direito à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, à justiça etc. e, para uma parcela da população, não há nada de errado bater nesses não-cidadãos para solucionar crimes. Isso é grave.
Se faz despertar esses sentimentos de apoio ao desrespeito aos direitos humanos, Tropa de Elite é um filme que contribui com a construção de uma sociedade mais justa?
Sim, porque, primeiro, o filme impulsiona múltiplos olhares e não só esse que defende a tortura. E o mérito do filme é provocar uma discussão pública, que já acontecia, mas não com essa força e essa oportunidade. E até as cópias piratas contribuem, porque levam o filme a lugares aonde ele certamente não chegaria. E as pessoas mais pobres podem ter acesso. E quando elas vêem, elas gostam, porque se sentem representadas.
E chega a ser uma ironia essa história da pirataria...
(Risos)... É, se eles não combatem nem o crime mais violento, vão conseguir combater a pirataria...
A senhora vê saídas para a situação?
Vai depender de como o debate público for conduzido, porque temos aí uma rara oportunidade de discutir Direitos Humanos a fundo, sem aquela cantilena de que Direitos Humanos defendem bandidos. Temos uma situação muito séria em relação à criminalidade e os criminosos têm direito à justiça como qualquer outro cidadão. E se não combatermos essa criminalidade dentro da legalidade, seremos todos criminosos e aí é que não há saída mesmo.