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Olhar iraquiano sobre a guerra

Por Francisco Bicudo

Acompanhei pela Rede de Televisão Pública (RTP) portuguesa – a mesma que já havia “furado” a rede CNN ao transmitir os primeiros momentos dos bombardeios sobre Bagdá – a cena que muitos consideram o marco simbólico do fim do regime tirano de Saddam Hussein. A multidão ensandecida, em catarse, empurra a base da estátua, que resiste. Um soldado norte-americano tenta cobrir o rosto de Saddam Hussein com a bandeira dos Estados Unidos, mas o vento não permite que ela fique presa. Puxada por um tanque de guerra, a estátua balança, balança, finalmente se parte e se despedaça no chão. Braços erguidos, grito em uníssono, o povo comemora. São miseráveis esfarrapados, submetidos a décadas de privações e bloqueios econômicos, aos assassinatos do regime e às imposições dos impérios ocidentais, sem comida, remédios, moradia – e quase sem esperança.

Com os rostos marcados pelo sofrimento, as roupas em frangalhos e os pés descalços, chutam a estátua caída. Batem nela com chinelos de dedos. A confusão faz passar desapercebida uma cena que, se congelada, poderia representar a mensagem que o povo iraquiano enviava naquele exato momento: num canto da tela, em pé, apoiado por algum objeto que não se conseguia ver, próximo do que restou da base da estátua, um anônimo civil, provável morador de Bagdá, agitava freneticamente a bandeira iraquiana, nas cores vermelha, preta e branca, com as estrelas verdes em destaque. Era como se quisesse dizer ao mundo: “não queremos Saddam, mas também não aceitamos os Estados Unidos. Nos deixem reconstruir o Iraque com nossas próprias mãos”.

Ao que tudo indica, e acompanhando o desenrolar dos acontecimentos, o desejo daquele anônimo iraquiano jamais será atendido. O Império norte-americano, sustentado pela Doutrina Bush – que identifica os EUA com o bem, prevê a punição a todos os Estados “do mal” que não seguirem os valores proclamados pela “democracia” norte-americana, fala no “direito” a ataques preventivos e garante que não será tolerada qualquer ameaça ao poderio bélico do tio Sam – já articula a partilha do espólio iraquiano. Intelectuais, estrategistas, ministros e o poder do Estado voltam todas as suas atenções e preocupações para a proteção dos poços de petróleo e para as grandes obras de infra-estrutura que serão necessárias para reerguer o país – enquanto isso, cerca de 160 mil peças assírias, sumérias e persas do Museu Nacional de Bagdá, algumas com mais de cinco mil anos, eram destruídas ou roubadas.

Os grandes conglomerados norte-americanos agradecem, principalmente as gigantes petrolíferas – não por acaso, um dos pólos referencias de sustentação e origem do governo de Bush filho. A intenção é criar na região um território-colônia, um protetorado submisso às ordens de Washington, fincando bandeira (talvez apenas a primeira) em região estratégica para os planos de dominação em escala mundial do Império. Às favas com a Organização das Nações Unidas, com as regras do direito internacional, com o multilateralismo e as soluções diplomáticas e negociadas. Na visão dos EUA, a força faz e impõe a “lei e a ordem”.

O script está se tornando cada vez mais conhecido, e tem se mostrado eficiente na tarefa de preparar o terreno e convencer a opinião pública norte-americana: começa com alertas e ameaças de sanções econômicas, parte-se para a associação imediata com as ações terroristas, acusa-se (mesmo sem apresentar provas) tal ou qual de produzir “armas de destruição em massa” e de ser um “risco para as democracias do mundo”.Daí para a invasão e os ataques bélicos pode ser apenas uma questão de tempo para se deslocar as tropas e os marines. Acusada de esconder dirigentes do regime iraquiano e de armazenar as tais armas químicas e biológicas, a Síria parece ser a bola da vez. Tempos de incerteza e caos se anunciam.

Se fosse vivo, o folclórico – mas sábio – saudoso Mané Garrincha das pernas tortas perguntaria: tá legal, mas já combinaram com o povo iraquiano que vai ser assim? Parece que não, ao menos se levarmos em conta relatos minimamente independentes que nos chegam do front. Os saques e as pilhagens são uma pequena amostra do que está por vir. A primeira reunião dos “dissidentes” do regime – que, aliás, foi boicotada por representantes dos curdos, povo que habita o norte do Iraque – serviu apenas para marcar a próxima reunião, tamanha a quantidade de divergências manifestada. Terão mesmo sido controlados os milicianos e ataques suicidas? Ou Bagdá e todo o Iraque correm o risco de se tornar uma nova Palestina – área em eterno conflito? Quem assumirá o controle? Generais americanos que de costumes e princípios muçulmanos nada entendem? Os xiitas, parcela mais numerosa e representativa da população? E os líderes tribais, o que dizem? Como imaginam essa reconstrução? Será que o país irá se fragmentar em uma série de novas nações? E agora? Quantos Bin Laden terão nascido por conta do massacre sobre o povo iraquiano? O que será do Iraque e de seus habitantes depois dessa mudança brusca e violenta de regime? Aliás, mudança para que regime?

Para tentar buscar respostas para algumas dessas indagações – complexas e muitas vezes sem sentença definitiva, admitimos –, o SINPRO-SP abre espaço para um olhar iraquiano sobre o conflito. Professor titular do Instituto de Física da USP, Mahir Saleh Hussein, xará do ditador desaparecido, nasceu no Iraque há 58 anos, onde se formou pela Universidade de Bagdá. Vive no Brasil desde outubro de 1971, depois de passar pelos Estados Unidos, onde fez pós-graduação no Massachussets Institute of Tecnology, o MIT. Sem conseguir falar com a família que vive na capital iraquiana – “quando tento ligar para o celular da minha irmã, vem uma mensagem em inglês que diz que todas as ligações para aquele país estão proibidas”, o professor Hussein alerta: “Os iraquianos não suportam os EUA e a Inglaterra, um governo deles não ia prosperar. A democracia tem que surgir de dentro. Não adianta ser imposta”.

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