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Entrevista com o professor Nilson José Machado

Começamos fazendo o papel daquele aluno que não consegue ouvir falar em equações e geometria.... matemática pode ser legal?
Eu tenho certeza que sim. A matemática é uma forma de expressão e de comunicação, como tantas outras. É um sistema de representação da realidade exatamente como a língua. As pessoas nascem aptas a aprender a língua e, por isso, se fornecêssemos os instrumentos corretos para todos os seres humanos não haveria pessoas analfabetas em relação à língua materna delas, certo? O mesmo acontece com a matemática. Todos os seres humanos são capazes de se expressar em matemática. Basta que para isso a gente forneça as ferramentas. Mas a potencialidade está lá.

E por que afinal essa potencialidade muitas vezes não se concretiza?
Não acontece por uma série de razões. Em relação ao caráter técnico, precisamos, de novo, falar da língua. A matemática, ao contrário da língua oral, não tem oralidade própria. Se eu falar A2, isso pode soar como A ao quadrado, ou A vezes dois. O que eu quero dizer é que não há uma oralidade natural na matemática, ela é uma linguagem escrita. Já a língua não. A língua se apóia no oral, que é o aprendizado primeiro dos nascidos em determinado lugar. A escrita se refere a um signo já conhecido e identificado na oralidade. E acredito que é aí que mora a dificuldade. A criança pode ficar assustada ou sem referência por não ter esse apoio no oral.

Isso tem solução?
Tem sim. A solução passa por ensinar as crianças falando matemática, lendo matemática e escrevendo matemática. Não como um “matematiquês”, mas sim com um apoio firme na língua materna. A solução é ensinar matemática de uma maneira bem próxima da língua materna, porque já que a matemática é uma linguagem que só se escreve, ela precisa de um apoio de uma linguagem que se fale, se ouça, se escreva, se leia. E o melhor é que essa língua seja a nativa de cada um, porque aí aquela sensação de não reconhecimento, ou de falta de amparo em algo mais familiar, vai embora e a criança reconhece a língua e aprende matemática. Por volta dos 3 ou 4 anos, o interesse da criança pela língua e pelos números é igual. Crianças dessa idade não têm medo dos números. Isso começa a mudar quando ela entra na escola. Porque na escola, a língua materna e a matemática são separadas. Essa é a raiz da dificuldade. Eu desenvolvo essa idéia em Matemática e Língua Materna, que foi minha tese de doutorado e, mais recentemente, o especialista em programação neurolingüística Keith Devlin lançou O gene da matemática. Nesse livro ele trata exatamente de como a habilidade de pensar matematicamente surge do mesmo processo de manipulação de símbolos que é crucial para o desenvolvimento da fala. Por isso, a solução para essa falha técnica é trabalhar essas duas disciplinas juntas e, assim, promover um aprendizado da matemática e do português com a mesma facilidade.

Na prática, como o professor pode ensinar matemática na sala de aula aproximando-se do português? Há exercícios específicos?
Quando se ensina matemática para uma criança, o percurso para se chegar à linguagem simbólica é muito rápido. O que eu sugiro é que esse percurso seja um pouquinho mais demorado, para que exista um estágio intermediário, mais trabalhado, até que se saia da língua materna e se chegue à linguagem matemática. Vou tentar dar um exemplo. Veja a palavra metade. Ela é um conceito bem palpável e conhecido. O aluno desde pequenino conhece e come a metade da maçã, toma metade do suco. Se o professor se detiver um pouco na palavra, explorar suas possibilidades e significados antes de apresentar e trabalhar com o 1/2 - que é um conceito muito mais distante do aluno -, talvez fique mais fácil para a criança compreender que se trata da mesma grandeza e, portanto, de algo conhecido, próximo. Isso esvazia um pouco aquele temor pelo desconhecido que pode emperrar o aprendizado da matemática. Os jornais compreendem bem essa necessidade de aproximar matemática e português. O jornalista, por exemplo, nunca escreve 5.000.000.000. Ele escreve 5 bilhões. E não é um problema de tamanho de texto, ou de espaço, se não ele escreveria em notação científica. Mas aí é que ninguém entenderia nada mesmo. A palavra bilhão nos dá uma dimensão de grandeza, de muita grandeza. E o jornalista percebe isso. É dessa percepção que o professor carece às vezes, de compreender o apoio que a língua pode dar. Outro exemplo é na geometria. Se o aluno entende que penta significa cinco, porque a língua lhe oferece esse conhecimento, e o professor se detiver um pouco nisso, fica mais fácil entender o que é um pentágono, um triângulo e assim por diante.

Temos então um impasse nas escolas, porque nos colégios o português é inimigo da matemática. São disciplinas que andam separadas. Aí como se resolve isso?
O impasse não está no fato de serem disciplinas separadas, porque separar os assuntos por disciplinas é a maneira de a escola organizar o conteúdo. Isso não é um problema. O problema acontece porque não há diálogo entre as disciplinas. Não só entre a matemática e o português, mas entre todas as disciplinas. Se elas conversassem mais daria para colocar uma ao lado da outra, uma completando a outra, e não sendo colocada contra a outra.

Mas uma queixa comum dos alunos, quando explicam suas dificuldades com a matemática, é que se trata de uma disciplina que pede muita abstração. e nem sempre abstrair é fácil.
Isso é uma verdade e uma não-verdade, porque a abstração existe, mas não deve ser impedimento para o aprendizado. De novo vamos voltar à língua materna. A linguagem oral pode ser tão ou mais abstrata que a linguagem matemática. O nome de um objeto não tem nada a ver com o objeto em si e sua representação gráfica também não tem ligação lógica. A representação gráfica do A não tem ligação natural com o som do A e todos nós fomos capazes de aprender com essa abstração. Além disso, a representação numérica, por vezes, é muito concreta. Em alguns sistemas a representação do número 1 é um pauzinho. A do 2 são dois pauzinhos. A do 3 são três pauzinhos e assim por diante. Isso é bastante concreto. Então o que temos que pensar é que a abstração existe e sem ela não conseguiríamos conhecer e nem pensar em muitas coisas, então ela é uma facilitadora do aprendizado. Agora, o que ela não pode é ser encarada como um fim. A abstração deve ser um meio para se alcançar o conhecimento, para se entender uma coisa complexa. É apenas uma simplificação.

Ainda parece um tanto abstrato. O senhor pode dar um exemplo?
Claro. Uma máquina é um mecanismo muito complexo, cheio de variantes que influenciam no seu funcionamento. Então, o que a gente faz é imaginar, abstrair que essas variações não existem para, assim, poder compreender o conceito. Então a gente imagina que se trata de um plano inclinado e que o objeto vai se deslocar ali sem atrito. Na vida real isso não existe, mas a gente pode abstrair que o atrito não está ali para entender como funciona esse deslocamento. A abstração foi um meio para se chegar a esse fim. O que acontece é que muitas vezes as abstrações se tornam fim e aí o processo não se realiza. Outro exemplo são os logaritmos. O professor de matemática ensina porque tem que ensinar, está no currículo, mas ele já esqueceu do por que tem que ensinar. Logaritmo é uma abstração que ajuda a trabalhar com grandezas. Quando eu ensino e pronto, a abstração do logaritmo vira um fim e o aluno deixa de aprender. O aluno deveria alcançar, por exemplo, que a escala Richter, que mede terremotos, é baseada em logaritmos. Assim, quando o terremoto marca 6 ou 7 na escala, ele saberia que a diferença não é de um ponto apenas, como se poderia supor olhando o 6 e o 7, mas sim de 10 vezes mais, pois se trata de 106 ou 107. E isso faz toda a diferença.

Essa percepção de que a abstração é um meio serve para outras disciplinas também?
Serve para tudo. As histórias em quadrinhos ou os contos de fada também são abstrações. Têm dragões, grilos falantes, tranças gigantescas. Se você olhar para a história como um fim nela mesma, o conto de fadas se torna ridículo. Mas se você entender que o conto é um caminho para se alcançar valores, papéis, lições de moral, aí ele ganha sentido. É um portal para o conhecimento e não o conhecimento em si.

Vivemos num tempo em que os aparelhos tecnológicos têm muito espaço e parece que essa esfera eletrônica tem uma conversa importante com a linguagem matemática. Por exemplo, a linguagem dos computadores é composta de números, o 1 e o 0. O senhor acha que essa proximidade pode ajudar a despertar o interesse pela matemática entre os mais jovens?
Olha isso é uma verdade que pode fazer rir ou fazer chorar. A tecnologia, definitivamente, é um meio e nunca um fim. Se ela for pensada como fim, ela só piora as coisas. E, claro, se você sabe aonde quer ir, a tecnologia te ajuda a chegar mais rápido lá. Mas se você não sabe, ela pode levar você mais rápido também para o lugar errado. Então se a pessoa sabe o que quer, sim, a tecnologia é uma aliada. Se não sabe, aí ela vira refém. E acho que hoje as pessoas não querem muito saber como funcionam as tecnologias. Querem ligar e querem que funcione direito. Mas, de um modo geral, as pessoas não sabem nem como funcionam os quatro controles remotos que elas têm em casa e também não têm nenhuma curiosidade em saber como é.

Então o que é que desperta essa curiosidade?
No caso dessas novas tecnologias, uma imagem bonita, mais colorida e brilhante. E desse ponto o professor pode partir para uma discussão sobre a quantidade de pixels num televisor comum e um de cristal líquido. É a mesma coisa que as notícias dos jornais. Elas não são por si só matemáticas. Elas chamam a atenção por razões variadas e cabe a nós, professores, termos o olhar que faz a ligação entre o que chamou a atenção e o conteúdo de sala de aula.

E os professore de matemática estão sendo bem formados?
Eu venho trabalhando há muitos anos com formação de professores, então fico muito à vontade para falar que não. Os professores não têm tido boa formação. E o problema não está nos cursos de formação, está mais nas condições de trabalho nada boas para os professores e ainda piores na rede pública. Eu estou falando de jornadas de 30 ou 40 horas semanais, de professores com dois ou mais empregos para garantir uma renda melhor. Quando consegue um salário melhor, não significa que tenha conseguido uma condição melhor. E também, quanto mais bem formado é o professor, menos ele quer estar na escola básica. Se ele é bem formado, ele vai querer fazer qualquer coisa, menos voltar para a sala de aula do ensino infantil e fundamental. Então a discussão não é promover uma formação urgente e para todos. É melhorar as condições de trabalho para que esses bem formados voltem e para que os outros se sintam motivados a continuar ali na escola básica. Porque hoje o que acontece é o oposto. A condição é ruim, então o professor falta demais, fica afastado em licença médica que nunca acaba... A proposta é que seja então uma via de mão dupla: você oferece uma melhor condição e cobra um maior comprometimento do professor. Se só isso for feito, logo dá para filtrar os aventureiros, os que não levam a profissão a sério. É preciso que, para dar aula, o professor entenda que ele é um profissional da educação e que essa escolha demanda dedicação.

Se alguém se animou e resolveu iniciar 2008 lendo bons livros sobre matemática, para ventilar as aulas, encantar os alunos... o que o senhor recomenda?
Por sorte há muitos livros bons sobre matemática. Eu sugiro Teorema do papagaio, de Denis Guedj, O diabo dos números, de Hans Magnus Enzensberger, O homem que calculava, clássico de Malba Tahan e Número: a linguagem da ciência, de Tobias Dantzig. Todos eles fazem o que o professor pode fazer de melhor na sala de aula: apresentar a matemática de uma forma viva, humana e – por favor – com contexto.

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