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Entrevista com a psicóloga Lucélia Paiva

Mortes na família sempre aconteceram, mas tudo indica que vivemos num tempo em que esse fantasma parece estar mais perto. Diante disso, como falar da morte para crianças?
Bem a primeira coisa que precisamos lembrar é que, em geral, a gente deixa para falar com a criança sobre a morte de alguém depois que essa morte já aconteceu, então ela fica sempre marcada por esse peso da dor. Se esse fosse um assunto mais recorrente, se a gente trouxesse esse tema mais para perto da gente, para o nosso cotidiano – porque, afinal, ela faz parte da vida – a gente livraria um pouco esse a relação pesada e imediata com a dor. Mas, digamos que já tenha ocorrido a tal perda, como lidar com ela então? Começando exatamente por essa questão da vida. É preciso explicar para a criança que a morte é o último momento daquele famoso ciclo da vida, onde todo ser vivo nasce, cresce e morre. Aí começam as explicações acerca desse último momento, deixando bem claro para o menino ou a menina que quem morre não volta mais, que o coração pára de bater, que aquela pessoa não sumiu, mas sim morreu. E falar assim, com as palavras certas.

A senhora disse que a morte é um assunto difícil para as sociedades, principalmente no ocidente. Temos uma grande preocupação em relação ao que vai acontecer conosco, com a idéia da vida eterna. É por isso que as pessoas se afastam do tema e evitam fazer da morte um assunto recorrente?
A gente vive num tempo em que o ritmo que adotamos fez com que várias coisas ficassem descartáveis. Somos altamente consumistas, temos uma vida agitada, buscamos freneticamente a satisfação no trabalho e esquecemos, assim, de nossas origens, nossas raízes. O culto à beleza e à juventude vem crescendo tanto que as pessoas já não admitem mais envelhecer e aí, o espaço para conhecermos o que pensam os velhos, suas angústias e seus medos diante da iminência do fim vai diminuindo e vamos afastando cada vez mais o contato com essa finitude natural. Por isso, a primeira providência de alguém que tem um parente sem chance de cura, ou já em estado terminal, é interná-lo num hospital e afastar a morte e seus fantasmas de sua casa. Por isso vamos colocando a morte – que faz naturalmente parte da vida – num lugar intocável, impronunciável, intratável, o que faz tudo ficar mais difícil. Se já é difícil para os adultos lidarem com isso, para as crianças então é muito mais.

Mas essa idéia de que as crianças devem ser poupadas...
A gente tem mesmo essa mania de achar que a infância é um mar de rosas, ou que deveria ser, por isso não cabem nela os momentos ruins, as perdas, o sofrimento. Mas tudo isso tem de ter lugar sim na infância. Não se pode impedir uma criança de se desenvolver como ser humano por achar que a verdade a fará sofrer demais. Ela vai sofrer com aquela morte, claro, mas precisa ser amparada e acolhida para compreender o que houve, passar pelo luto e ressignificar sua vida a partir daquela perda, se não a morte não vai ter servido para nada e ela pode e deve servir. E aí tanto faz ser adulto ou ser criança, é preciso passar por todo esse processo para crescer.

Em outras palavras, os adultos não devem esconder que um parente faleceu, ou não devem contar que o morto virou uma estrelinha ou coisa assim.
Primeiro devem contar que a pessoa morreu. Usar a palavra morte é importante, marca uma situação especial. Depois, as metáforas, como a estrelinha, ou o anjinho, se prestam para as histórias, as literaturas, que podem ajudar muito nesse momento. Mas para falar de uma situação real, é importante ser preciso com as palavras e os conceitos usados, para a criança validar o que houve, concretizar a situação e se enlutar.

A senhora falou em conceitos ligados a essa situação da morte...
São três pontos fundamentais na hora de explicar sobre a morte de um parente ou de alguém importante par a criança. O primeiro é a questão da universalidade. Ou seja, fale para o menino que todos, independentemente da cor, do credo, da beleza, um dia vão morrer. Depois, explique a não-funcionalidade do organismo. Ou, em outras palavras, é essencial dizer que a pessoa que morreu não sente mais nada, que seu coração parou de bater e que existe agora um corpo inerte, que não sente frio nem fome, não sente nada. E o terceiro ponto é a irreversibilidade. Ou seja, quem morre não volta mais. Sem estar de posse desses três conceitos, a criança não realiza a morte e não embarca naquele caminho que já falamos antes e que permite um crescimento, um processo em que a morte é um portal tanto para quem foi, quanto para quem ficou.

Nós adultos temos o hábito de ou explicar demais, ou não explicar nada para as crianças. Como a gente pode saber se não está indo longe demais ou se não está deixando de responder o que a criança quer ouvir?
A criança fala tudo. Ela mostra tudo. O negócio é que temos de treinar nossa sensibilidade para aprender a reconhecer essa fala que nem sempre é verbal. Em geral, quando um adulto diz que está querendo poupar uma criança, está, na verdade, querendo se poupar desse enguiço que é lidar com a morte. Por isso, se a criança perguntou, responda objetivamente. Direto no ponto. Se ela se sentir satisfeita, vai informar, mudando de assunto, ou brincando de alguma coisa, mas ela sai do embate. Se ela não se sentir satisfeita, ou se precisar de mais subsídios para entender aquele ponto, vai voltar a perguntar, ou vai encenar algo, ou brincar representando sua dúvida... e é a isso que nosso olhar e nossa percepção têm de estar atentos, focados, porque a criança avisa.

E essas recomendações servem tanto para os pais e a família como para educadores?
Servem sim. Todas. E eu vejo em meu trabalho muitos professores muito confusos com essa questão. Às vezes morreu o pai de um aluno, às vezes foi alguém na escola mesmo, e os professores não sabem como lidar com isso. Por isso é que minha pesquisa foi buscar esse público.

A senhora poderia então falar um pouco sobre sua trajetória de pesquisa e sobre sua tese de doutorado?
Eu sou formada em Psicologia e além dos atendimentos no consultório, trabalhei durante muitos anos dando suporte a crianças internadas no Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo. Eram crianças que tinha passado por acidentes, ou por agressões e acabavam ficando ali internadas. No apoio a essas crianças e às famílias ali presentes comecei a notar que era muito forte o discurso de que os médicos e os profissionais de saúde eram frios, não se importavam com o sofrimento das famílias e não estavam preparados para lidar com a terminalidade dos pacientes. Eu entrei no mestrado em Ciências do Hospital A. C. Camargo e fui estudar exatamente isso, essa relação do médico com a morte e verificar se era verdadeira essa percepção dos pacientes, de suas famílias e da sociedade em geral. O que encontrei então entre os médicos que lidavam com as pessoas sem perspectiva de cura foi muito sofrimento e muita angústia por parte deles. Os médicos não estão habituados e nem são preparados para lidar com essas situações de perda iminente. Mesmo com a graduação mais humana que se procura hoje, com disciplinas que tocam essa questão da morte, ainda assim o cotidiano deles é duro e eles têm de lidar com falecimentos diariamente, o que não é fácil. Por isso, minha recomendação no mestrado foi que a preparação para lidar com a morte não estivesse apenas na graduação do futuro médico. Trazer a morte de volta para a vida e naturalizá-la novamente deve ser um esforço das famílias e das escolas. É preciso lidar com isso mais tranquilamente no dia a dia.

E essa linha de raciocínio e de pesquisa continuou durante o doutorado.
Exatamente. Somando essa questão do preparo para lidar com a morte, minha experiência com crianças no HC e mais outra paixão antiga minha, a literatura infantil, consegui apontar minhas investigações para o papel dos livros para criança no lidar com a morte. Procurei me basear numa área bem conhecida chamada biblioterapia, onde o analisado lê uma obra e se trabalha a partir da identificação com um personagem. Peguei tudo isso e apliquei em uma pesquisa em cinco escolas para entender como educadores usavam e como poderiam usar as histórias infantis para lidar com questões difíceis como a morte.

Como funciona a biblioterapia?
A idéia é de cura por meio do livro. O paciente numa situação de crise, de luto, de perdas, ao ler um livro, sofre um processo interativo. Caso ele se identifique com um ou mais personagens, passa a compartilhar experiências com esse personagem e pode vivenciar na imaginação processos que levam a uma percepção de que é possível dissolver os problemas. É assim: se nós somos tão parecidos e ele conseguiu dissolver os problemas, talvez eu também consiga. Ele passa pelo que chamamos em catarse e, depois, pelo insight. Essa experiência de falar, enxergar a si, compreender a si, através do outro é muito rico e facilita muito as coisas, porque o problema do outro é menos dolorido em mim. Eu via como isso ajudava as crianças internadas e por isso sugeri que isso fosse aplicado entre os professores.

Como foi a pesquisa com professores?
Eu selecionei cinco escolas, sendo duas particulares e três públicas, e realizava três encontros com os professores. No primeiro eu colhia informações sobre como o assunto morte era tratado nas escolas. No segundo, eu apresentava os 36 livros infantis que pontuam minha pesquisa e falava um pouco sobre como eles poderiam ajudar a lidar com o assunto. São obras como “A mulher que matou os peixes”, de Clarice Lispector, “Menina Nina”, do Ziraldo, “Cadê meu avô?”, de Lídia Carvalho, e “A montanha encantada dos cisnes selvagens”, de Rubem Alves. A surpresa aqui é que de todos os livros que eu mostrava os professores, em média, eles só conheciam sete. É um número baixo. Talvez os professores não conheçam ainda o poder que os livros infantis têm. No terceiro encontro a gente discutia a viabilidade de um trabalho real naquela escola. Se a escola quisesse e os professores também, a gente podia fazer um quarto encontro depois de um mês, para dar tempo de digerir e processar todas aquelas informações. O que encontrei foi uma dificuldade enorme de se tratar da morte, mas diretamente proporcional à vontade de saber lidar com isso e de ajudar os alunos em caso de necessidade. As dificuldades começam no pessoal, porque como todos nós, os professores não crescem enxergando a morte como algo natural e que faz parte da própria da vida, e se estendem para o profissional, porque os docentes não são educados e nem formados para trazer a finitude para as discussões normais da vida. A morte vira então um tabu, algo de outro mundo. Aí, quando um aluno, ou uma turma inteira precisa disso, o professor não sabe bem como agir.

Quais foram os resultados práticos que você conseguiu atingir a partir dos encontros com os educadores das cinco escolas?
Discutir temas polêmicos sempre faz despertar o interesse para essas questões. E foi o que aconteceu na maioria delas. Mas algumas vivenciaram experiências mais profundas e cobertas de significados. Uma professora não conseguiu trabalhar a morte propriamente dita com seus alunos, mas usou a metodologia do trabalho com os livros para tratar dos medos dos alunos. E claro que um dos medos foi o da morte, e ela enfrentou o desafio, apesar de todas as suas dificuldades pessoais. Noutra escola, os professores organizaram junto com os alunos uma homenagem – plantaram uma árvore – em honra de uma professora muito querida na escola que tinha morrido havia pouco tempo. Significando essa perda, eles conseguiram sair do luto e crescer com a situação. Mas acho que além do olhar para a morte, essa experiência com os livros também fica.

Como é que na prática o professor trabalha esse poder dos livros e o que ele pode esperar desse trabalho?
Primeiro o professor deve ele ler a história, conhecê-la bem. Depois ele lê para a turma. Eventualmente os alunos podem ler também. Aí acontece uma discussão pautada pelo professor e voltada para aquele tema que se quer discutir. E, em seguida, o professor pode pedir que os alunos produzam um texto, ou um desenho, enfim, que os meninos e meninas se expressem, porque isso é o importante. Os alunos devem encontrar esse canal de acolhimento e de expressão para seus sentimentos. Por isso livros são tão importantes.

É um caminho para a expressão?
Lembra quando eu disse que ao se envolver com uma história, se reconhecer num personagem, a pessoa pode viver uma catarse? Então ao se ver espelhado no outro, a criança descobre, primeiramente, que não está sozinha. Outras pessoas podem passar por tudo aquilo que ela passou ou está passando. As dores que a morte traz são coletivas, não são só dela. E isso faz reduzir a sensação de solidão que esses momentos de crise trazem. Quando, ainda por cima, ela encontra o respaldo de um professor que quer falar sobre isso e, mais ainda, a ouvir sobre aquela dor, sobre o papel daquela morte em sua vida, ela se sente acolhida, relaxa e pode finalmente se expressar. O professor tem que querer mesmo compartilhar de todo o processo, caso contrário não funciona. E tem de saber que a biblioterapia é apenas um recurso, uma ferramenta. Existem outras maneiras de se ajudar uma criança enlutada. Mas em sala de aula talvez essa seja uma boa saída. Ziraldo e Rubem Alves falam muito de contar histórias sem maiores pretensões. A história tem esse poder de ir entrando no aluno, fazendo sentido, significando. Depois de contar a história, de ler com a classe, a professora pode fazer um trabalho em que a atividade pedagógica – seja produção de texto, seja a correção do texto – tenha um verdadeiro sentido para cada um dos alunos.

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