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Entrevista com Thais Manzano, autora do livro Artimanhas da ficção

Quais os segredos da ficção que a senhora conseguiu desvendar?
Ninguém nunca vai decifrar a ficção toda. Primeiro porque ela tem tantos segredos possíveis que essa seria uma tarefa impossível. Segundo, porque cada época empresta sua visão às obras de ficção, então durante todo o tempo de existência de uma história ela terá mil visões diferentes e mil segredos diferentes. E, por fim, o que faz a ficção ser essa coisa fascinante é justamente esse mistério todo que ela traz. O que eu fiz foi levantar e discutir alguns pontos, algumas artimanhas usadas pelos escritores que fazem com que o leitor entre no jogo e seja seduzido por aquele livro. Há questões simples, outras mais profundas, mas o que fiz foi levantar algumas delas e apresentar para os leitores. Também é preciso dizer que a gente só pode falar de grandes livros tendo em vista a época em que eles foram lançados. Porque em cada tempo, os heróis mudam, as narrativas mudam, porque o contexto todo muda também. Eu lembro de Os sofrimentos do jovem Werther, que é o arqui-romântico, e que levou verdadeiramente vários jovens ao suicídio. Nosso olhar cínico de hoje não permite acreditar naquele sentimentalismo todo. Hoje somos incrédulos, não conseguimos acreditar que alguém sofria como o personagem de [Johann Wolfgang von] Goethe.

Quais os critérios que levou em consideração para escolher as obras analisadas?
Eu estudo literatura há muitos anos e faço resenhas de todos os livros que leio, porque a vida é curta e a arte é longa. Então, como não sei se vou ter tempo de um dia reler aquela obra, se eu leio a resenha, tudo volta à minha memória. E eu tenho uma grande quantidade de resenhas. Quando eu entendi que tinha material suficiente para fazer um livro, aí selecionei de acordo com o meu prazer mesmo. Essas vinte obras não foram escolhidas por nenhuma razão lógica, ou cronológica. Selecionei os livros que me deram mais prazer. Aliás, Jorge Luiz Borges dizia que temos de ler o que nos dá prazer. E aí já está um dos mistérios da literatura, descobrir o que dá prazer.

As escolas erram ao indicar obras que não têm esse componente...
É, as pessoas falam da qualidade ruim do ensino brasileiro e que os estudantes não lêem. Mas dá para entender que um jovem cheio de energia, com seus 14 ou 15 anos, deteste Machado de Assis. Dom Casmurro é uma tortura para um leitor médio adolescente, para um leitor que ainda não se apropriou das regras da sedução da leitura. Bentinho, o personagem criado por Machado, é um homem ressentido que fica imaginando se sua esposa o traiu. A ironia sofisticada do autor junto com a loucura de Bentinho são difíceis mesmo de alcançar para pessoas que não têm ainda uma grande bagagem de vida, que não têm um grande repertório. Então é preciso respeitar a faixa etária, as aspirações e a formação das pessoas.

Voltando às obras... A senhora afirma que são grandes livros. Por que é possível classificá-los dessa maneira? O que eles têm em comum para formar uma espécie de categoria única?
Os vinte livros selecionados podem ser classificados como clássicos da literatura universal. Não clássicos no sentido de obras que buscam o ideal da Grécia, nem o período que reviveu esse ideal clássico, o neoclassicismo do século 17. São clássicos no sentido de que alcançaram uma certa imortalidade, tocam em aspectos eternos da alma humana. Shakespeare, por exemplo, mapeou a alma humana. Acho que não há sentimento que não tenha sido tratado pelo dramaturgo inglês. Aí, em qualquer tempo, quem lê as obras de Shakespeare acaba se identificando com esses aspectos e isso não morre, mesmo que a época mude e que os parâmetros mudem também, certos traços permanecem. As obras que tratei no livro revelam essa questão, de lidar com esses traços da alma humana.

E quanto às artimanhas levantadas pela senhora. Quais os truques que esses livros trazem?
Bem, vamos começar pelo título, que é sempre o primeiro contato do leitor com a obra. Então ou você fisga ele ali, ou não fisga. É o livro que convida a entrar, a seguir naquele caminho. Outro ponto é o enredo, a história propriamente dita. É aquilo que as pessoas lembram mais, mas não tenho dúvida em dizer que é a parte mais frágil de uma grande obra. Parar no enredo é estacionar numa etapa superficial da obra, há um mundo de camadas por baixo dessa primeira e só conseguindo identificá-las é que o leitor poderá aproveitar melhor. Acontece que nem sempre a pessoa se dá conta de que está sendo manipulada, de que está fazendo parte de um jogo proposto pelo autor. Revelar, portanto, quais são as peças desse jogo é uma maneira de os leitores terem acesso a esse mundo que não se revela sem algum conhecimento.

A senhora poderia explicar o que quer dizer com manipulação? Porque a palavra pode soar como algo negativo, ruim, e aí é que as pessoas não vão mais querer enfrentar os clássicos...
Não é manipulação no sentido pejorativo da palavra não, é no sentido de jogo de sedução. O escritor vai dando as regras do jogo e o leitor vai aceitando, como se estivesse encantado e vai sendo conduzido para novos universos pelas mãos do autor.

Mas conhecer essas artimanhas sem a pureza do primeiro contato não faz a leitura ficar sem graça?
Muito pelo contrário. A proposta do meu livro e dos meus cursos é ensinar quais são as estratégias de sedução. O que o escritor vai dizer, a história ali colocada e a marca pessoal de cada autor são elementos únicos em cada obra. E esse é o mistério da arte. Se eu der as ferramentas para as pessoas terem consciência desse jogo, elas vão poder penetrar novos universos. Elas também podem penetrar inconscientemente, é verdade. Mas só quando a gente tem consciência do que está acontecendo, de quais são as artimanhas do autor é que a gente pode fazer a análise crítica da obra. E eu dou aula há muitos anos e posso dizer que as aulas que os alunos mais gostam são aquelas em que analisamos a obra, buscamos o que o autor quis dizer com aquilo. O tema, o desenvolvimento, a visão de mundo e os caracteres que o escritor usou para dizer tudo aquilo. E também como ele conduz o nosso olhar sobre tudo isso.

E há outras artimanhas além dessas que a senhora citou?
O trabalho com o tempo é uma artimanha importante. Às vezes, no auge de uma situação importante, o narrador suspende a narração e vai falar de outro personagem, ou de outro núcleo de personagens que não têm nada a ver com a primeira situação. O autor deixa o leitor desesperado para saber o que houve com o personagem, mas ele corta a narrativa e muda de assunto. Isso foi muito usado no folhetim e é utilizado até hoje nas novelas de televisão. No auge da cena corta e vem o intervalo deixando os telespectadores cheios de expectativas. O mesmo acontece nos livros. Ficamos à mercê dos truques do autor que faz tudo isso de propósito, com intuito de prender a gente ali. E tem o ponto de vista. Entre as artimanhas com as quais eu trabalho, gosto muito de falar do ponto de vista. Ele é como a câmera do cinema. O diretor a coloca onde quer, para que o espectador tenha a visão, o ponto de vista, escolhido pelo narrador. Em A volta do parafuso [Henry James] e O Horla [Guy de Maupassant], que trato no capítulo 12 do livro, fica bem clara essa questão. Há infinitas possibilidades de posicionamento do ponto de vista e o narrador apresenta um. Ou alguns. Essa escolha é que torna possível o leitor ir fazendo sua travessia pela obra. É a maneira de subjetivar a obra.

Às vezes o autor brinda a gente com os vários pontos de vista de um mesmo acontecimento, aí cabe ao leitor amarrar todas as informações e fazer uma história só sua...
Exatamente. [William] Faulkner usou isso em O som e a fúria, por exemplo, e em Absalão, Absalão. Se bem que no primeiro o autor coloca lá uma quarta parte que explica tudo, como se fosse uma garantia de que, no fim das contas, o leitor ia compreender sua obra. Mas em Absalão, Absalão não. É uma sofisticação tão grande que ou o leitor percebe que é esse o jogo, ou ele não vai entender nada. E se não entender, não vai gostar. Essa artimanha dos variados pontos de vista está também no romance epistolar. É um tipo muito comum no século 18 e, como o nome diz, se baseia em cartas, epístolas. Em As ligações perigosas [Pierre Chordelos de] Laclos vai colocando uma série de cartas, uma após a outra, e é na soma dessas correspondências e na costura de uma com a outra que o leitor constrói a sua história. E, às vezes esse processo é tão sofisticado que a história que eu criei não é igual a que você criou e ambas estão corretas.

E esse é um processo de fácil apreensão?
Um leitor médio talvez não saiba onde se posicionar ao ler uma obra como essa. E é aí que entra o conhecimento. Se ele perceber que se trata de um jogo, o qual ele conhece as regras, aí ele vai entender a obra. E não só entender, vai adorar, porque aí ele vai ter prazer de penetrar num mundo inimaginável. Conhecer as artimanhas da manipulação facilita chegar a esse prazer da leitura.

Parece que cineastas, músicos, fotógrafos, dramaturgos, todos usam as mesmas ferramentas...
A arte em geral se utiliza dessas artimanhas. É o papel do artista passar sua mensagem através de um caminho que o público tem que percorrer, qualquer que seja sua forma de expressão. O que é importante ressaltar, e é por isso que gosto de ser jornalista, é que arte é, ou deveria ser, comunicação. Se ela não se comunica com seu público, não se faz entender ou significar, ela não está cumprindo uma de suas finalidades básicas. O que deve existir são graus diferenciados de apreensão. E é para isso que livros de análise literária servem, para municiar o leitor das estratégias da ficção e, assim, dar a ele ferramentas para a compreensão.

Mas às vezes o público não percorre o caminho sugerido pelo autor. Percorre outros, nem cogitados pelo autor. Nesses casos a artimanha é que falhou?
Os caminhos que a arte nos leva a percorrer são muito individuais e às vezes até o autor é vítima de sua obra. Ele propõe uma história, o publico lê e interpreta de uma maneira muito diversa da imaginada pelo autor.

Foi o que aconteceu com Tropa de Elite, filme de José Padilha? Embora o autor jure que se trata de um filme que denuncia certas ações do BOPE, parte do público e da crítica leu como uma obra fascista.
Exatamente. E foi exatamente o mesmo que aconteceu com [Joseph] Conrad, em Coração das trevas. Para falar da barbárie que há na humanidade, que há em cada um de nós, ele recorreu às tribos africanas. E por isso foi chamado de racista, de fascista. E o livro não é de jeito nenhum nem racista nem fascista. Está lá escrito que a barbárie acontece também nas margens do rio Tamisa, na Inglaterra. E que nós humanos somos bárbaros vestidos com trapos de civilização. Veja só, trapos de civilização. Ou seja, muito mal protegidos por essa cultura. Ele recorreu à África, mas para falar de um mal de todos nós.

O que deu errado então? Eles queriam falar de uma coisa, terminaram tachados de defender o contrário...
Olha, primeiro que nem o autor está a salvo de seu inconsciente. Então talvez haja nessas obras traços que permitam a interpretação enviesada. Mas digamos que esses traços não estejam lá, que a interpretação é uma questão de ponto de vista. E que do lugar de onde olhamos, as coisas dizem respeito não só ao que o narrador propõe, mas também às nossas bagagens, nossos referenciais, nossos repertórios e nisso o autor não pode interferir. Somos seres humanos únicos.

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