SINPRO-SP – Este estudo feito por vocês recentemente relaciona condição de vida a partir da oferta e qualidade dos serviços estatais, taxa de mortalidade e homicídios policiais. A senhora podia explicar como ele foi feito, ou seja, como foi articular todas essas variáveis?
Maria Fernanda T. Peres - Nosso grupo partiu da constatação que o risco para homicídio é desigual em São Paulo. Ou seja, há, na capital, distritos em que a chance de ser assassinado é maior e lugares em que a chance é menor. E, observando os dados, podemos dizer que o mesmo se repete nas outras capitais do país e também nos outros estados. Então nos perguntamos o que explica essa diferença.
E vocês partiram de alguma hipótese mais específica? Parece que a tese da ausência do Estado se aplica a esses números...
Essa associação entre fatores socioeconômicos e violência já é um assunto bem discutido e até bem aceito por vários autores e por autoridades públicas. O que colocamos de novo são os dados sobre as vítimas fatais de policiais.
O estudo reforça essa relação entre condições socioeconômicas e violência, algo que já é de conhecimento público. Por que então continuar discutindo esse tema é tão importante?
Fizemos uma análise que consegue comprovar a correlação entre a taxa de mortalidade por homicídio e as condições socioeconômicas dos distritos de São Paulo. E mostramos que quanto mais precárias variáveis como analfabetismo, renda do chefe da família, densidade domiciliar, maiores também são as taxas de mortalidade por homicídio. E acho importante ressaltar que chamamos de precárias as situações em que a oferta e a qualidade dos serviços do Estado deixam a desejar. Nos distritos com essa característica há, de fato, mais homicídios. E reforçar essa relação é uma maneira de não deixar o assunto cair no esquecimento, ou cair numa simplificação preconceituosa. Também é um jeito de trazer dados concretos que podem ajudar na formulação de políticas públicas.
E a correlação desses dois fatores com a violência policial?
Trata-se de uma correlação importante também. Onde é maior a taxa de mortalidade por homicídio também é maior a taxa de violência policial. Especificamente neste trabalho mostramos que é maior a taxa de vítimas fatais de violência policial. Só essa informação já traz uma questão grave. Quando a isso se soma que nesses distritos também a precariedade é maior, aí temos uma situação bem complexa e cheia de correlações perversas. E no caso da violência, discutir os fatores a ela relacionados é fundamental, porque não existe uma fórmula única para esgotar o tema ou combater a violência. O que defendemos é que a violência é sim um problema social e deve ser enfrentada enquanto tal. Ela não está apenas na esfera da Segurança Pública, como se costuma pregar. E quando explicitamos essas relações entre aspectos sociais e violência ajudamos a defender que se há melhora na condição de vida, há também redução da violência.
Como as pessoas recebem esse discurso?
Em geral, aceitam bem, porque já é uma percepção bem conhecida, bem aceita até. O cuidado que se tem de tomar quando se trata de um assunto como esse com a população em geral é que há uma tendência a criminalizar a pobreza, numa relação equivocada de causa e efeito entre pobreza e crime. Não é isso que os dados mostram e também não é isso que as pesquisas defendem. Os distritos que têm as mais altas taxas de mortalidade por homicídio não têm só a pobreza. O que mais chama atenção ali é a precariedade dos serviços oferecidos, da coordenação da organização urbana e de moradia e do atendimento policial. Os mecanismos de Estado que deviam atuar na resolução de conflitos ou são precários, ou não funcionam, não têm qualidade. E pela própria dinâmica social, os conflitos são resolvidos, têm de ser resolvidos, de uma forma ou de outra. Nos lugares onde não há ação efetiva do Estado para mediar esses conflitos, abre-se uma margem para a resolução por outras vias. Por isso, a importância de afastar a pobreza como causa primeira da violência, numa relação rasa. A sobreposição das variáveis aponta que mais do que a pobreza mesmo, a carência de serviços sociais e a profunda desigualdade social é que estão na base da violência. Ou seja, é a presença de dois extremos, muita riqueza de um lado e muita pobreza de outro, causando uma grande desigualdade social.
E as autoridades, como reagem a esses dados e a essas análises?
Esse mesmo discurso defendido por nós, de melhorar as condições de vida para reduzir a violência, é até utilizado pelas autoridades. Vimos alguns esforços no sentido de prevenir a violência e investimentos para reduzir os casos de violência, mas o que vemos também é que esse discurso não tem se traduzido em políticas públicas concretas. Existem as ONGs que atuam nesses distritos mais violentos, que desenvolvem seus programas, mas de forma desarticulada e, às vezes, também de forma descontinuada. E também essa atuação não se transforma em política pública. Existe a constatação, existe quase uma cultura de relacionar violência a fatores sociais, mas ainda não vira política pública. E ainda em relação às autoridades, tem um assunto que sempre volta à tona quando se trata de violência. Existe um discurso recorrente que pede uma atuação mais ostensiva da polícia, que entende que uma atuação mais de contenção provocaria mais medo e mais respeito e, portanto, faria cair o número de casos violentos. Mas o que as pesquisas mostram é exatamente o oposto. Onde há mais violência policial, há mais violência, claro, e cresce a relação conflituosa entre a população e a polícia. O que é ruim para a sociedade inteira. E o que vemos nos últimos 20 anos, da redemocratização para cá, é que a polícia é uma instituição cheia de questões delicadas.
Existe uma espécie de sobra da ditadura, não? A polícia fica como um poder acima de qualquer outro...
Ninguém mexe muito com a polícia. E, embora a gente veja alguma preocupação em humanizar a instituição, como as ações de policiamento comunitário, de um modo geral os investimentos são mais em equipamentos, em carros, em equipamentos de combate ao crime. Mas se olharmos os dados dos últimos 20 anos, observamos que a violência policial vem aumentando. Ou seja, há um certo descompasso mesmo.
A violência cresce e a população fica cada vez mais desconfiada...
É verdade. Basta olhar para a quantidade de crimes que não são relatados à polícia. As pessoas têm medo, desconfiam, têm uma relação tensa com a instituição, elas não fazem nem Boletim de Ocorrência. É por isso que combatemos esse discurso de endurecimento da polícia. Porque, na prática, ele aumenta a violência em si e estimula essa relação conflituosa da população com a polícia.
E é por conta dessa relação tensa que acontece a violência policial?
O que observamos na pesquisa é que nos distritos onde há mais vítimas fatais de violência policial, também é maior a taxa de homicídios gerais. É uma relação direta e importante e que se verifica também onde há mais desvantagens socioeconômicas. Esse estudo pára aqui. Refletimos muito sobre o assunto, mas ainda não dá para ter uma resposta conclusiva. O que podemos afirmar é que essa relação existe e se comprova. Agora vamos seguir estudando as hipóteses que temos para tentar explicar com mais detalhes esses fatos.
A senhora pode adiantar quais são?
Existe a questão do ciclo de violência que já falamos, onde uma coisa leva a outra. As comunidades não vêem nos policiais representantes de instituições que os protegem e, por isso, acabam por adotar uma postura defensiva e de afastamento. Existe a questão da desconfiança, medo e preconceito da população em relação à polícia e da polícia em relação à população, que criam pressupostos perversos de que a polícia não é digna de confiança e de que a população de áreas mais pobres ou é de bandidos ou de potenciais marginais. São os caminhos que vamos começar a perseguir e investigar.