Machado de Assis, grande homenageado da Feira Literária de Parati e de variados eventos que reverenciam centenário de sua morte
Elisa Marconi e Francisco Bicudo
O crítico literário norte-americano – tão polêmico quanto famoso – Harold Bloom lançou em 2003 o livro Gênio – um mosaico de cem mentes exemplares e criativas, onde analisa o que considera a criação brilhante dos 100 melhores escritores do mundo. A obra causou furor por aqui. O motivo? A lista incluía o brasileiro Machado de Assis. Nas páginas de sua obra, publicada pela editora Objetiva, Bloom escreve que “Machado de Assis é uma espécie de milagre, uma enésima demonstração da autonomia do gênio literário relativamente ao espaço e ao tempo, à política e à religião e àquelas outras contextualizações que se pensa falsamente serem determinantes para as capacidades humanas”.
Começar descrevendo Machado como esse gênio latino-americano talvez seja a maneira mais sensata e justa de explicar porque, mesmo depois de 100 anos de sua morte, o escritor continua sendo uma referência para leitores de variadas idades, para críticos e para amantes da boa literatura. Não é à toa que o Ministério da Cultura proclamou 2008 como o Ano Machado de Assis. Da mesma forma, ele foi o grande homenageado da Feira Literária Internacional de Parati, a Flip, que aconteceu na primeira semana de julho, e continuará sendo a estrela de seminários e encontros internacionais ao longo de todo o ano.
O poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e professor da USP, costuma dizer que “Machado é o escritor que melhor representa o Brasil, no que diz respeito às contrariedades, aos impasses, àquelas ambigüidades entre o público e o privado, o ethos brasileiro mesmo”. Ao lado de Secchin está o também escritor Luiz Antônio Aguiar, autor de Almanaque Machado de Assis (Editora Record), que se refere ao homenageado do ano da seguinte maneira: “é entre as coisas que conferem à literatura o caráter da inteligência como expoente humano. Fala sobre ser brasileiro, a alma humana e a vida, transformando tudo isso num patrimônio, porque como Shakespeare, ou Dostoievsky, tange o que é comum a toda a humanidade”.
Em
seu blog, Daniel Piza, jornalista e autor de
Machado, um gênio brasileiro (Imprensa Oficial), escreve que “Machado também é um produto e profundo observador da vida brasileira de sua época, na qual examinou questões universais como a vaidade, o ciúme, a confusão entre afetos e interesses, a relação entre classes”. Em outras palavras, o escritor cumpriria, como poucos, o papel de um narrador do contexto histórico, social, econômico e político em que viveu. Evidentemente, não dá para reduzir a arte de Machado ao retrato de sua época, mas sem dúvida essa parte chamada documental está toda ali. O trabalho dos funcionários públicos, a indolência de certos tipos e figuras sociais, assim como a descrença e a desesperança de outros, os ricos com sua empáfia herdada e retransmitida, o lugar dos negros e mulatos num Brasil que saía do Império e avançava em direção à República e muito mais.
A própria biografia de Machado de Assis ajuda muito a compreender seu olhar ferino sobre aspectos das esferas sociais, econômicas e políticas. No blog, Piza faz ainda referência a uma palestra que proferiu na francesa Universidade Sorbonne, em Paris, em março deste ano, onde lembrou que Machado era mulato, mas refutava essa palavra, por vir de mula, um animal escravo. E, por não negar sua origem negra – ao contrário do que afirmam muitos críticos –, o escritor faz da escravatura uma questão central de suas obras. Piza acrescentou, na palestra, que “seu primeiro (de Machado) emprego sério foi numa tipografia (...) No ano seguinte ele começou a trabalhar na Imprensa Nacional, e desse momento até sua morte teve uma ascensão contínua e gradual nas carreiras de homem de letras e funcionário público”. Por isso, o jornalista também lembrou que Machado era um produto sui generis, que de descendente de escravos passou a conviver com a alta sociedade de sua época. E é a união dessas duas pontas que faz de sua literatura algo único.
Secchin reforça esse aspecto. “Machado vem de uma experiência particular, porque tem a constituição étnica do mestiço, viveu uma infância bem modesta e ascendeu socialmente, viveu junto às esferas mais elevadas do poder e sua literatura é uma resposta particular a esse meio”.
Universalidade
Outro fator importante no entendimento da grandeza da obra de Machado de Assis é a universalidade de seus escritos, mas que jamais perdem de vista o caráter brasileiro, seja no texto, nos personagens e na visão de mundo. “A literatura de Machado é de nível mundial. Não só pela maneira como ele escreve, mas porque toca temas universais, como qualquer outro grande escritor do mundo”, afirma Aguiar. “O grande barato é que no Brasil nunca ninguém tinha feito isso antes. Ele é o primeiro”, completa. Segundo Secchin, em Esaú e Jacó, ou em A mão e a luva, por exemplo, o escritor apresenta as condições históricas brasileiras e transcende os interesses meramente do país para caminhar em direção aos grandes da cultura ocidental. Isso é o que diferencia um escritor de época de um escritor que vai ficar marcado na história. Mesmo com um português do século XVIII, ainda assim o autor se faz entender – claro, com variados graus de compreensão e interpretação – dentro e fora do Brasil. Aliás, esse era o desejo explícito do próprio Machado. “Ele queria ser lido por todos, por isso o tom coloquial. Se o compararmos com Raul Pompéia e Eça de Queiroz, seus contemporâneos, é muito mais simples entender o que diz Machado, porque ele queria se fazer entender”, defende.
Contudo, aqui novamente apresenta-se a faceta genial do escritor: mesmo escrevendo num português fluido e compreensível, o estilo machadiano é inconfundível, inteligentíssimo, irônico e profundo. Aliás, o estilo é sua arma para atingir determinados alvos na alma e no coração do leitor, concordam Secchin e Aguiar. Um bom exemplo é como ele se coloca em relação ao desencanto pelo mundo e com o ser humano. Nas palavras do professor da USP, “ele trata o material humano, por exemplo, como algo nem sempre de boa qualidade”. Contudo, uma ressalva antes de explicar o caminho sugerido por Machado para o leitor compreender o desencantamento. O autor de Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1900), Memorial de Aires (1908), Papéis Avulsos (1882), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1906), Relíquias da Casa Velha (1906), dentre tantos outros, não é ele mesmo um amargurado.
“Os narradores de Machado são pessimistas não porque não acreditam na natureza humana, mas porque um dia acreditaram demais. Machado, o autor, era diferente de seus narradores”, escreve Piza, desta feita no artigo “Machado não é um personagem”, publicado na revista Vila Cultural (Ed. 50, julho/2008). Ou seja, não dá para confundir o autor com seus personagens. Na biografia que escreveu, o jornalista e crítico literário do Estadão coletou vários depoimentos e documentos que dão conta de que Machado, o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, era alegre, falante até engraçado, não a ponto de fazer rir, mas de fazer galhofa e satirizar instituições e costumes. E essa – a galhofa – é uma das ferramentas machadianas para fazer entender a descrença na sociedade e na humanidade.
Aguiar diz que para se sentir a descrença, a amargura, é preciso já ter passado por ela. Por isso, quem não foi apresentado a esse sentimento talvez tenha mais dificuldade para compreender a profundidade das colocações machadianas. Ciente disso, Machado de Assis recorre à ironia. “Não é para dar gargalhada, mas para jogar a gente contra a gente mesmo. Mesmo não conhecendo a melancolia, um jovem é capaz de perceber que nas tiradas satíricas há algo grandioso por trás”, diz o especialista.
O bruxo
É seguindo essa linha do desvendamento que Aguiar explica a alcunha recebida por Machado. O Bruxo do Cosme Velho evidentemente morava naquele bairro da cidade do Rio de Janeiro; já sua bruxaria diz respeito ao poder de narrar histórias usando, de maneira inteligentíssima, a composição literária. “Bruxaria mesmo é fazer o que ele fez com as ferramentas dos leitores. Trata-se de uma espécie de envenenamento dos recursos dos escritores, e feita de maneira genial”, empolga-se o autor de Almanaque Machado de Assis. Secchin completa explicando que dissecar demais a obra de Machado de Assis pode fazer o leitor cair numa armadilha por achar que se trata de um autor panfletário e ideológico quando, na verdade, Machado é um mestre, “dono de uma linguagem esplêndida, do domínio da narrativa e autor de frases muito bem construídas”. E o professor da USP acredita que são essas as características que devem fazer o público ler os múltiplos livros do escritor, como os de poesias Crisálidas, Falenas e Americanas; de teatro, Deuses de casaca e Quase ministro; de crônicas, como Bons Dias!”; e de contos e romances, como Contos Fluminenses e Iaiá Garcia, além de todos os outros já indicados.
Aguiar levanta um bom exemplo dessa bruxaria. Bentinho, talvez o mais conhecido personagem de Machado de Assis, famoso por viver a dúvida da traição de sua esposa Capitu em Dom Casmurro, ganha de cara a empatia do leitor. “Bentinho é tido logo como um coitado e cai no gosto do leitor”, diz o especialista. Piza, no artigo já citado, reforça essa idéia. “Bento é um covarde e, mesmo quando parece convicto de que foi traído pela mulher, no enterro de seu melhor amigo, Escobar (...), é incapaz de fazer algo contra ela, contra si mesmo ou contra o filho que não seria seu (...). Ele está mais preocupado com a opinião dos outros do que com o enfrentamento dos fatos”. Ou seja, essa tal empatia tem muito a ver com aspectos psicológicos do leitor, espelhados na psique de Bentinho. Aqui, para os três especialistas, já há pitadas de bruxaria. Mas a potencialização do feitiço, segundo Aguiar, está na composição narrativa da história. Machado se utiliza de um recurso tradicional, que é a narração em primeira pessoa e, ciente da desvantagem que ela provoca, se apóia nesse “defeito” para criar aí a estrutura e grande sacada do romance. O narrador em primeira pessoa não pode ser onisciente – como podem ser os narradores em 3ª pessoa – e é justamente por isso que nos consumimos na incerteza de Bentinho sobre a traição de Capitu. O narrador jamais poderá entrar na cabeça da protagonista e, por isso, o leitor jamais saberá o que se deu de fato. “É bruxaria pura, entende? Essa operação de contar com a impossibilidade da narrativa em primeira pessoa para gerar a dúvida é genial. Ele faz do limite uma vantagem”, argumenta o autor de Almanaque Machado de Assis.
Claro que para ir desvendando camada por camada das obras machadianas é melhor contar com certa preparação. “Embora a linguagem seja acessível, ler Brás Cubas na hora errada pode fazer o leitor detestar Machado para sempre”, alerta Secchin. Como qualquer clássico, para ser bem compreendido e degustado, vale a pena apostar numa mediação, segundo Aguiar. As dicas dos especialistas começam com o pedido de um pouquinho de paciência para os leitores novatos. Eles lembram que ler o português e a sintaxe de mais de 100 anos atrás sempre causa certo estranhamento, mas que passando esse primeiro obstáculo, reconhecemos a língua e nos acostumamos a ela sem maiores dificuldades. “É exatamente o que vai acontecer quando os jovens de 2100 lerem Érico Veríssimo ou Jorge Amado. Primeiro vão estranhar o português, mas passando isso, a leitura flui, porque Machado escreveu para ser lido e entendido”, defende Aguiar.
O próximo passo é iniciar a aventura pelas obras mais curtas, como as crônicas e os contos. “Para os jovens que têm pressa, os textos curtos são bem indicados e na escola eles cabem nas aulas e em variadas disciplinas”, sugere Secchin. “Cada leitor descobre uma camada referente à sua vida, descobre algo de seu”. E Aguiar acrescenta que nas crônicas já estão presentes toda a beleza e a inteligência inconfundíveis de Machado. Então o leitor não perde nada e começa a se habituar ao estilo do Bruxo do Cosme Velho. Por fim, e aí entram os pais e os professores, cabe a tal mediação sugerida por Aguiar. Trazer o contexto histórico em que as obras foram escritas e lembrar certos aspectos importantes da vida naquele tempo podem ajudar muito a transportar o leitor para o universo ficcional do livro. Para ele, “ler junto e questionar sobre passagens do livro também pode dar bom resultado”, ou seja, municiar o leitor com as ferramentas necessárias para apreender e compreender a obra pode ser o ingrediente que faltava para que o leitor seja, enfim, definitivamente enfeitiçado pelo bruxo.
» Leia aqui entrevista com Lúcia Granja, uma das principais especialistas nas crônicas de Machado de Assis