Professor, para ir direto ao ponto: qual é o papel que cabe ao professor diante de tantos e tão complexos desafios?
O papel do professor mudou muito nos últimos tempos. E para pior. Antigamente, o professor era visto como o sábio que orientava as novas gerações. Hoje é visto quase como um mordomo educacional, muito parecido com o sentido original da palavra pedagogo. Na Roma antiga, os pedagogos eram escravos semi-analfabetos que tinham como única tarefa conduzir os filhos dos seus patrões até a escola e zelar para que eles ficassem lá. A sociedade atribui esse valor medíocre ao professor, o que também faz da educação um processo não-eficiente. Mas eu não acho que esse seja um caminho sem volta; caso contrário, não teria escrito meus livros, não daria aulas nem faria as minhas palestras.
E qual é o caminho de volta para concretizar a relevância social da tarefa do educador?
Primeiro, a sociedade precisa se conscientizar do lugar do professor. O lugar que ele tem hoje e o que tinha no passado. O sistema de educação e a relação das famílias com a escola, em outras palavras, a educação mesmo, precisa voltar a ser como era antigamente. Os pais confiavam seus filhos aos professores com a recomendação expressa de que era para o mestre fazer o pupilo se comportar e, se isso não acontecesse, o aluno sofreria as conseqüências em casa. Hoje, se um professor tem a coragem de chamar um aluno de mal-educado, ele toma um processo nas costas. Para ilustrar essa situação de desmerecimento, vou contar uma coisa: já preparei 100.400 alunos para o vestibular, então eu tenho mil histórias para contar. Uma das perguntas que mais ouço é: professor, o senhor trabalha ou só dá aula? Muitos professores já devem ter ouvido isso, ficam chateados com a pergunta. Eu sempre digo que não fiquem, porque no fundo trata-se de um elogio. O aluno quer dizer: o senhor é tão competente que podia estar no mercado de trabalho! O problema mora no fato de que a sociedade não acha que o professor é um sujeito competente, caso fosse estaria no mercado de trabalho e não dando aula. E é esse pensamento que devia ser revertido.
Como o senhor explica essa decadência?
Em primeiro lugar, sem dúvida é culpa da desvalorização financeira da profissão. Para você ter uma idéia, há 50 anos uma professora primária ganhava o mesmo salário de um juiz recém-nomeado. O salário desse juiz se manteve no mesmo nível. O da professora, não. Então as pessoas acham que primeiro foi a desvalorização da carreira e por isso os baixos salários. Na verdade é o oposto. Reduziram os salários para diminuir a carreira, porque infelizmente, na nossa sociedade, as pessoas confundem valor com preço e julgam que só tem valor o que tem um alto preço. Para explicar essa redução proposital no salário, é preciso lembrar o que aconteceu no Brasil e em muitos países subdesenvolvidos. Houve um projeto político e ideológico para fazer a educação perder qualidade. Foi, portanto, intencional. A idéia era que o sistema de educação do terceiro mundo não poderia ser tão eficiente, porque se não as pessoas começariam a votar certo. E isso era muito perigoso para o projeto político vigente. A educação tinha que ser ruim a ponto de as pessoas não conseguirem entender e se informar a partir do que estava escrito no jornal, entende? E isso ainda não foi mudado no Brasil e posso afirmar que esse projeto é apartidário, independe da corrente que está no poder. A segunda razão é o círculo vicioso que se cria por conta da baixa valorização. Ou seja, os alunos mais brilhantes não viram docentes, vão para o mercado de trabalho porque lá estão os melhores salários. E acabam sendo professores os alunos com desempenho médio e baixo. E aí cai a qualidade do professor, o que reforça a idéia de que é uma profissão que não deve ser valorizada. A terceira razão é que a docência virou um bico, uma tarefa para complementar à renda. Além do absurdo de qualquer um se intitular professor, até técnico de futebol, os professores dão aulas paralelamente a outros trabalhos e empregos. Eu faço muitas palestras para secretarias municipais de educação, é um trabalho ideológico, eu chego lá nos auditórios para falar para centenas de professoras primárias. Você reparou que eu falei professoras? A mulher dá aula e recebe aquele salário pequeno, que não é a renda principal da casa, o salário dela complementa a renda do marido e isso é muito preocupante.
Qual o conteúdo principal das conversas que o senhor tem com essas professoras?
Entre outras tantas conversas, vou lá para destacar a enorme importância do estudo solitário. Vou lá ensinar técnicas de estudo e vou sugerir que as escolas funcionem em tempo integral. Não para deixar o aluno sobrecarregado com tantas atividades, mas para que ele tenha tempo e um lugar apropriado para realizar seu estudo solitário, para fazer a lição. Eu tenho a convicção de que sem estudo ninguém aprende. Por isso as professoras devem passar a lição, cobrar que o aluno faça e corrigir.
Como se dá esse circuito da aprendizagem? Qual o caminho que a informação dada em aula precisa percorrer para virar um aprendizado?
Vou começar então com um velho ditado chinês que diz que o que ouço, esqueço; o que vejo, entendo; e o que faço, aprendo. Na maior parte das aulas e das escolas, os alunos ouvem e vêem, por isso ali é o lugar de entender. E é na lição de casa, quando ele está fazendo de fato, que o estudante vai aprender. E aprender não é um processo imediato. Eu gosto de usar a seguinte analogia: quando o aluno está acordado e vai à aula, é como se estivesse escrevendo na areia. Escrever na areia, você sabe, é uma escrita que está fadada a ser apagada. Passa o vento, vem a maré e apaga aquilo. Mas à noite, dormindo, é como se alguém viesse e despejasse cimento fresco sobre essa escrita. Aquilo solidifica e quando seca, virou uma placa que ninguém pode apagar. Se está escrito de levinho na areia, a placa fica difícil de ler. Mas se está escrito bem profundo, a placa fica bem legível e fácil de compreender. Para essa placa de cimento ser gravada para sempre, o que o aluno tem que fazer? Estudar sozinho depois da escola. Onde mora o equívoco? Na hora de escrever na areia e gravar a placa. E aqui a culpa é 99% da escola que ensina a escrever na areia só antes da prova. Aí aquilo fica fresquinho na memória, o aluno vai bem na prova, e quando acaba, esquece tudo. Outro equívoco, agora do aluno, é aquele papo de que ele não precisa estudar, que prestando atenção na aula entende tudo. É verdade, entende mesmo, mas esquece tudo depois da prova e a educação não existe nesse caso. Depois da aula é hora de reescrever tudo aquilo que foi dito na classe fazendo a tarefa. Aí o aluno aprende de verdade – e não finge, como acontece hoje – e a escola ensina de verdade – e não faz de conta, como o que acontece hoje.
Para esse estudo solitário ser eficiente, a lição tem de ajudar, certo? Como devem ser esses exercícios de casa para que o aluno reescreva a aula e aprenda de fato?
Os professores devem propor exercícios, questões e situações-problema que façam com que o aluno utilize as ferramentas aprendidas em aula e reaplique em novas situações, novas realidades, novos desafios. O aluno precisa dar sentido para o que viu e ouviu em aula e não só repetir o que foi ensinado. E depois tem uma coisa mais grave. Os alunos dizem que até gostariam de estudar sozinhos depois da aula, mas não conseguem entender o que está proposto na questão, no problema. Por isso, antes de qualquer coisa, precisamos ensinar nossos alunos a ler. Ler mesmo, entendendo e interpretando o que está escrito ali. Hoje, os professores fazem de conta e em vez de ensinar a ler, ensinam os alunos a ser tradutor de signos. Eles traduzem palavras escritas em sons e não em idéias. A escola precisa ensinar a ler de verdade, para que o aluno entenda a lição. E para isso, o aluno tem que compreender o prazer da leitura. Mas há dois culpados externos à escola que complicam essa percepção. O primeiro é a parafernália eletrônica. O sujeito fica horas no videogame, no computador, no MSN, na frente da TV e jamais lê um livro. Essa criança precisa ser conscientizada da importância e do prazer que ler proporciona. E a outra culpada é a família, que deixou essa questão da leitura de lado. Os pais não lêem, não compram livros para os filhos e não se conscientizam de que ler é fundamental para aprender qualquer coisa.
O senhor acha que, além da família, é papel da escola e do professor tentar resgatar esse prazer pela leitura? E como dá para fazer isso na prática?
O professor de Literatura não aprende na faculdade de Letras que ele, antes de ensinar literatura, deveria ensinar leitura, mostrando como se manifesta essa ferramenta prazerosa e eficaz para aprender. Sem saber disso, eles mandam ler Iracema, que não dá nenhum prazer ao aluno, que acha até Harry Potter pesado, e querem que o menino desenvolva o hábito da leitura. Não é por aí. A escola que não se preocupa com o degrau anterior, que é a leitura, não vai conseguir ensinar literatura. Eu venho dando muitas dicas aos professores, para que eles mudem a técnica de abordagem com relação aos livros. A primeira é que eles sugiram livros de ficção científica e de mundos fantasiosos aos alunos, material que costuma fazer muito sucesso entre os adolescentes. A outra é a técnica do leque. Em vez de dar um livro, o professor pode sugerir duas dúzias. O aluno vai lá e escolhe um. Começa a ler e, se não gostar, troca. E pode trocar até achar um que lhe dê prazer. A gente tem que respeitar o gosto e a individualidade. Eu sei que é mais chato e que dá mais trabalho ao professor – que vai precisar ler todos os livros oferecidos – mas sabe o que acontece? 90% dos alunos viram leitores. Os professores que adotaram o leque é que me dizem isso.
E a qualificação do professor? O que o educador pode fazer por ele mesmo?
Sabe quando a aeromoça fala que, em caso de emergência, coloque a máscara primeiro em você e depois nas crianças que estiverem por perto? Aqui vale o mesmo. Todas as dicas de estudo e leitura que apontei para os alunos servem, primeiro, para os professores. Sejam mais inteligentes, mais competentes, leiam mais, mas leiam romances, contos, ficção e não só livros técnicos. O professor precisa resgatar o prazer da leitura também e ampliar o universo das especializações. Com tudo isso ele vai ser um profissional mais completo e vai começar a trilhar o caminho de deixar de ser um “dador de aulas” para ser um educador. Essa escada em direção ao conhecimento é infinita, mas os degraus são baixinhos, a gente sobe bem pouquinho por dia. Mas pode subir para sempre.
» Ouça aqui trecho da entrevista com o Prof. Pierluigi de Piazzi