Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Jr.
Ouvimos, lemos e acompanhamos pela TV muitas notícias sobre a crise da economia. Mas afinal, que crise é essa? O que os mercados mundiais têm a ver com o financiamento de imóveis nos Estados Unidos?
A crise que estamos acompanhando é uma crise que começou financeira, virou monetária e está se transformando numa crise econômica geral. Qual é o pano de fundo? Um processo de super-acumulação de capital. Sempre que isso acontece, o próprio capitalismo encontra mecanismos de vazão. Nós estamos assistindo a dois desses processos de super-acumulação: a valorização fictícia do capital, também chamada de especulação financeira, e a busca de novos mercados, a abertura de novos mercados, também chamado de globalização. A gota d’água foi desencadeada pela ruptura do processo especulativo do mercado imobiliário dos Estados Unidos. É por isso que nos ligamos ao financiamento de imóveis lá. O mercado imobiliário norte-americano funciona como uma corrente da felicidade. Ou seja, só funciona enquanto todos acreditam. Quando um elo perde a confiança e se quebra, a corrente se rompe e acaba. Agora, a velocidade pela qual a economia se contrai é o dobro daquela pela qual ela se expande. E numa sociedade em pânico, a velocidade é ainda maior. Em termos econômicos, quando um elo da corrente não cumpre o combinado, o preço dado não é sancionado, não tem onde se amparar, então as relações de débito e crédito também se rompem.
Mas desde sempre sabemos que o capitalismo é um sistema cheio de contradições e que, portanto, cedo ou tarde, as fraturas e as conseqüências da especulação globalizada viriam. Por que então essa crise surpreende tanto, a ponto de ser tratada como algo especial, novo?
A novidade dessa crise é que, primeiro, ela não ficou contida no seu setor de origem. No início dos anos 2000, por exemplo, houve uma crise grande, ligada à especulação na Internet. Mas ela ficou apenas nesse setor. Essa de agora não, ela não está circunscrita a seu setor original, ultrapassou as barreiras do mercado imobiliário norte-americano, ganhou a Europa e a Ásia e está chegando às periferias, como o Brasil. A segunda novidade é que a crise atingiu em cheio, pela primeira vez, o epicentro do sistema financeiro mundial, os Estados Unidos. E, por fim e talvez mais importante, o Estado não está conseguindo administrar a crise. Está impotente diante da situação.
É por isso que um dia a gente vê a Bolsa de Valores cair dez pontos e, no outro, subir 14?
Exatamente. E o mesmo vale para o dólar. As pessoas ficam mais otimistas quando o Estado age, mas depois se dão conta que a ação do Estado não resolveu a situação. Temos, portanto, vários sintomas de que se trata de uma crise de tipo novo. Tudo indica que aparenta ser uma crise estrutural. E, nesse caso, a intervenção do Estado não é uma solução, porque o próprio Estado é parte do problema.
Por quê?
Porque a crise nasce na inusitada desregulamentação da economia, como nunca se viu antes na História. Podemos dizer que é sim a crise do neoliberalismo. Há um componente fortemente ideológico nessa crise. As pessoas acreditaram nas propostas neoliberais, como aquela que defende que o Estado não devia funcionar para trazer justiça social, ou para promover o bem-estar da população. Aí todo o ambiente político se alinhou a essa maneira de ver o mundo. A crítica acabou e quem pensava diferente, era dinossauro. E nesse ponto a mídia tem um papel extremamente importante. Ela foi cúmplice de todo esse processo, sem medir esforços, numa postura irresponsável mesmo. Quando a crítica é calada, o que temos instalada é uma cegueira geral. E não à toa, [o escritor português, ganhador do Nobel de Literatura] José Saramago escreveu Ensaio sobre a cegueira nesse contexto. Quando a crítica é ceifada do debate público, ninguém mais é capaz de conter o processo. Quem não estava nele era marginal. E aí todo mundo acreditou.
Para resgatar origens e conceitos, qual foi a trajetória percorrida pelo neoliberalismo até chegar a esse estágio?
A política econômica neoliberal é a era do capital financeiro. O processo de acumulação começa, na verdade, no pós-guerra. Os Estados Unidos propõem uma reorganização da economia que não era exatamente neoliberal, mas que já contém todos os germes dessa era de capital especulativo. Ali eles já miravam uma época sem intervenção do Estado e um mercado que se auto-regularia. Era o modelo de Bretton Woods [Em 1944 houve uma grande conferência em New Hampshire, nos Estados Unidos. Nela foram criados o Fundo Monetário Internacional e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento. Portanto, o modelo criado propõe políticas econômicas aplicadas pelas duas organizações, baseadas em paridades cambiais fixas e no padrão ouro-dólar]
Na década de 1970, o modelo de câmbio controlado ruiu e começou a entrar em vigor uma economia de câmbio flutuante, com um novo projeto de desregulamentação e liberalização. Esse processo foi radicalizado na época do [presidente norte-americano Ronald] Reagan, que deixou o capital com grande liberdade. De lá para cá, o processo só foi se aprofundando, o que abriu espaço para a nova crise.
Mas por que afinal o capitalismo tem de enfrentar tantas crises?
A crise no capitalismo é sempre uma crise das relações sociais do capitalismo. E toda crise no capitalismo, se você olhar lá no DNA dela, você vai encontrar dois fatores: a anarquia da produção e o caráter antagônico da produção capitalista. O que é essa anarquia? É a produção pela produção, sem medir as consequências. E o antagonismo é a produção desmedida sem que se criem as condições para que a mercadoria produza lucro. Agora, essa crise atual revela esses dois fatores num grau inusitado. E isso significa que o Estado precisa intervir num plano nacional, com maior ou menor interferência.
É inevitável a comparação desse momento com a crise de 1929, que quebrou a Bolsa de Nova York e provocou uma profunda depressão na economia norte-americana, com impactos mundiais. Dá para comparar a situação de hoje com aquela?
A Crise de 29 foi também uma crise estrutural, da Divisão Internacional do Trabalho, em torno da economia britânica. A gente estava falando em intervenção do Estado na economia para tentar conter crises. Lá em 1929, os Estados precisaram intervir, mas a solução da crise durou 50 anos. Foram necessários o fascismo, o nazismo, duas revoluções socialistas [China e Cuba], uma política intervencionista nos Estados Unidos, o New Deal e mais uma grande depressão econômica global.
Embora de formas diferentes, são todas maneiras de os Estados regularem a economia?
Exatamente. A custa de muito sofrimento, os estados totalitários autoritários na Europa, socialistas em Cuba e na China e o New Deal (política econômica de fomento ao trabalho e à renda) norte-americano conseguiram deter a crise.
O que o senhor quer dizer é que a atual crise também pode ter uma solução lenta e até dolorosa? Mas os Estados não estão agindo?
Estão agindo, atuando, mas não têm conseguido resolver o problema, porque não estão atacando aquelas causas que citei: a anarquia e o antagonismo da produção. Os Estados não estão revendo a estrutura que dá liberdade total ao capital, não estão reformando nada disso. Os recursos já gastos até hoje para salvar os bancos somam o equivalente a seis PIBs [Produto Interno Bruto] brasileiros. Um dinheiro que ninguém tinha separado. Ninguém tinha uma reserva para casos de emergência. Aí, numa crise como essa, os governos se unem e conseguem desembolsar seis Brasis de produção, o que não é nada pouco, para salvar bancos e instituições financeiras. Então a pergunta é: quem está regulando quem? O Estado está regulando o capital financeiro, ou o capital financeiro está regulando o mercado?
O problema é que parece que nessa hora os Estados se esquecem da cartilha que sugere a não interferência na economia e agem rapidamente para salvar os bancos. A iniciativa privada, causadora dessa situação, não precisou se mexer. Como fica isso?
Olha, esse blá blá blá de Estado mínimo é uma falácia do neoliberalismo. O Estado foi reduzido nas áreas que cuidavam do bem comum, da produção de políticas públicas. As áreas que sustentam e protegem o capital financeiro, essas sempre estiveram ativas e bem irrigadas, exatamente como estamos vendo agora.
E podemos entender então que esse estágio avançado do capitalismo, chamado de era do capital estrangeiro, especulativo ou globalizado, está chegando ao fim? O que o senhor imagina para o futuro?
O que podemos dizer é que será mesmo uma crise geral e que o capitalismo não será o mesmo depois dessa crise. Estamos vendo o encerramento do ciclo neoliberal. Não acredito que seja o fim do capitalismo, porque esse sistema econômico só vai terminar se for derrubado. No passado houve a alternativa socialista, que hoje não faz muito sentido. Talvez apareça outra opção dentro do próprio capitalismo.
O senhor acredita que a fase que vem por aí será tão dura quanto foi a que sucedeu a crise de 1929?
Não dá para ter certeza ainda, mas vejo a situação mais complexa e difícil que o pós-29. A solução será lenta e deve aliar capitalismo e barbárie, uma barbárie mais dura que as já vistas. Atingirá o setor financeiro, o econômico e o monetário. Deve ter um aumento nas desigualdades e na desagregação social. A conclusão é que manter o trinômio capitalismo, desenvolvimento e soberania nacional vai ser ainda mais difícil.
É o fim do reinado dos Estados Unidos? E se sim, quem deve emergir?
Não há dúvida que a crise está revelando que os Estados Unidos já não conseguem funcionar como pólo hegemônico da economia mundial. Ao mesmo tempo, não se vislumbra nenhum país capaz de substituir os Estados Unidos nessa função. Portanto, o mais provável é que estejamos diante de um período marcado pela lenta decadência da hegemonia norte-americana, sem que surja nada para ser colocado no seu lugar. Se este cenário se confirmar, a instabilidade da economia capitalista só tende a se agravar.
E nós? Devemos ter medo?
É natural ter medo, porque não conseguimos prever ao certo o que virá, mas acho que devemos esperar e observar. Acho também que devemos esperar um tempo difícil, de pouco desenvolvimento, de instabilidade, de maior tendência política ao autoritarismo e de maior desigualdade. Mas vamos aguardar.