Professor, o livro “História do Brasil – uma interpretação” tem algumas peculiaridades. A obra por exemplo não termina com a morte de Getúlio Vargas e nem com a eleição do presidente Fernando Collor. Vocês chegam até os últimos dias de 2008, o que pode ser considerado até mesmo arriscado para a análise histórica. Por que essa escolha?
A gente optou por contar a História do país desde antes do descobrimento, ainda na pré-história brasileira, porque a gente acredita que nossa história começa ali. Defendemos por exemplo que a descoberta do Brasil, na verdade, não se deu em 1500, com a chegada de Pedro Álvares Cabral, mas sim em 1498, com Duarte Pacheco Pereira (NR- navegador de confiança do então rei de Portugal, D. Manuel I, Duarte teria desembarcado em área próxima da fronteira dos atuais estados do Pará e do Maranhão). Já em 1494, o Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha, previa a existência de terras nessa nossa região. Depois de mais alguns anos, aí sim veio toda a esquadra de Cabral. E a gente chega até o governo Lula da Silva. São 29 capítulos. Em cada um deles buscamos o sentido de cada período. Ou seja, o sentido do período Colonial, do Império, do século 19 e sua construção da Independência, depois o século 20 e a afirmação da República liberal e democrática, em que o grande protagonista é a sociedade civil.
E os dois últimos capítulos são dedicados aos tempos bem atuais, o que pode justamente ser considerado um dos diferenciais da obra...
Nas duas últimas partes falamos dos dois governos Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva e defendemos – e tem lá uma série de argumentos e dados que mostram – como essas duas últimas gestões estão baseadas no modelo autocrático burguês, como propõe Florestan Fernandes, e não no modelo democrático burguês. Nenhum dos dois governos conseguiu romper com o padrão das medidas provisórias, dos descalabros das eleições para o Senado e Câmara, haja vista essa última vitória de José Sarney e Michel Temer. No livro fica claro que eles não inauguraram esse modelo, mas que também não romperam com ele. Agora falando especificamente de por que contamos a história até os dias de hoje, a resposta é simples: toda História é a história do presente. O filósofo George Santayana (1863-1952) já dizia isso e toda História é contada com os olhos do presente. Mesmo que você volte para a Grécia, ou para o Egito, a visão é sempre a atual.
Parece que no Brasil essa preocupação com o passado próximo é levada bem a sério, quase ao extremo...
Exatamente. O Brasil é um país de desmemoriados. A história atual para a gente é aquela de, no máximo, dez anos atrás. A minha geração, que viveu 1964, 1968 e 1975, está quase esquecida de tudo que viveu. Os filhos e netos, porque essa geração já deve ter netos, não fazem a menor ideia do que aconteceu, não se lembram, ou não sabem mesmo. E, o pior, os professores de História também não conhecem. Por isso o livro é dedicado aos leitores em geral que precisam dessa história inteira e aos professores de história, que são em geral muito bem intencionados, mas são novos demais para perceber certas sutilezas, para perceber por exemplo essa noção do contínuo, de que as coisas não acabam, mas se transformam.
O senhor está tocando em outro diferencial do livro. Parece que ele está baseado nessa visão do processo histórico, em contraposição à visão tradicional dos ciclos.
É exatamente isso. Em História do Brasil – uma interpretação a gente trabalhou e se propôs a resgatar três conceitos. O de Processo Histórico, o de Sistemas e o de Estruturas sociais. Sobre o primeiro, a gente já falou um pouco, retoma a noção de que as coisas acontecem na História de um lugar continuamente, diariamente e que não é porque um governo acabou, ou uma manifestação aconteceu que o país inteiro muda de fase. Acaba uma e começa outra. Não é assim que a História acontece. E a maneira fragmentada pela qual as pessoas estão acostumadas a olhar para a história prejudica muito o entendimento global e a percepção dessas heranças malditas a que me referi. Nosso livro volta para o conceito de processo histórico então. Na retomada do conceito de Sistemas, o que sobressalta é a noção de que vivemos sob um sistema social, econômico e político que nos leva a ver a vida de uma determinada maneira. E nem sempre esses sistemas foram os mesmos, passamos por uma era colonial, com um capitalismo mais que primitivo, depois pela república liberal, mas não tão liberal assim, enfim. E, por fim, voltamos o olhar para a estrutura da sociedade, das mentalidades e aqui a busca é pelo sentido. O que significou, significa e o que fica de herança. Estamos falando da atuação, do pensamento e da postura da sociedade colonial, da sociedade imperial, da República Velha e da Ditadura. É preciso olhar para essa estrutura para entender o hoje.
O senhor está falando das tais heranças perversas?
Delas sim. Se você olhar para a sociedade brasileira hoje, a descrença na classe política é quase um patrimônio social. Quase todo mundo compartilha disso. Tem também uma atuação débil da sociedade civil e uma memória geral muito fraca. Esse abafamento da memória, por exemplo, é uma herança maldita. E é ela que permite explicar como o PT, que era o depositário dos nossos sonhos, um partido de rupturas, tornou-se, ao chegar no poder, um partido conciliador, aos moldes do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, que com sua aliança com a direita – tradicionalmente não muito amiga da democracia – também não chocou muita gente. Na época, o que se acreditava era que o governo estava fazendo um mergulho à direita para alcançar a esquerda. E não foi o que aconteceu. E também já era um indicador que devíamos sonhar mais baixo para o governo Lula, que até se preocupa com o lado social, fez o Fome Zero e o Bolsa Família, mas não se preocupou nunca com a ruptura.
O senhor falou também em atuação débil da sociedade civil.
Quando o modelo é o democrático burguês, proposto por Florestan Fernandes, a sociedade civil é o ator principal. Mas aqui no Brasil isso não aconteceu e a atuação dessa tal sociedade civil é muito débil. Vemos alguma mobilização em 1975, depois da morte do Vladimir Herzog, depois em 1984, durante a campanha para as Diretas, depois em 1988, um pouco antes da eleição de Fernando Collor e aí desaguou. Ou melhor, aguou. Nunca fica constantemente mobilizada e sempre a força matriz se perde. É preciso entender essa maneira de agir, os motivos que levam ao agrupamento e à desmobilização para entender como algumas coisas acontecem aqui sem nenhuma resistência. A confusão entre o público e o privado é uma dessas coisas. Quando a gente conta a História baseada naqueles conceitos que falei antes, são essas as noções que saltam aos olhos. Em vez de o leitor ficar lembrando se o grande produto de exportação era cana, café, ou ouro, começa a entender por que a nossa burguesia se conforma com a banalização de tudo. Nem as calçadas dos Jardins, aqui em São Paulo, são dignas da burguesia desmemoriada e desmobilizada que temos e que somos.
Além da ruptura com essa visão dos ciclos, o senhor e a Adriana Lopez se baseiam em grandes pensadores brasileiros para embasar as reflexões. E não só se apoiam neles, como fazem desse diálogo com os intelectuais mais um estandarte do livro, não?
Os autores clássicos nacionais são citados o tempo todo não para legitimar o que pensamos, mas para construir uma conversa com a historiografia. Esses pensadores, como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Raimundo Faoro e todos os outros, são inspiradores da interpretação que fazemos da História do Brasil e são também autores que precisam ser citados porque têm a profundidade dos melhores pensadores estrangeiros. A sociedade brasileira recorre pouco a eles, mas lá fora há especialistas na obra de Caio Prado, na obra de Celso Furtado, porque eles dissecaram as estruturas da sociedade, da mentalidade e dos estamentos mais profundos do país. Não dá para entender e analisar a História do Brasil sem recorrer a eles. Também não à toa, esses intelectuais têm, em geral, a visão do processo histórico, da continuidade. Nas obras deles estão as explicações para a desmemória e o silenciamento do povo, por exemplo.
Mas vocês também não deixam de citar nomes e de pontuar datas, de marcar os feitos heróicos, ou seja, de adotar uma perspectiva narrativa mais tradicional...
Não ignoramos as passagens, as fases e os momentos históricos tradicionais ou não. O que a gente fez foi olhar para essas passagens e recontá-las de uma forma mais profunda e menos fragmentada, fazendo emergir algumas noções meio nebulosas entre os leitores comuns, os professores e os alunos. Nós também oferecemos algumas biografias. Não apenas para marcar a vida e a obra de alguns personagens, mas para explicar que algumas vezes as coisas acontecem muito em função de seus protagonistas. Se um presidente tinha características tais, os rumos da história seguiam de acordo com essas características. Na verdade a gente conhece muito pouco os grandes atores da nossa História. Em nome de não oferecer uma história baseada em nomes e datas, os professores abolem o componente humano das passagens, das fases históricas. E o resultado é que a gente deixa de ligar o nome à pessoa, digamos assim. Por isso colocamos lá no livro pequenas biografias reflexivas e explicativas, como a do Marquês de Pombal, dos dois Dom Pedro, de Evaristo da Veiga, de Duque de Caxias, de Getúlio Vargas, de Teófilo Otoni, que ninguém sabe quem foi. Também estão lá cada um dos presidentes, os udenistas, Júlio de Mesquita Filho. Enfim, tem a vida, a obra e, principalmente o contexto, para fazer as pessoas aprenderem que, ao contrário do que se pregou no ano passado, Dom Pedro II nunca foi um grande estadista. Não criou nenhuma universidade e sob o domínio dele o Brasil viveu as piores repressões. A abolição tardia é conseqüência direta da pessoa e da forma de governar dele. Biografia então é sinônimo de memória ativa e com o objetivo de apontar não para trás, mas para frente.
O senhor e Adriana Lopez indicam que há um problema sério na formação dos professores e sugerem que esse livro seja uma alternativa ao pensamento estanque e fragmentado, comum entre alunos e educadores. Os professores são seduzidos por essa proposta?
Sim. Compram o livro quando podem e compram também essa visão que propomos. O livro está vendendo bem. Não chega a ser um best seller, como 1808, do Laurentino Gomes, mas as livrarias estão bem satisfeitas com a vendagem dele. Agora, mais do que comprar o livro, as pessoas estão comprando a ideia. E não são só professores não. Estudantes, pais desses alunos, gente que parou de estudar há tempos, enfim... Quem quer entender melhor a nossa História, dos primeiros tempos até hoje. O retorno tem sido surpreendente. O que as pessoas buscam ao estudar História é, na verdade, o sentido de cada tempo, de cada período. E só com a visão geral e do processo, a compreensão de que sociedade é essa a cada tempo, é possível entender esse tal sentido. E não pretendemos esgotar as respostas, mas contribuir com novas perguntas. Coisas assim: por que a escravidão durou tanto? Como situar o Brasil no contexto internacional, da Guerra contra o Paraguai até as dificuldades hoje com o Mercosul, com a globalização e tal?
Quando os senhores propõem um olhar para o hoje buscam sustentação em quais obras e autores?
Essa é outra característica desse livro. Consideramos os jornalistas como quase historiadores do presente. Então nos apoiamos e citamos os trabalhos de Paulo Markun, João Pedro Stédile, Élio Gáspari, gente que escreve livros e escreve nos jornais propondo reflexões sobre a atualidade. Nos escritos desses jornalistas estão contidos conceitos e reflexos dos conceitos que guiam a sociedade contemporânea. É um trabalho precioso para a História. Quem ler o livro, mesmo que nunca tenha lido nada parecido, vai se deparar com uma linha de combate que não é nem tucana nem petista e que, na verdade, propõe um apelo à educação de qualidade, porque sem ela não teremos nunca uma nação consciente de sua história e de seus processos. Os políticos são tão mal formados que não conseguem diferenciar o público do privado. E a sociedade é tão desmemoriada e desmobilizada – tudo isso é herança, como dizemos no livro – que não percebe o quanto é prejudicada por isso. Os professores estão muito dispostos a mudar a forma pela qual percebemos o Brasil. Agora é só começar a fazer.