“Não consigo enxergar na proposta apresentada pelo MEC uma alteração substantiva e que aponte para a referência da democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, que é justamente um dos argumentos que está sendo usado para justificar a reformulação. O novo ENEM, de fato, pode facilitar a participação no processo seletivo, por permitir que o aluno, a partir de uma prova única, dispute vagas em diferentes cursos e instituições. Mas isso não garante que ele vá conseguir cursar a universidade. Não basta tornar o processo mais acessível, se você não é capaz de garantir as condições de frequência ao curso escolhido para os estudantes de menor poder aquisitivo. Estamos falando de mudança de cidades, de alojamento, alimentação, livros e muitos não têm condições de suportar estes gastos. Também vale lembrar que o nível socioeconômico dos alunos é uma variável de grande influência e peso em processos seletivos, e a tendência é que os alunos oriundos de camadas privilegiadas consigam alcançar melhores resultados e, portanto, terão prioridade para ocupar as melhores colocações e as primeiras opções de cursos, nas instituições de preferência. Creio ser preciso avaliar com cuidado também a dimensão das especificidades regionais, que tendem a ficar esquecidas ou pelo menos minimizadas por um exame de caráter nacional que, nesse sentido, tem muito menos flexibilidade e capacidade de adaptação aos olhares e realidades locais.
A ideia do exame seriado, já aplicada por algumas universidades, como a UnB, pode ser interessante, mas realmente não sei se muda significativamente o perfil do aluno ingressante. Minha impressão é que os mais favorecidos social e economicamente, os mais bem formados, que puderam frequentar boas escolas e tiveram uma boa formação, continuam alcançando as melhores resultados, ocupando as vagas nos cursos mais disputados. É uma inferência, que precisa ser pesquisada e estudada. O fato é que, em um cenário em que o número de candidatos é sempre muito maior que o de vagas, não dá para abrir mão de algum tipo de processo seletivo. Você pode até incorporar outros critérios, que não apenas o desempenho em provas, como mecanismos de cotas que favoreçam etnias ou estudantes de baixa renda. Mas algum mecanismo de seleção vai sempre existir. Só não ocorre em instituições privadas de ensino superior onde, por conta da expansão desenfreada, o número de vagas acaba superando o de candidatos, o que representa a relação inversa.
Também não concordo muito com essa tese de que o vestibular afasta o estudante da vida inteligente. Alunos bem sucedidos em processos seletivos sérios e rigorosos não são apenas estudantes que decoram e memorizam, de forma mecânica, mas sujeitos que desenvolveram habilidades intelectuais e que são capazes de pensar, de sistematizar e analisar informações, de enfrentar problemas. Acho que ainda restam muitas dúvidas sobre as mudanças que de fato se pretende introduzir no ENEM, o que mais especificamente o MEC está propondo, como pretende organizar esse exame; portanto, penso que ainda não é possível avaliar se esse novo processo unificado terá impactos sobre o ensino médio. Confesso que também não consigo interpretar, não tenho uma explicação consistente a respeito dos motivos que estão levando o Ministério a levantar essa discussão nesse momento, e de forma tão intensa. Para mim, é uma dúvida, um enigma, justamente porque defendo que o debate de fundo deveria ser travado em relação ao ensino básico e fundamental, justamente para que o aluno conquistasse as condições adequadas para disputar as vagas oferecidas pelos vestibulares. Aí sim estaríamos discutindo qualidade da educação no Brasil.”
*Professora da Faculdade de Educação da USP