Professora, qual o cenário sobre o ensino religioso no Brasil que a pesquisa e o livro foram capazes de sistematizar?
A nossa pesquisa foi normativa, quer dizer, a gente não foi para a sala de aula ver a situação na prática. Ficamos no plano da lei e de sua aplicação. E o que encontramos foi uma realidade confusa, porque, por um lado, desde 1889 o Brasil é laico. São pouco mais de cem anos de laicidade, contra 400 anos de ligação profunda com a Igreja Católica. A proclamação da República é quem separa as duas instâncias, com o intuito de garantir tratamento igual aos habitantes do país. Nem se falava em liberdade de credo naquele tempo, mas era preciso garantir que o Estado tratasse os brasileiros de forma igual. Mas a Constituição também prevê o ensino religioso e de uma forma que deixa todo mundo confuso. Lá diz que é para ter aula, mas não admite a profissão de fé, nem o proselitismo. O que, a gente há de convir, é quase impossível, afinal a religião não faz parte das ciências, não dá para falar de fé de maneira afastada, sem falar da própria crença, ou sem fazer proselitismo. E a Constituição proíbe essa postura.
A Constituição Federal e a Declaração dos Direitos Humanos garantem a liberdade de consciência, de credo e de culto. A senhora poderia detalhar esses conceitos e avaliar como eles tangenciam a educação e o ensino religioso?
A consciência é aquilo que o ser humano tem de mais íntimo, de mais valoroso. É um tesouro que nem as torturas mais bárbaras são capazes de dar fim, de acabar. O credo é aquilo em que a pessoa crê, mas do ponto de vista pessoal. Ela pode crer sem precisar se manifestar em relação a isso. Não precisa frequentar nenhum lugar especial e nem pertencer a uma comunidade para crer. Já o culto diz respeito à manifestação da crença, coletiva ou individual. Tanto a Constituição quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos asseguram essa liberdade aos seres humanos. A educação e as escolas precisam acolher esses direitos e formar estudantes capazes de refletir e de defender os direitos. Por pressão de grupos religiosos, que ainda hoje são muito fortes aqui no país, o ensino religioso se manteve nas leis que regem a educação, como uma forma de fortalecer os vínculos entre Estado, população e religiões. Mas em termos reais, como é possível falar de uma religião sem ofender os praticantes de outras? Ou como falar de todas as religiões existentes sem ofender quem não professa nenhuma fé? Cabe às famílias a orientação religiosa e, caso elas decidam educar os filhos numa determinada fé, existem as escolas privadas, ligadas a instituições religiosas. A escola pública, mantida pelo Estado, deveria seguir a diretriz do Estado e ser laica, para garantir tratamento igual de todos os alunos. Crentes, ou não.
Mas aí quem é religioso e não pode pagar ensino privado...
Ou entra nas escolas do Estado e é tratado de maneira igualitária, ou disputa as bolsas filantrópicas. Isso não foi muito problemático até o governo Collor. Foi naquela fase, em 1990 mais ou menos, que muitas famílias precisaram tirar os filhos da escola particular e colocá-los numa pública. Aí começa o nó do ensino religioso. De um lado os pais querem ensino religioso, do outro a Constituição garante, mas sem proselitismo.
Houve também um aumento da população declaradamente seguidora de uma religião, mas não católica.
Exatamente. Tem uma tabela no livro que mostra exatamente essa situação. Em 1940, 95% dos brasileiros se declarava católico. Em 1991, esse número baixou para 83% e, em 2000, chegou a 74% mais ou menos. Os evangélicos pularam de 2,6% em 1940 para 9% em 1991 e chegam a quase 16% em 2000. Ao lado desse aumento que salta aos olhos, temos também um aumento de 0,2% dos sem religião em 1940 para 7,4% em 2000. É uma realidade importante, e as bancadas evangélicas na política também se fortaleceram muito. Por isso o artigo que prevê o ensino religioso foi mudado em 1997. Em 1996 ele dizia que a aula de religião fazia parte do horário normal, deveria ser dada por professores habilitados em duas modalidades: confessional, de acordo com a crença pronunciada pela criança ou por seus pais; ou interconfessional, abarcando todas as religiões professadas na escola.
E como ficou em 1997?
Por pressão de grupos religiosos, o ensino da religião passou a ser visto como formação básica do cidadão. Os sistemas de ensino passam a decidir o conteúdo, e as escolas ficam responsáveis pela contratação do professor. E embora seja pedido para que a diversidade cultural do Brasil seja respeitada, os sistemas deverão ouvir uma entidade civil constituída pelas diferentes religiões para definir os conteúdos da disciplina. A pergunta é: quem é essa entidade? Seria possível formar um conselho por estado com representantes em igual número de todas as religiões do país? O que está implícito nesse artigo que foi regulamentado é que no fim cada escola vai decidir quem vai dar a aula e uma ou outra religião será beneficiada, de acordo com a crença do professor, ou com a maioria da classe.
Diante de uma situação assim, como fica o aluno?
Veja que a lei diz respeito ao ensino básico, ou seja, de 7 a 14 anos. Nessa fase a criança não deveria estar exposta a esse tipo de queda de braço entre as várias religiões, ou exposta a um ensino que não tem princípios bem sólidos, porque isso mais confunde que ajuda. Nesse começo da vida, a criança leva muito em conta o que o professor diz. Ela cria uma espécie de vínculo que precisa ser bem cuidado e que precisa ser respeitoso com as crenças da criança e das famílias. Imagine um professor que não tem nenhuma fé, ou que idealiza a própria fé. Como fica a relação com o aluno? E tem mais uma coisa, a pluralidade é a base da democracia. Quando a gente não respeita isso, na verdade está desrespeitando a própria democracia. E a escola deveria ser um lugar de reafirmar o valor da democracia.
E o professor, como fica?
Essa é a pergunta mais importante, porque o professor é o centro nevrálgico disso tudo, ele é o porta-voz da lei na sala de aula. É ele quem vai viver diariamente essa questão. De um modo geral é o professor quem sofre as maiores violações de direitos. Ele sofre as mesmas violações das crianças e mais a pressão de ter que dar aula de religião. Ou seja, tem de passar por situações invasivas. Se ele é ateu, por exemplo, e tem de falar de religião, é uma violência. Se tem uma fé, falar de qualquer outra também é uma violência, porque como eu já disse, fé não é algo que possa estar afastada, um objeto frio e distante, é algo que diz respeito à consciência, ao credo e aos cultos. E ainda que a escola em que ele está acabe priorizando a fé do professor, ainda assim ele pode estar ofendendo a crença dos alunos. É uma situação realmente delicada.
Adotar a religião como assunto transversal não resolveria?
Não, primeiro porque o artigo da Constituição que previa isso foi mudado. Segundo porque a história do negro e da África é uma coisa, são fatos históricos e que cabem no contexto da escola. A religião é diferente, ela não combina com a missão da educação escolar que se presta a formar cidadãos reflexivos e pautados na razão, no raciocínio, no pensamento. Religião toca um outro ponto do ser humano. Quando vira tema transversal, acaba dando origem a outros absurdos.
Como o ensino do criacionismo nas aulas de ciências.
Isso mesmo. Vamos primeiro fazer uma divisão. As escolas confessionais, privadas, ligadas a entidades religiosas, têm todo o direito – garantido pela Constituição – de ensinar religião, da maneira que acharem mais conveniente. O que nenhuma escola – pública ou privada – pode é mexer no currículo determinado pela Lei de Diretrizes e Bases. Particulares ou públicas, as escolas estão sujeitas à mesma legislação e o conteúdo de ciências não pode ser misturado com o de religião, porque são formas de conhecimento que têm naturezas diferentes e se prestam a propósitos diversos. Uma é baseada no raciocínio, na experimentação, na elaboração, e a outra, na revelação e no dogma.
As escolas percebem esse lugar desconfortável do professor?
Em geral, o que as escolas confessionais fazem é ter no corpo de professores pessoas de todas as origens, contratadas pela qualidade de ensino e não pela fé. E para as aulas de religião, chamam alguém ligado à religião. Um pastor, um padre, uma freira, enfim. Para ficar bem separado mesmo. Quando as coisas são assim bem claras, tudo fica mais fácil para os professores, para os alunos e para as famílias também. As universidades são um bom exemplo de que isso é possível. Aqui no Brasil, e fora mais ainda, associações religiosas fundam universidades de primeira grandeza. Harvard e Princeton, nos Estados Unidos, nasceram assim e hoje são instituições que produzem ciência e conhecimento respeitados no mundo inteiro.
Outra questão importante: especificamente nesse momento estamos atravessando uma questão delicada que toca a religião e o estado, que é a concordata assinada entre Brasil e Vaticano. A senhora poderia falar um pouco sobre isso e detalhar as implicações desse acordo para a educação?
A gente tem sempre que começar falando da laicidade do Estado brasileiro. O que é essa Concordata? Os diplomatas chamam de acordo bilateral, mas é uma concordata entre um estado teocrático e uma república. Não há nenhum problema real em o Brasil fazer acordos com teocracias. O problema mora no fato de o acordo incidir sobre o Direito e questões legais nacionais. Em outras palavras, as decisões tomadas a partir do Direito canônico, que é o Direito adotado pelo Vaticano, serão incorporadas, ou vão interferir, na legislação de um Estado laico. O Vaticano por si só já é um lugar dúbio. É ao mesmo tempo um Estado e um terreno de uma religião. O catolicismo é única fé que tem um Estado constituído. Portanto, firmar acordo com um Estado é firmar também acordo com uma Igreja, com uma religião. A pergunta é: em se tratando de um Estado laico como o Brasil, por que essa religião e não outra? Questões da vida privada dos brasileiros vão passar a ser reguladas por um Estado estrangeiro. Divórcio, casamento, aborto, por exemplo, deixarão de ser assuntos nacionais para – apenas para os católicos – serem regidos, mediados e amparados pelas leis de um Estado estrangeiro.
O problema é que o acordo, que ainda não foi celebrado, garante tratamento diferenciado para os católicos.
É isso mesmo. E nosso Estado, sendo laico, precisa garantir o tratamento igual aos cidadãos de todas as fés, ou de fé nenhuma. E pior do que tratar diferente os católicos é a lição que a gente passa: existem cidadãos de duas classes. Se você pertencer a uma igreja poderosa, você tem direitos diferentes. Mais do que isso, uma igreja forte pode se sobrepor ao Estado. Como é que na escola pública principalmente os professores vão ensinar isso? Vai contra a laicidade, vai contra aquilo que nos defende e nos respeita como diferentes mas nunca desiguais. E todo o discurso da inclusão, que está na origem do cristianismo e do catolicismo, acaba se perdendo, porque a concordata promove a desigualdade.
Há outros aspectos que atingem a questão educacional nessa concordata?
Eu gosto sempre de buscar a História nessa hora. Quando você puxa os outros acordos que foram feitos com a Santa Sé vai encontrar os seguintes signatários: Adolf Hitler, Benito Mussolini, General Franco. Gente nada comprometida com a democracia e os direitos humanos. Cuidado, não estou dizendo que o Estado brasileiro seja autoritário, nem comparando o presidente Lula com os outros citados, mas está se retomando uma tradição que não combina com o avanço da democracia. Houve uma pressão intensa de grupos religiosos durante a visita do Papa Bento XVI aqui ao Brasil para que o acordo fosse assinado. Mas a gritaria da sociedade civil organizada foi forte e o governo deixou para lá. Meses depois, assim meio na surdina, o Itamaraty assinou o acordo numa visita ao Vaticano. A concordata ainda não foi celebrada e ainda há instrumentos para barrá-la, mas é preciso mobilização.
Como as instituições confessionais estão se colocando diante dessa situação?
A Universidade Metodista de São Paulo, onde dou aula e que é uma instituição ligada a um grupo religioso, por exemplo, tem um papel de defesa da democracia. Os representantes da Igreja Católica colocam que não são culpados por terem um Estado próprio e que as outras religiões também podem batalhar para ter seus Estados Teocráticos reconhecidos internacionalmente. Mas os católicos estão bem constrangidos com isso. A maior parte das instituições está preocupada com o desenrolar dessa batalha, porque ela toca pontos fulcrais da organização da vida. Tudo indica que as religiões outras não entram nessa luta por um Estado próprio porque entendem que religião é uma coisa e direito e cidadania são outras, e não valeria a pena brigar por essa causa e ficam achando muito ruim que apenas os católicos tenham tratamento diferenciado por parte do Estado em determinadas questões. De qualquer maneira, as organizações religiosas estão atentas e se manifestando.