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Entrevista com a historiadora Márcia Lazzari

A senhora poderia conceituar violência doméstica? Parece que há uma certa polêmica com o termo...
É, em geral as pessoas se referem à violência doméstica como sendo aquela que é praticada exclusivamente contra a mulher, seja verbal, psicológica ou até física mesmo. Já entre os especialistas da área, o que se entende é que violência doméstica é qualquer tipo de agressão que se comete dentro de casa, seja contra adultos, adolescentes ou crianças. O problema dessa discussão é que o foco dela está na palavra doméstica e não na palavra violência, que é o que de fato preocupa. E a violência cometida em casa tem aspectos bem crueis, porque atenta não apenas contra o corpo, mas também contra as vontades, os desejos.

É difícil em tempos contemporâneos a família saber compreender de fato o que é violência? Atualmente, parece que até mesmo falar “não” soa como cerceamento das liberdades da criança. como então fazer essa diferenciação?
Violência tem sempre a ver com maus tratos, que também é um conceito discutível, mas é mais fácil saber quando um adulto exagerou na dose quando falamos em maus tratos. Existe também uma diferença entre educar e colocar limites e violentar. O mais importante dessa discussão, portanto, é discutir não o último recurso, que é a violência, mas antes debater a educação propriamente dita. Se a educação é entendida como troca em que os dois lados têm os mesmos direitos e merecem ser respeitados como seres humanos – independentemente da idade e da hierarquia – então essa é uma criação não violenta. Já se a educação é tida como punição, no sentido de formar um ser humano a partir de castigos contra os atos que não são aceitos na família, aí temos uma educação violenta. Porque seja xingando, seja agredindo fisicamente, o que está por trás é o conceito de punição. E a punição torna as relações violentas.

Sob esse ponto de vista, a palmada é uma violência.
A palmada é uma violência. Não só porque ela agride o corpo da criança, mas também porque carrega consigo esse conceito da punição, do castigo, de pagar pelos atos. Eu acho que não dá para a gente dourar a pílula nesse sentido. Não dá para a gente dizer que uma coisa é mais ou menos violenta. Que a palmada é violenta, mas educa. A discussão não pode se dar com esse relativismo. Ou uma atitude é violenta ou não é. Não dá para aceitar o meio-termo aqui. E só por isso é que a gente consegue abarcar nesse conceito de violência a negação das necessidades, o isolamento, o destrato, o vexame, o descaso, a ameaça, a obrigação do trabalho e até a violência sexual. Cada ação dos adultos em nome da educação deve ter como origem o desejo de formar para a completude e a liberdade, nunca o intuito de castigar. Educar é munir a criança e o jovem das ferramentas, dos valores e de tudo que eles precisam para serem livres e saberem lidar com essa liberdade. É, portanto, no fundo, uma troca entre dois seres humanos, nunca uma imposição de um forte contra um fraco.

Isso significa abrir mão das posições clássicas de pais e de filhos, ou de adultos e crianças?
Não, de jeito nenhum. Significa, em primeiro lugar, se colocar num lugar que respeita o que vem do outro, que aceita que a criança, por menor que seja, tem sua visão do mundo, tem seus saberes e tem suas lógicas. Quando isso não bate com o que é esperado dela, ou com o que ela deveria possuir, ou expressar, o adulto violento pune; já o educador troca. E troca colocando os limites, explicando as regras, dando as ferramentas para que a criança aprenda a lidar com a situação e faça diferente da próxima vez. De um jeito livre, mas afinado com as regras daquela família, ou daquela comunidade ou daquela escola. É pensar e agir um pouco como os antropólogos, que hoje já não admitem intervenção violenta nos grupos estudados, que respeitam o que vem desses grupos, que respeitam as proposições, os saberes, os valores. O olhar passa a ser outro e o adulto passa a entender a criança não como aquele ser perdido numa massa de iguais, pasteurizada pela várias grandes teorias sobre a infância. O olhar precisa ser individualizado. O educador precisa conhecer cada criança e cada adolescente como um ser individual, possuidor de uma lógica própria, de uma visão de mundo própria. É muito mais difícil, evidentemente, mas dá resultados muito melhores.

A senhora tem números sobre a violência doméstica contra crianças e adolescentes hoje?
Os números são absolutamente variados, imprecisos e pouco confiáveis, porque não são representativos. No início da década de 2000, acompanhei mais de dois mil processos acompanhados pelo Centro de Referência da Criança e do Adolescente, o Cerca, um programa de trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção São Paulo). Nos documentos, ficam registradas tanto as violências cometidas contra os menores quanto as cometidas por eles. Mas números e relatos não são capazes de dar conta da postura violenta, essa que eu já expliquei antes, desses meninos e contra eles. E, mais sério do que isso, nos arquivos do Cerca, assim como nos do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], e nos dos Conselhos Tutelares, os casos que ficam registrados são sempre os de agressão contra pessoas das camadas mais baixas da sociedade. O que pode dar uma impressão bem equivocada sobre a realidade da violência. Todas as classes sociais têm casos de violência contra criança e adolescente, porque em todas elas está difundida a ideia de que educar é punir. E a sociedade, por meio, de suas instituições, investe nessa filosofia. A escola, a igreja, a mídia, enfim, há um consenso de que educar é punir. O negócio é que o que chega a ser denunciado são os episódios dos mais pobres, porque essas famílias têm menos muros, em todos os sentidos. Como as casas são mais próximas e menos isoladas das residências dos vizinhos, se ouve mais o que acontece ali, os gritos das crianças. Como as famílias têm menos defesas – em todos os sentidos – a violência fica mais explícita, mais fácil de ser diagnosticada e até registrada.

Mas ela não mora só nas classes menos favorecidas, certo?
Certo. E isso é que preocupa. O silêncio das classes mais favorecidas não é indicativo de menos violência, mas sim de mais defesas contra o vazamento desses atos que acontecem dentro de casa. Nem a polícia, nem outros mecanismos do Estado, nem a imprensa chega à violência dos ricos e da classe média. Os pobres são mais suscetíveis a essas investidas.

Chegando especificamente à escola, como as instituições podem se posicionar diante dessa questão?
A primeira providência tem a ver com esse entendimento de o que é educação. Se a escola entende que é preciso castigar ou punir para educar, vai continuar acolhendo a violência, mesmo sem querer. Outra providência é aceitar que a violência doméstica existe e se posicionar contra ela, trabalhando a questão em sala de aula, fora dela, criando mecanismos de apoio ao estudante e à sua família e até denunciando quando se julgar necessário. As escolas públicas estão mais atentas à violência, enxergam que ela existe, mas em geral se colocam na defesa, se protegem de alunos violentos. São as escolas que, na maioria das vezes, denunciam as crianças e os adolescentes ao Conselho Tutelar. Não porque eles foram vítimas de maus tratos, mas porque foram agressores na escola. Ou seja, é um olhar enviesado, mas pelo menos que admite a violência. Já as escolas particulares ignoram completamente a questão. Entendem que por receberem estudantes das classes mais abastadas, seu público está livre do problema e, por consequência, o colégio também está. E essa é uma resposta que só aumenta a violência.

Quando a senhora diz que a escola precisa se envolver com o problema, está se referindo à participação de todos os funcionários e dos professores?
Exatamente. Precisa ser uma política da escola. Todo mundo que encontra o aluno ou trabalha com ele precisa estar preparado para estabelecer essa relação de educação individualizada, que reconhece a bagagem do outro e que está vigilante em relação à violência.

E como o professor, dentro e fora da sala de aula, pode trabalhar a educação individualizada, que abre espaço para os valores e saberes do outro, se as classes têm muitos alunos, se o contato é curto e específico?
Pois é. As mudanças não acontecem da noite para o dia. Também acho bem difícil exigir que, além de se preparar, dar aula, corrigir provas e trabalhos, o professor ainda tenha que ser psicólogo e até policial para denunciar abusos. Ele não pode estar sozinho numa empreitada dessas. O professor, por ser educador, deve ter como profissão de fé o cuidado permanente de seus educandos, isso é um dever do ofício mesmo, que é diferente dos demais. Não dá para ser só burocrático e cumpridor de tarefas quando se escolhe ser professor. Mas sozinho ele não consegue muitos avanços. A escola tem que ter uma política relacionada à não-violência e tem que criar mecanismos para detectar, acolher e acompanhar o aluno que é violentado. E isso pede formação específica, porque caso a detecção seja furada, ou seja, se um o professor avalia que um aluno é maltratado e ele, na verdade, não é, isso pode criar um trauma e uma confusão sem precedentes. Ou, se de fato, a criança vive numa família violenta, se a abordagem não for muito cuidadosa, pode piorar a situação da criança em casa e na escola.

Nesse sentido, os diferentes vínculos criados entre alunos e professores, nos diversos níveis de ensino, interferem nessa percepção da violência?
Com certeza. Durante o ensino infantil, os alunos e os professores são muito mais próximos, inclusive fisicamente. Se abraçam, se beijam e se falam bem carinhosamente. Tem até aquela questão de a professora virar tia, coisa que os pensadores da educação acham bem complicado. Professora é professora e não parente. Mas, de qualquer modo, o vínculo é mais intenso e isso ajuda muito a não cometer violência e também a notar quando uma criança é vítima de violência. Já no ensino fundamental, essa relação muda um pouco e professor e aluno se afastam. Fica um buraco que dificulta uma educação não-violenta e – ao mesmo tempo – uma atenção maior em relação ao que a criança traz de casa, valores, bagagem e até maus tratos. Claro que a relação de uma professora com uma criança de 3 anos é diferente da relação com uma de 8 ou 12 anos, mas o vínculo pode se manter intenso.

Trata-se então de uma questão institucional, ou em outras palavras, a escola precisa se colocar diante do tema, garantir formação adequada aos professores e ter mecanismos de apoio para os alunos.
E tem mais um ponto fundamental: a parceria da escola com a família. Caso contrário, a família agride, a escola ignora e a criança fica perdida entre os dois grupos, sem ter a quem recorrer. Também se a parceria acontece, a viabilização da mudança de postura é bem mais rápida e eficaz. A transformação no pensar e no agir fica mais evidente e mais completa. E é preciso também que todo mundo lembre que não atender uma criança violentada, não cuidar dela, é uma forma de infringir o Estatuto da Criança e do Adolescente. No fundo, quem não toma atitude em defesa do menor está, na verdade, sendo cúmplice do agressor. E a negligência é passível de punição, de acordo com a lei. Agora, mais do que o dever para com a justiça, o dever do educador é com a formação do educando.

Estabelecendo a utopia mesmo... se a gente pudesse pensar na atuação ideal do professor e da escola diante dessas situações, como seria isso?
Para ser ideal mesmo teria que envolver todo o Sistema Educacional do país. Em termos institucionais, as escolas públicas e privadas deveriam se comprometer em atentar para a violência doméstica. Também as Secretarias de Educação, do município e do estado, além do Ministério da Educação, deveriam ter estrutura de apoio para acolher a escola e o professor que estejam envolvidos com situações de violência doméstica. Seria preciso apoiar judicialmente inclusive. Já em relação aos professores, já durante a formação, poderiam ser preparados para ficar atentos a alguns sinais: marcas roxas, machucados constantes, medo, crianças que ficam apáticas, não se relacionam bem com os colegas e com os adultos e que, por fim, também são agressivas. Tudo isso pode ser sinal de maus tratos em casa. Mas também pode não ser. O alarmismo e a constante desconfiança não ajudam em nada. Por isso a formação é a diferença.

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