Professor, os recentes movimentos feitos pelo governo Obama na área de política externa estão ajudando a construir uma nova era de relações internacionais e de fato a redesenhar o mapa do mundo?
Essa avaliação deve ser feita levando em consideração até que ponto a mudança de governo altera a política de Estado norte-americana. Se pensarmos em decisões governamentais adotadas em função de variáveis regionais, ou seja, se olharmos os movimentos feitos em função de regiões específicas, temos mudanças significativas, por exemplo, no caso do Oriente Médio. De certa forma, a política dos EUA para aquela área do mundo é a mesma desde a década de 1960, em governos republicanos ou democratas. Desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, há uma aliança explícita e convicta com Israel. O presidente Obama tem emitido sinais importantes de mudanças nesse cenário e nessa relação, embora o caminho de transformações ainda seja longo. Agora, em outras regiões, as mudanças podem não ser tão drásticas. As relações estabelecidas com a China e com a Índia, para citar outros exemplos, já vinham sendo estabelecidas por governos anteriores. De maneira mais ampla, não creio que tudo isso vá alterar o sistema internacional. Os Estados Unidos continuam sendo a grande potência, assumindo a ideia de liderança planetária e reafirmando a perspectiva de que têm uma responsabilidade e papel a cumprir no mundo. Isso se mantém. O que o presidente Obama está fazendo nesse primeiro momento é procurar esvaziar algumas tensões, indo aos focos de problemas para apresentar possibilidades de interlocução e negociação. Já emitiu mensagens importantes em relação ao Irã, além de iniciar um diálogo com Hugo Chavez e Evo Moralez. Trata-se de uma política que pretende evitar conflitos. É o estilo dele, bem característico.
O senhor citou o caso do Oriente Médio como uma referência de mudança significativa na política externa dos EUA. Nessa perspectiva, como avalia o discurso feito recentemente na Universidade do Cairo, quando o presidente Obama sugeriu o fim das desconfianças entre Ocidente e Oriente e indicou uma espécie de recomeço nas relações com o Islã?
Eu avalio aquele discurso como um dos mais importantes da história recente dos Estados Unidos. É verdade que muitos críticos vão dizer ‘ah, mas é só discurso, são palavras vazias’, mas são sinais extremamente importantes e carregados de significados. A mensagem contida ali revela que os Estados Unidos estão focados na questão palestina. Esse é o ponto mais importante e crucial. Não é retórica. Obama diz com clareza que Israel precisa congelar seu expansionismo e os assentamentos. Vale lembrar que nem mesmo o governo Clinton, também democrata, e que tomou iniciativas pela paz e tentou atuar como mediador do conflito árabe-israelense, adotou essa determinação em pressionar Israel a deter o processo de expansão das colônias. Obama fala ainda com muita evidência na necessidade de existência de dois estados, o israelense e o palestino. E mostra que ele é quem vai tomar conta dessa questão. Será uma diplomacia de natureza presidencial, uma discussão da qual ele pretende participar diretamente. Ainda nessa perspectiva, Obama tem feito movimentos importantes para buscar outros aliados regionais, apelando para a segurança regional e indicando que os problemas da região devem ser resolvidos com o envolvimento dos países que fazem parte dessa região. Há por exemplo articulações significativas com a Síria, que até pouco tempo fazia parte do ‘eixo do mal’, e para além de aliados tradicionais, como Egito e Arábia Saudita.
Mas a questão do Afeganistão parece receber o mesmo tratamento da administração anterior.
Em relação ao Afeganistão, de fato não há inflexão, não há diferenças importantes em relação ao governo Bush. Talvez varie um pouco a intensidade, mas as táticas empregadas são as mesmas do governo Bush. Não por acaso Obama manteve o Secretário de Defesa da administração Bush, bem avaliado pela condução no conflito e na ocupação do Iraque. Por outro lado, há mudanças também em relação ao Irã e um interesse norte-americano em também estabilizar aquela região. Não interessa que a instabilidade que marca as fronteiras do Paquistão com o Afeganistão atinja também a fronteira do Afeganistão com o Irã, que é predominantemente xiita. Em todas essas avaliações que fazemos, é preciso lembrar que a política externa dos Estados Unidos depende muito do Congresso, e confesso que até o momento não sei dizer como os deputados e senadores norte-americanos poderão lidar com todos esses temas, já que sempre apoiaram Israel, incluindo aí o Partido Democrata, que tem forte base de apoio da comunidade judaica.
Essa parece ser uma questão fundamental: como fica a aliança com Israel, absoluta durante os anos de administração de George W. Bush?
Até mesmo jornalistas e analistas mais alinhados ao pensamento conservador já estão avaliando mal essa relação com Israel, pois estaria prejudicando os interesses dos Estados Unidos. Trata-se de um raciocínio pragmático. Até que ponto os Estados Unidos têm vantagens nessa relação? E o que se percebe é que, ao apoiar incondicionalmente Israel, os norte-americanos recebem críticas da comunidade internacional, se envolvem em suas guerras e ainda por cima veem crescer assustadoramente o anti-americanismo. O que se avalia então é que os custos políticos e econômicos dessa aliança são enormes. E o que se pergunta é: não é preciso romper, mas não seria momento de alterá-la? O que se coloca é que os Estados Unidos devem dizer o que Israel deve fazer e como deve agir, e não o contrário. Durante o governo Bush, Israel avisava ‘vamos fazer’, e os Estados Unidos ou se omitiam ou apoiavam. É isso que está sendo questionado. Novamente, não se trata de benevolência com os árabes, mas de avaliação pragmática e realista, feita em função dos prejuízos acumulados pelos Estados Unidos.
Esse novo cenário inclui ainda, ao menos em um primeiro momento, a oferta de negociação também com o Irã?
O governo Obama sinaliza claramente que é contra a recusa do Irã às inspeções que devem ser feitas pela Agência Internacional de Energia Atômica. Mas ao mesmo tempo indica que o melhor caminho é a negociação diplomática. No discurso feito no Cairo, o presidente dos Estados Unidos afirmou que reconhece que os países têm direito à energia nuclear para fins civis. É muito significativo. O que ele está sugerindo é que deseja negociar, que não interessa um confronto com o Irã. É claro que tem recebido críticas contundentes dos conservadores e da direita americana, que o condenam por não ser rigoroso e por não punir o Irã. Ao mesmo tempo, quando sugere o caminho da diplomacia e não da guerra, Obama esvazia a retórica agressiva do lado contrário. Nesse novo cenário, fica difícil para o Irã eleger Obama e os Estados Unidos como inimigos.
Já em relação à Coreia do Norte, até mesmo por conta dos testes com mísseis feitos recentemente, as mensagens são muito mais contundentes?
Certamente o tratamento dado ao caso da Coreia do Norte é diferente. Mas ainda assim é preciso perceber que há diferenças significativas entre os governos Bush e Obama. A administração anterior adotava a perspectiva da tábula rasa, era tudo igual, havia um eixo do mal formado por Irã, Coreia e grupos terroristas. No mesmo discurso do Cairo, Obama não fala em terrorismo, mas em extremismo. São detalhes e nuances importantes, que revelam percepções e simbologias que ele procura romper. Obama termina esse discurso fazendo uma saudação em árabe, dizendo ‘que a paz esteja com vocês’ em árabe. É muito significativo. O que se pretende é conquistar não apenas os governos árabes, mas as populações árabes, a chamada “rua árabe”. Agora, trata-se de um campo minado, pois parcela da população e a direita americana podem ficar bastante descontentes.
Olhando para a outra porção do globo, como o senhor avalia as recentes medidas adotadas em relação a Cuba e a aprovação para que a ilha volte a fazer parte da Organização dos Estados Americanos?
Trata-se de mais um foco de conflito que é trabalhado a partir da mesma perspectiva de distensão e de negociação. Essa é uma política geral, não vale apenas para o Oriente Médio. Está na cabeça do Obama a possibilidade de passar para a história como o presidente que colocou por terra o bloqueio econômico a Cuba. É uma mudança grande, mas que deve ser colocada em prática de forma gradual. Não vai ser de uma hora para outra. Tudo tem seu tempo. Creio que a volta de Cuba à OEA acabou superando inclusive o que os Estados Unidos idealizavam para esse momento. Obama sabe que qualquer presidente dos Estados Unidos tem de se pautar e buscar sustentação em duas dimensões, o apoio interno e o respaldo internacional. Clinton não tinha, por exemplo, maioria no Congresso. Obama tem ciência da necessidade de caminhar nessa linha fina, sabe que precisa ter a confiança do Congresso, e por isso os movimentos muitas vezes são lentos, até porque o lobby da comunidade cubana é muito forte nos Estados Unidos. Ele vai procurar estabelecer consensos e equilíbrios. No entanto, creio que a tendência seja mesmo caminhar para um distensionamento com Cuba, que vai culminar com o fim do bloqueio.
Na sua avaliação, a permissão de volta de Cuba à OEA nesse momento foi uma medida brusca e radical, inesperada até mesmo para a atual política norte-americana?
Certamente saiu daquilo que era possível imaginar para os Estados Unidos nesse momento. Destoa um pouco do estilo norte-americano de fazer política, que não quer perder de forma alguma a liderança global. Atualmente, a questão cubana é mais simbólica do que real. Cuba não tem importância econômica, perdeu a relevância ideologia que tinha, está sendo obrigada a adotar mudanças internas, por mais que Raul Castro tente negá-las. E alguns países, como Venezuela, Equador e Bolívia, procuram tirar proveito desse cenário, chamando para eles a responsabilidade de reintegrar Cuba ao sistema das Américas. O próprio Brasil não quer perder a chance de ser mediador nesse processo de reaproximação. E os Estados Unidos não desejam ser conduzidos, querem ser protagonistas. É uma briga por responsabilidades e aparências. Mas insisto, trata-se de uma disputa de natureza mais simbólica, já que o OEA viu esvaziada sua representatividade e importância, e é incapaz de atuar em episódios como o do Haiti, por exemplo.
Também nesse caso, a diplomacia norte-americana coloca em xeque o discurso anti-americano idealizado por Cuba, ou seja, há uma inversão de papeis e o eterno inimigo passa a fazer gestos concretos de disposição para o diálogo e para as mudanças?
No sistema de relações internacionais, não raro o que acontece é a construção da própria imagem em função da negação da imagem do outro. O regime cubano, pelo menos de 1961, vem se valendo da ideia de que a qualquer momento os Estados Unidos imperialista podem invadir a ilha. E agora estão sendo obrigados a admitir que os americanos não têm interesse nisso. Fica difícil sustentar esse discurso, o que traz ainda mais problemas internos e de acomodação interna para Cuba.
Como ficam no governo Obama a questão do terrorismo e da segurança de Estado?
É importante lembrar que a política externa é composta por esses aspectos mais amplos, como a OEA, os discursos e a diplomacia, mas também por um universo micro, pontual e cotidiano. Estou falando, por exemplo de um caso recente, e que na minha avaliação ficou muito mal explicado de um libanês que foi preso em São Paulo, acusado de terrorismo. São situações que não necessariamente passam pela presidência, que são acompanhados pelos serviços de inteligência, pelo FBI. Não é a grande política, mas problemas pontuais que estão sendo resolvidos ainda de acordo com as determinações do governo anterior. Ainda não há uma doutrina nova, não deu tempo de formulá-la. Em breve, o governo Obama terá de apresentar uma doutrina específica, uma estratégia para lidar com questões como a tríplice fronteira, o narcotráfico e a guerrilha na Colômbia.
Nesse tabuleiro de xadrez da política externa norte-americana, qual o espaço que resta para o Brasil?
O Brasil é um país cada vez mais importante para os Estados Unidos, seja pela dimensão econômica, financeira, política ou comercial. É um parceiro cada vez mais importante e com peso global. A própria crise econômica ressaltou esse aspecto positivo do Brasil. Apenas para citar alguns aspectos, vale ressaltar a relevância do Brasil no aspecto de políticas energéticas, a liderança das tropas de paz que estão atuando no Haiti. O presidente Lula tem sido ainda interlocutor dos Estados Unidos com Hugo Chavez, até para ajudar a amenizar as ações e declarações do presidente venezuelano. Esse processo, que foi evidente durante a era Bush, vai continuar e se intensificar. Não é só retórica quando o Obama diz que ‘Lula é o cara’. Entendo que o governo Obama vai ter o Brasil como um parceiro privilegiado na América Latina, em busca da estabilidade do continente.